domingo, 27 de janeiro de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

II
Arte Poetica
Parte primeira 
(Continuação)

Hum homem que presume ter engenho
Se lança de repente ao árduo empenho
De sobir com giros mais veloses
Ao monte bipartido, dando ás vozes
Talvez huma infeliz correspondencia,
Tropeçando no assento, e na cadencia
Das phrases, e das syllabas, costume,
Que o aparta sempre mais do excelso cume.

Estes são os Semîcapros de Pindo,
Gente que vive na deserta fralda
Da montanha entre a rústica esmeralda
Dos bosques, e das selvas: trovadores
Só se podem chamar os moradores
Desta ruda floresta: O nome augusto,
Que nasce da expressão de hum peito adusto,
Não se alcança sómente com a Rima:
O que mais resplandece, e mais se estima
He esse illustre, arrebatado alento
Que imprime hum perturbado movimento
Nos affectos de huma alma socegada:
He huma elevação, exercitada
Por hum génio feliz, hum juizo pronto,
Hum dote celestial, hum alto ponto
De hum espírito ardente, huma elegancia,
Não só ígnea, mas justa, huma abundancia
De imagens, e de phrases singulares, 
Huma escolha de termos não vulgares,
Huma imaginação, cheia de esforço,
De incêndio, de igualdade, de doçura,
E em fim hum rapto excelso, huma loucura
Tão exquisita, que o furor detenha,
Quando mostra talvez que se despenha.

A Poesia se inculca, ou se define
Por uma Imitação de quanto aos olhos,
De quanto á intelleção propõem no Mundo
A vasta Natureza: este fecundo
Theatro de maravilhas portentosas
Inda as póde fazer mais deleitosas
A discripção harmónica do Verso:
A música, a pintura, a dança imita
Tambem a Natureza; e he só diverso
O modo, com que a imagem solicita:
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(continua) p.8 


domingo, 20 de janeiro de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

II 

A R T E 

P O E T I CA

PARTE PRIMEIRA

Mandais-me que vos dicte algumas regras
Daquella soberana melodia,
A quem se deo o nome de Poesia:
Não sey que extravagante movimento
Vos dispõem ao estranho pensamento
Deste infeliz emprego: este exercício
O tem já reputado, como vício,
O nosso Portugal: he bem verdade
Que o julgou de outro modo a Antiguidade
Tão natural aos homens se mostrava
O alcanse de huma luz tão deleitosa, 
Que foy inda primeiro, do que a Prosa,
A ligada oração: Santificava
Nella a Infância do Mundo aquelles hymnos,
Com que as graças, em métricos louvores,
Rendia aos benefícios superiores.

Os mais altos espíritos julgarão
Por hum divino incendio esta eloquência:
A doutrina lhe deo a preeminência
Em todas as funçoens do engenho humano:
No Civil, no sagrado, no profano
Entre as Nacoens mais sabias, e polidas,
Não só foy sempre amavel esta chamma,
Em que anima o clarim a eterna fama,
Mas inda no confuso labyrinto,
Em que dorme, em que geme, em que se occulta
A Província mais tosca, e mais inculta.

Só nas sombras fatais deste Occidente,
Onde a Patria formou seu domicilio,
Pode nunca alcançar hum nobre auxilio
Esta infancia Celeste: Se com tudo
Quereis exercitar o infausto estudo,
He preciso fazer hum serio exame
De vossa propensão; pois o dictame
Aqui, sem natureza, não ensina:
He melhor mestre o genio, que a doutrina.
Porèm como se excita, ou se melhora
O génio, com a arte, eu vos proponho
As regras, que Aristóteles prescreve:
Atégora outra guia mais segura,
Para chegar ao cume, e á grande altura
Do harmonico esplendor: eu só acceito
Para dar huma ordem, sem defeito
A' rapida extensão do ardor brilhante
Com benigno, com placito semblante
A vaga liberdade do alvedrio
Estas regras receba: eu principio

