sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 9

A' Senhora condeça de Roccaberti, sobre a Deshonra, e sobre a Calumnia.

"A Deshonra a que podemos chamar verdadeyra he a que consiste no interior do homem, formando-se do crime que nos separa da origem da honra que he de Deos, fóra do qual não há mais que Deshonra, e que Miseria. A Deshonra porem em que V. E. me falou he a que consiste no exterior de huma pessoa, e que se origina da opinião das outras. Estas duas qualidades de Deshonra ordinariamente não andam juntas, porque muitos homens indignos, e por consequencia infames diante de Deos são louvados, e honrados no mundo pelas suas más obras, ao mesmo tempo que outros que são bons, e favorecidos do Amor de Deos são calumniados, e aborrecidos no mundo pelas suas acçoens excellentes. A tal ponto de capricho, e de injustiça chega o juizo dos homens. Sabendo eu muito bem que a reputação, e o louvor que os homens dão não he mais do que o vento, persuado-me a julgar que as calumnias de que elles nos carregão são da mesma naturesa. (...)
He bem verdade que muitas vezes a Calumnia se introduz fortemente na pessoa calumniada com tanta vehemencia que a mata, porem não he a Calumnia que faz a chaga, he a imaginação do calumniado a que se fere, e a que fazendo depender a sua felicidade da opinião dos outros, causa a si mesmo o mal que outra nenhuma pessoa lhe podia fazer. (...)
O Sábio despresará não somente este mal imaginario, porem o mesmo remedio, e quando os seus amigos o vieram consolar a respeito do mal que todos dizem delle, creyo que lhes dirá que vão applicar o remedio onde o mal se acha, que será o mesmo que diser-lhe que se acha na malignidade das pessoas que o caluniarão, e na temeridade dos juisos que as crerão. (...)
Exaqui como se havia de considerar a Calumnia nela mesma, (...) não deve o calumniado despresar os meyos que se lhe oferecem de desengana-los, e de satisfase-los; entendendo sempre que o conseguirá muito melhor pelo caminho de uma integridade constante, e tranquilla, que por vias estrondosas... (...) A innocencia, e a confiança que a acompanha devem conservar-se em tal forma superiores aos ruidos populares, que não se movão mais a estes, do que as Estrellas se movem aos ventos que se formam na Região mais inferior do ar. (...)
He preciso que cada hum se incline ao bem por odio do mesmo vicio, e não por medo da deshonra, a qual não he mais do que huma sombra que desaparece infalivelmente aos rayos da virtude.
Exaqui, Senhora, o que entendo seriosamente da Deshonra, e da Calumnia..."

Vienna de Austria, 2 de Dezembro de 1736
(Carta LI, Tomo II, pp.584/88) 
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A desonra verdadeira é a que consiste no interior do homem, e se a calúnia pode matar de dor, a integridade constante e tranquila põe a descoberto a verdade, tarde ou cedo. A inocência e a confiança devem ser superiores às vozes populares, porque os raios da Virtude fazem desaparecer todas as sombras. Devemos, ao ouvir a malignidade, não deixar que a imaginação possa ferir irremediavelmente a nossa alma. É o conselho de um homem das "luzes" com o qual aprendemos ainda hoje.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 8

A' Excellentissima Senhora Condeça de Roccaberti, com a Historia de Zoroastro.
(...)
"Suponho que viajando Cyro Rey de Persia, em companhia da Princesa Cassandane sua esposa, chegarão á Escola dos Magos em que presidia Zoroastro. (...)
Zoroastro os diverte informando-os da vida, dos costumes, e da virtude dos Magos. No tempo em que discorre volta muitas veses os olhos sobre a estatua, e não póde disfarçar sem grande dificuldade as suas lagrimas. Observa Cyro, e Cassandane, pergunta-lhe a Princesa a sua origem, e responde Zoroastro com estes termos. Esta he, diz elle, a estatua de Selima, que me amou com tanto affecto como vós amaes o vosso esposo. Este he o lugar onde me tenho costumado a passar os momentos mais doces, e os amargos. Apesar da Sabedoria que me sugeita á vontade dos Deoses, apesar dos encantos que a  Philosophia me faz gostar (...) a lembrança de Selima me obriga quasi sempre a suspiros, e a lagrimas."

