Foi na "noite de Natal e ninguém deu por nada"! Numa das capelas laterais do Convento de Santa Cruz do Buçaco um incêndio destruiu "uma sagrada Família de 1664, assinada pela pintora portuguesa Josefa de Óbidos." Estas são palavras escritas por Lucinda Canelas no jornal Público de terça feira dia 7 de Janeiro, num artigo sobre o Património, nas páginas de Cultura e que se intitula: «Há três anos que há um projecto para o Buçaco à espera de verbas.» Diz-nos o artigo que este imóvel é propriedade do Estado e foi classificado em 1943. Por falta de verbas para se consertar o telhado da capela, chovia lá dentro. Terá sido por causa dessas infiltrações que houve, presumidamente, um curto-circuito. A pintura do século XVII considerada a "jóia do recheio" (segundo Vítor Serrão) desta casa religiosa, que pertenceu aos monges carmelitas descalços, ficou totalmente destruída.
Foi uma tragédia e não há a quem se pedir responsabilidades?Eu pergunto: porque é que a obra não foi retirada para um sítio do convento onde não houvesse infiltrações? Mais adiante leio, no mesmo jornal, um artigo - Debate Património - do Historiador de Arte Vítor Serrão, intitulado:«Morte de uma obra de arte: a tela de Josefa de Óbidos no Buçaco» e que nos diz: que "em termos de património artístico, a perda é irreparável (como todas as perdas...) mas esta é especialmente importante por se tratar de um quadro barroco de assinalável mérito, que marca um momento de viragem na produção da pintora seiscentista. Aliás, pereceram neste incêndio várias outras obras de valia, tanto de talha como de imaginária e de pintura (...) Mas é a Sagrada Família, sem a mínima dúvida, a perda patrimonial mais significativa que decorreu deste incêndio.
Aos 34 anos de idade, Josefa de Ayala e Cabrera, conhecida como Josefa de Óbidos (Sevilha, 1630-Óbidos, 1684) pintou esta tela devocional para os frades do Buçaco, aí representando um tema de piedade tridentina bem adequado ao sentido de pobreza sacrificial vivenciado no deserto carmelitano (...) Temas como este tinham grande impacto no século XVII, no quadro da doutrina contra-reformista tão atreita a desenvolver uma propaganda credível através do bom uso das «imagens sagradas» (...) O interesse histórico-artístico do painel radica no facto de se tratar de uma das primeiras encomendas de Josefa como pintora profissional (...) A tela do Buçaco, de médio formato (1030x1580mm), estava assinada e datada de 1664 (...) e mostra, dentro das suas naturais convenções de discurso e limitações inventivas, o talento da artista, a maturação do seu estilo e a crescente afirmação dos seus pessoalíssimos modelos e receitas. São estas qualidades que justificaram a fama de Josefa no contexto da arte portuguesa do século XVII (e no contexto do Naturalismo barroco peninsular, em que a sua arte se insere). É por tudo isto que a destruição da Sagrada Família, de 1664, não pode deixar de ser considerada uma tragédia para o património artístico nacional.
Não deixa de ser considerado como triste metáfora que uma Sagrada Família com estas características de unicidade artística desapareça, e logo na noite de Natal!"
Hoje posso dizer-vos do desgosto que senti neste dia em que li estes dois artigos. Tal como nos diz Vítor Serrão o património artístico nacional acaba de sofrer com a destruição da tela de Josefa no Buçaco uma perda significativa, cuja valia é incalculável.
Deixei correr as palavras quase tal e qual com estavam no jornal, mas não dispensa a vossa leitura dos artigos de Lucinda Canelas e do Prof.Dr. Vítor Serrão. Agradeço-lhes o sentimento de partilha desta tragédia que nos deixou a todos mais pobres, pela incúria que talvez tenha havido e que talvez ainda venha a ser atribuída. A menos que a culpa morra sempre solteira.