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(Continua) pp.7 





sábado, 19 de janeiro de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca

"A relação entre a retórica e poética condiciona qualquer reflexão sobre a linguagem, desde a antiguidade até aos nossos dias (...) Aristóteles define a retórica como a arte de extrair de qualquer tema, o grau nele contido, e a única diferença entre arte retórica e arte poética está em que a primeira diz respeito à comunicação quotidiana (de ideia em ideia) e a segunda à evocação imaginária (de imagem em imagem). A poética de Aristóteles é consagrada à essência e à origem da poesia. A lógica estabelece que as operações sobre as palavras não fazem senão substituir as operações sobre as coisas e que, em consequência, se as palavras significam coisas, isto dá-se em função de certo grau de imitação. A poesia, que é operação sobre palavras, é portanto imitação, mimesis. (...) O facto de a poesia "imitar" a natureza indica que o criador, no momento do fazer reencontra o segredo da geração natural das coisas, o que lembra o parentesco morfológico entre poein, fazer, produzir, e poiésis, criação, produção, poesia. A noção de mimesis liga-se à verosimilhança da representação; o poeta pode representar as coisas mais belas ou menos belas do que realmente são, segundo a sua maneira de imitar e a finalidade da imitação (os géneros).
Para Aristóteles não havia poesia sem fábula (mytos), isto é, sem acção; insiste que: «é preciso que o poeta seja poeta de fábulas mais que de versos, visto que é poeta em razão da imitação, e imita as acções». Por fim, é preciso não esquecer a afirmação do início da poética: a harmonia e o ritmo são tão naturais no homem quanto a imitação." (15)
A linguagem da poesia barroca tem acção e, na sua singularidade, usou "mytos" e ornatos para chegar ao leitor. É necessário reencontrá-la e dar-lhe o lugar que merece na nossa língua e cultura. Que este trabalho seja um pequeno e "pobre" contributo, talvez, colocado ao lado, por exemplo, da Introdução do Postilhão de Apollo,  de que transcrevo parte, e dos cinco volumes da Fénix Renascida, "fogo preso", nos bem abençoados Reservados da Biblioteca Nacional.
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Notas:
(6); (8); (9); (10); (11) MOURA, Carlos, HISTÓRIA DA ARTE EM PORTUGAL, Publicações Alfa, Lisboa, 1993, pp. 147; 130; 142; 122; 150.
(12) CIDADE, Hernani, A POESIA LÍRICA CULTISTA E CONCEPTISTA, Seara Nova, Lisboa, 1968, 4ª ed., in: Prefácio, pp. VIII.
(13); (14) PIRES, Maria Lucília Gonçalves, POETAS DO PERÍODO BARROCO, Editorial Comunicação, Lisboa, 1985, 1ª ed., pp.32; 33; 37 e 38.
(15) DELAS, Daniel e Filliolet, Jacques, LINGUÍSTICA E POÉTICA, Editora Cultix, Ed. Universidade de S. Paulo, 1975, pp. 9 a 11.
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p.6

sábado, 12 de janeiro de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca

Após a Restauração, o país vive envolto, durante mais de duas décadas, em guerras com Espanha e com dificuldades económicas. Essa vivência é transportada para a poesia. O homem, o militar, parte para a contenda e deixa a sua amada. É ponto de honra que assim seja. A jovem morre na sua ausência. Chora-se um amor que não se concretizou. Há a dor da ausência, do amor que não pôde ser correspondido, da saudade de um bem passado. A mulher adquire tonalidades de retrato petrarquista, virginal, ou o inverso, uma imagem de amor sensual, Vénus, descrita por uma linguagem realista ou hiperbólica, que nos dá a ideia de uma mulher muito mais moderna.
Tudo surge como transitório, como ilusão, aparência que se esvai como o fumo. O sonho e a realidade confundem-se num tempo de impossibilidades. A vida é sonho, de Calderón de la Barca torna visível essa situação. Heraclito mostra essa evidência na metáfora do rio. A vida é um rio que corre e jamais nos poderemos banhar duas vezes na mesma água desse rio, cristalino, espelho virtual, enganador. O "Carpe diem" horaciano torna-se arquétipo. O tempo não volta para trás. Os relógios constituem motivo poético, "Jean Rousset fala mesmo da possibilidade de se organizar um museu do tempo a partir dos instrumentos para a sua medição referidos pela poesia barroca."
A poesia está delimitada pelo tempo, como a pintura está pela tela. O tempo é a categoria que nos propomos ilustrar com poemas de diversos poetas, analisando as figuras que mais a ornamentam. A língua é ela própria fragmentada, por isso nos apercebemos do tempo como fio de filigrana que tece a vida e a quebra a qualquer momento. Um tempo que só nos é dado pela escrita do tempo barroco. Um tempo de religiosidade, que "a connu plusieurs morales différentes", mas que não deixou de utilizar a linguagem poética para louvar a Deus, para lhe manifestar o seu amor e pedir misericórdia, quer fosse Ele Católico, Luterano, Calvinista, Anglicano, "Ortodoxo" ou "Jansenista", Hebraico ou Maometano.
«A natureza dos temas não obsta ao seu tratamento pelas tendências mais marcantes da retórica do tempo. (...) A exibição do trabalho retórico domina muitos destes poemas, sobrepondo-se à expressão da emoção religiosa. É no plano das formas de expressão (busca de novas metáforas ou de hipérboles mais ousadas) que a originalidade da poesia barroca procura afirmar-se. Formas estilísticas que são criação de Gongora e de outros poetas anteriores constituem um quadro formal que insistentemente se repete.» (14)
Ao terminar esta introdução ao estudo da linguagem da poesia barroca, transcrevo um excerto de um estudo de Daniel Delas e Jacques Fillolet, sobre a linguística e a poética. E porquê? Porque encontrei uma Arte Poética do período barroco que reflecte sobre esta arte e verifiquei que nela está presente Aristóteles,  Horácio, e Quintiliano, mas também está uma maneira original e moderna de dizer como deve ser a arte de bem trabalhar a palavra, no "metier" da Poesia. Vejamos parte do que nos dizem estes autores contemporâneos, e o poeta seiscentista, Francisco de Pina, de Sá, e de Mello.
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(Continua) p. 5 

