De certo modo, todos os atributos e qualidades literárias de Cícero eram em si mesmas uma mescla de sabedoria e pendor poético-filosófico grego, aliado ao pragmatismo da artificialidade literária latina. Sabemos que a sua literatura de origem era "aristocrática(...) em que um escol escreve para um escol."(23)Sabemos também que a literatura grega era sentida e participada por uma grande maioria. De uma expressiva oralidade, cultivava "a harmonia e o ritmo", dirigia-se ao "homem total,"(24)necessitava e buscava a comunicação. Ora Cícero parece-me um homem cosmopolita, mesmo que a sua opinião fosse "sempre a de que os romanos foram em tudo criadores mais sábios do que os gregos, ou melhoraram aquilo que com eles aprenderam."(25)Há como que uma aceitação plena e antecipada, de uma cultura sem fronteiras. Talvez por isso, Cícero tenha sido apelidado de o "maior literato". Conseguiu reunir em si uma aristocracia plena, em questão de estética literária e ao mesmo tempo a singeleza natural e verdadeira, dada aos que amam as letras, a poesia, e que por isso obtêm igualmente essa aristocracia mesmo quando de origem humilde, que é o que encontramos na cultura grega.
São suas as seguintes palavras: "procurava eu com afinco e muitas vezes pensava por que maneira poderia ser útil ao maior número, para não deixar de alguma vez me preocupar com a comunidade. E nenhuma coisa mais importante me ocorria do que facultar aos meus concidadãos o acesso às humanidades, objectivo que creio ter alcançado já com muitos livros."(26)
Eis que este espírito de partilhar a sua cultura me surge tendencialmente grego, a que não poderá ser alheia toda a sabedoria que Cícero colheu da sua estadia na Grécia e na Ásia. "Antíoco de Ascalão, chefe da Academia (...) cujo ensino se esforça por conciliar Aristóteles e Platão com os estóicos,"(27)Mólon e outros foram seus professores; ouviu Fedro, Zenão de Sídon e Posidónio. Assim sendo, o que protagniza nesta defesa talvez seja a sua própria defesa na defesa de Archia. É o desejo secreto de obter um salvo-conduto, para que a literatura, as humanidades gregas, penetrem livremente na literatura latina. Ao ganhar a causa (o que parece certo),encontramos como que um sabor agridoce, do prazer de uma união plena e anticipada, em que os vencidos se tornam vencedores (como dirá Horácio). O diálogo grego, a filosofia platónica e aristotélica, o seu teatro, a sua poesia lírica penetraram na sociedade romana, à medida que cidadãos gregos eram aceites como cidadãos romanos de pleno direito.
Essa conjugação foi obtida por Cícero na sua obra, qualificada como um "quadro perfeito da civilização greco-romana."(28) Esse quadro, essa pintura que nos faz vislumbrar o Monte Parnaso, ou ouvir as suaves fontes, as águas que em cascata entoam murmúrios doces quando se espraiam nos verdes prados, é a escrita eterna de Cícero.
Sabemos que Petrarca foi um seu estudioso. "Entre o séc. XIV e XV encontrou e copiou o «Pró-Archia». Durante toda a Idade Média as suas obras "prestavam-se(...) como esplêndidamente adequadas à fundamentação do estoicismo moral que determinava um dos importantes parâmetros da reflexão cristã."(30)Cícero encontra-se na escrita medieval como "uma autoridade moral."
(continua)
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