sábado, 5 de janeiro de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

A categoria do tempo surge no barroco como mudança, numa perspectiva diacrónica que retira a identidade. Está subjacente em tudo, na natureza, na vida efémera da rosa, personificação duma beleza enganadora, no navio "presumido" que jaz na praia arruinado, nos cabelos de ouro, apanágio da juventude, e nos de prata reluzente ou opaca, sinónimo de velhice, sofrimento e desilusão. O tempo é "protagonista da  poesia barroca," mostra-nos que a vida e a morte deixam de ser antónimos "para serem sinónimos, pois que a vida é gérmen da morte, cada momento da vida é um avanço para a morte." (13) A metáfora, a hipérbole e a antítese são as figuras que melhor nos permitem visualizar esta categoria, tão presente na poesia barroca. Ela traduz um espírito de transformação, ao contrário da poesia petrarquista que vive o tempo numa perspectiva sincrónica.
Petrarca ama uma mulher ad eternum, tem preocupações psicológicas, exprime um "eu," emoldura a sua fixação feminina num ideal de beleza que não sofre o desgaste do tempo. Em Petrarca, o poema organiza-se dois a dois versos, ou três a três que são movimento em espiral, uma nublosa que tem um centro - o amor - busca contínua, obsessão.
A organização da linguagem barroca é vista como um conjunto. A própria instabilidade, sem ser ontológica, é no discurso um fenómeno muito muito bem organizado, com uma ideia que se leva até ao final do poema. Quando descreve o contrário da excepcionalidade, faz o hiato entre o petrarquismo e o romantismo. A sua visão da noite e da morte anuncia o pré-romantismo de Bocage ou de Filinto Elísio.
Na poesia barroca há requinte na análise humana, dissolve-se a psicologia e entra-se na metafísica. A linguagem barroca é antipetrarquista, corta com duzentos anos de "cópia" de "imitação". Afirma um estilo novo, com uma comunicação que saiu fora do comum. Propõe uma estética cuja ideia central de cada poema funciona como ponto de fuga, alongamento, perspectiva pictórica. O poeta exprime um ponto de vista, o seu, que nos mostra um "eu" dividido, angustiado. Talvez por isso encontremos tantos temas jocosos, de face grotesca, como que se a vida fosse uma trágico-comédia e o cómico funcionasse como ethos. Thomás de Noronha ou Pinto Brandão, Serrão de Castro, D. Francisco Manuel de Mello, ou Nicolau Tolentino, são disso exemplo. O riso, a sátira, funcionam como armas demolidoras que não se coíbem de destruir o visado, seja um ser individual ou a sociedade em que estão inseridos. No entanto, esse riso é, por vezes, patético. Há um "patos" que nos faz lembrar aqueles palhaços que riem, ou fazem rir, com as lágrimas pendentes, doloridas. A máscara torna-se no próprio rosto. São obscenos, irónicos, porque estão divididos, desiludidos. Usam a poesia como um escape, como jogo, riem de tudo e de todos, de si próprios.
O lamento, as lágrimas, também são recorrentes na poesia barroca. António Bacelar foi um dos seus dos seus cultores. Elegíaca, dedicada, panegírica, fúnebre, faz contraste com a jocosa e constitui um acervo de relevo, talvez mesmo superior à sátira, essa atitude de espírito que, como Schiller disse: é oposta à elegíaca, que vive da tenção entre ideal e real e tende a considerar a realidade como objecto de rejeição até de repulsa, mesmo quando a realidade se apresente no "manto" da utopia.
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(Continua) p.4

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

"O retrato de D. Isabel de Moura, por Domingos Vieira, o Escuro, (Museu de Arte Antiga), considerado um dos melhores retratos da pintura barroca portuguesa, deve ter sido pintado cerca de 1635. (:::) Eugénio D'Ors chegou mesmo a admitir que a sua força anunciava a pintura de Goya. Se Goya supõe Velazquez, Domingos Vieira supõe a pintura espanhola contemporânea." (8)
Josefa de Óbidos, pintora de naturezas-mortas duma enorme beleza descritiva, pintou "o Êxtase Místico de Santa Teresa em 1672, para o Convento das Carmelitas Descalças," (hoje na Igreja de Cascais), com "uma certa carga espectacular irradiando da composição," que nos mostra a "sua origem, na distribuição e tratamento dos efeitos luminosos e cromáticos."(9) "É no retrato e na natureza-morta, esta última não isenta de simbólica religiosa, que a pintura seiscentista melhor se afirma (...) extremamente decorativa, a pintura dos tectos é outra modalidade em destaque, com repercussão no vocabulário da azulejaria, renovando-se na figuração do azul e branco (...) alargada a áreas de significação alegórica e narrativa (...) suscitando um campo de escrita complementar da pintura." (10)
O Palácio dos Marqueses da Fronteira (...) é também um repositório de azulejos nacionais e holandeses, integrando um arco temporal que abrange o barroco do século XII e XVIII. (...) A galeria dos Reis e os painéis dos Cavaleiros" demonstram "as potencialidades da representação figurativa em grande escala. Os retratos equestres foram largamente divulgados pela pintura barroca, sendo bem conhecidos os de Velazquez. A figura atravessada do Cavaleiro, dominando a fogosidade da montada, pretendia exprimir o dinamismo do espírito barroco e associava-se às qualidades da nobreza e comando militar." (11)
Aliada a todo este esplendor da arte pictórica estava a música, como nos é dado constatar. Na Academia dos Singulares, a par dos poetas e pintores estavam, em 1670, "dois outros académicos, músicos e compositores, ligados mais ou menos directamente à Corte. Sebastião da Fonseca e Paiva (Lisboa 1625- Palmela 1705), que acompanhara D. Catarina de Bragança a Inglaterra em 1662 como Mestre Capela. (...) E António Marques Lêsbio (Lisboa 1639-Lisboa 1709), contrapontista famoso e muito elogiado por Barbosa de Machado, (...) trabalhava na Capela Real em 1692, sendo nomeado bibliotecário da Real Livraria de Música em 1692 e Mestre da Capela Real em 1698. Versado em latim, grego, italiano e castelhano, possuía vastíssima erudição." (5)
A linguagem da poesia barroca diz todo o primor, decoração, vigor, exaltação, luz, cor e som, da arte desta época. Assume-se como construção. Adorno e festa, para a qual se colocam "brincos retóricos" da mais fina filigrana de ouro ou de prata. Capta o tom dialogante das gentes e também um tom épico com pendor lírico. Transforma-se numa "estátua" rica de ornamentos, num quadro, num retrato sumptuoso, num jogo labiríntico, emblemático, onde se confirma o preceito de Horácio: "Ut Pictura Poesis erit." "Busca ansiosa de lumes e formosuras",  que fazem do Lampadário de Cristal, de Jerónimo Baía, "a mais vistosa girândola" dessa competição pirotécnica que é a Fénix Renascida". (12) Na sua constante dualidade, porém, a linguagem da poesia barroca entoa um canto triste e fúnebre, apela à visão da "miséria" que todo este esplendor transporta. A beleza que se transforma em ruína, o engano em desengano, a alegria em tristeza, a vida em morte.
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(Continua) p.3