Começa o filósofo a contar-lhes a história do seu amor por Selima que era Vestal Indiana, sacerdotisa do Fogo. Para conseguir ficar junto dela e entrar no Templo, disfarça-se de mulher e torna-se sua amiga. Até que um dia foram à montanha e Selima foi raptada, juntamente com seu pai, por homens armados. Ele foge atrás deles mas perde-lhes o rasto. Não volta ao templo nem ao seu reino, e procura-a sem desânimo. Vai encontrá-la como rainha dos povos da Lycia e põe-se ao seu serviço. Luta com os exércitos contra os inimigos de Selima e vence batalhas. O amor, impossível entre ambos, devido à sua condição de estrangeiro, acaba por ultrapassar todas as dificuldades e finalmente casam. Selima morre pouco depois. Após o que ele se sente iluminado pela sabedoria e conclui que:

"A virtude he muitas veses desgraçada, e isso he o que offende os homens cegos, os quais ignorão que os males passageyros desta vida são destinados pelos Deoses, para purgar as culpas secretas daquelles que parecem os mais virtuosos. Semelhantes reflexões me determinárão a consagrar o resto dos meus dias ao estudo da sabedoria."

(Volta novamente para a Índia e vive entre os Braemenes, mas o seu irmão, que pensa que ele lhe vai tirar o trono, expulsa-o.)

"Este desterro foi para mim huma nova origem de fortuna. De nós mesmos he que depende fasermos uteis as nossas desgraças. Comecey a visitar os Sabios da Asia, pratiquey os Philosophos de diferentes Paises, aprendi as suas leys, e a sua Religião. Achey com gosto, e satisfação inexplicavel que os homens de todos os seculos, e de todos os Paises julgavam quasi o mesmo sobre a Divindade, e sobre a Moral.
Esta he Excellentissima senhora, a historia de Zoroastro. Sey que he verdadeyra invenção (...) Permita V. E. que eu invente modos de honrar." ...
Vienna de Austria, 26 de Fevereyro de 1737
(Carta XIII, Tomo II, pp. 62/3, 78/9, 80)
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Esta Carta é um conto de encantamento, no qual ressoa, talvez, a vida do próprio autor. A impossibilidade de um puro Amor que não esteja ligado à tragédia, à morte; a inveja humana que perpassa na atitude do irmão que não protege outro irmão e o expulsa da sua terra. A constatação de que a virtude é muitas vezes desgraçada. Estas reflexões filosóficas levam Zoroastro a dedicar o resto da sua vida ao estudo da sabedoria. A fazer do desterro fonte de temperança de sorte e alegria e a descobrir que os homens de todos os séculos pensaram quase o mesmo sobre o divino e a moral. (Ideias que Voltaire também defendeu) Por fim, o autor pede ao destinatário que lhe permita modos de honrar-se ao inventar este conto. A literatura como honra e dignidade para o escritor.

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 7

Ao Reverendissimo Padre D. Joseph Augusto, Clerigo Regular da Divina Providência, e Conselheyro de consciencia do Emperador Carlos VI a respeito da Modestia, e da Audacia.

(...)
Audentes fortuna juvat. Se eu não soubesse que este lugar é de Virgilio, diria certamente a V.M. que era Evangelho. (...)
No tempo em que eu era rapaz (...) imaginava-se que a Modestia era uma qualidade perfeita, e uma virtude recommendavel. (...) Para me formarem o coração, e o spirito me ensinavão as sciencias mais difficultosas, obrigando-me a distinguir as cousas, e a fazer juisos sobre ellas. (...) A Modestia desterrada das Cortes não acha mais protecção que a de hum pequeno numero de pessoas. (...)
Creyo que é evidente (...) que a Audacia he huma virtude muy propria para condusir á Fortuna. (...) A Audacia faz ruido. (...)
O homem Modesto, por muito merecimento que tenha, parece-se a hum diamante bruto, cujo valor é conhecido de poucos...
Vienna de Austria, 29 de Agosto de 1737
(Carta LXV, Tomo II, pp.355, 360/61)
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A sorte protege os audazes, mas o autor defende a modéstia como qualidade que deixou de ser estimada. Refere os tempos antigos em que era ensinada, e lamenta que esteja arredada da Corte. Numa comparação exímia diz-nos que o homem modesto é como um diamante em gema, conhecido de poucos.


quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 6

A' Mademoiselle de M. a respeito do Amor do Proximo
(...)
"Diz Simplício, Idolatra (...) que todo o homem honrado deve fazer bem a todo o mundo. Ensina Marco Antonino que a naturesa humana pretende de nós que tenhamos cuidado de todos os homens. (...) Diz Quintiliasno na Declam. V, que nós assistamos huns aos outros, e que por estes mutuos socorros cuide cada hum em aliviar ao proximo na desgraça que teme em si mesmo. (:::) Na miseria alheya cada hum se compadece de si mesmo. «Homo Qui in homini calamitoso est misericors meminit sui.» (...)
Pelo que respeita ao Amor do Proximo, estay certa em que todas as seytas dos Philosophos se unirão sobre este artigo. (...) Acabarey disendo que o Divino ou o Diabolico Platão, meteo entre as principais perfeiçoens a de amar o Proximo, e esta opinião lhe era commua com todos os Philosophos Ambulantes e Peripatheticos."

Vienna de Austria 30 de Abril de 1737
(Carta XXXIV, Tomo II, pp. 183/4/5/6)
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Recorre aos exemplos dos escritos de diversos autores clássicos para fundamentar as suas ideias sobre o bem que devemos ao próximo. Todos os filósofos foram unânimes quanto a esta questão. Apesar de classificar Platão de "Diabólico", reconhece que ele mesmo o defendeu entre as principais perfeições.

terça-feira, 28 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 5

A Monsieur de M. sobre a Pedra Philosophal

(Carta em que o autor dá, em cerca de vinte páginas, imensos exemplos de alquimia baseando-se em muitos autores e referindo-se, ironicamente, a um Milorde, cuja fortuna não poderia explicar-se se não existisse a Pedra Filosofal.)
(...)
"Não he minha tenção persuadir-vos a que existe no mundo a Pedra Philosophal, porem á vista dos sucessos que contem a minha carta, provados, e aprovados na presença de tantas pessoas dignas, referidos, e confirmados por tantos autores famosos; (...) da onde he que vem tanto ouro... (...)
Os meus discursos são livres, e tenho julgado nos de todos a mesma liberdade. O que vos posso segurar he que se defendo a existencia da Pedra Philosophal que a não possuo, e ainda que credes a minha palavra, eu a afirmo tambem nesta occasião com juramento."

Vienna de Austria, 15 de Fevereyro, de 1738
(Carta VIII, Tomo III, pp.40, 58, 59)
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Note-se a defesa de que os seus discursos são livres e de como respeita nos dos outros a mesma liberdade. Esta livre expressão que advoga na escrita, só lhe foi possível porque viveu numa sociedade de livre pensamento.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 4

A Mademoiselle de M. sobre o poder do Ouro, com a explicação da Fabula de Jupiter, e Danae
(...)
"Disse hontem que o Grande Jupiter, pay dos Deoses, e dos homens, na achára encantos mais poderosos, nem feitiços mais singulares que o de transformar-se em chuva de Ouro, para poder conseguir o amor da bella Danae. (...)
Tudo o que ouvistes he ficção. (...) Ovidio e outros Poetas do seu tempo se derão ao officio de fabrica-las. Seguirão-se muitos que os imitarão (...) Porem depois da morte de Esopo, que foi admiravel nesta materia, se perdeo a raça verdadeyra dos homens fingidores. (...) Vive ainda hum verdadeyro fingidor, cujas obras judiciosas serião justamente imuladas do mesmo Ovidio. Fallo do illustre Fontaine, de que não há por ora outro exemplo."
Conta em seguida a história de Dánae que não correspondia ao amor de Júpiter devido a ser muito virtuosa; "alem disso estava sem liberdade, encerrada por ordem de Acrisio e guardada pelos seus criados." Jupiter terá feito chover moedas de ouro pelos criados de Dánae e estes facilitaram a sua posse.
"O ouro tem provado (...) a sua força. (...) Lá em tempos passados, se abrirão as portas do Inferno a hum ramo de ouro, que abrandou as feras, e diabollicas Divindades daquella horrenda habitação. (...)
Hum pomo de ouro poz toda a Corte Celeste em rumor, fazendo de tres Deosas que vivião, antecedentemente, em boa intelligencia, tres inimigas irreconciliaveis. Outro pomo de ouro occasionou a fatalidade de se render Athante a Hipomene. (...)
Quantos assim que virão o Bezerrinho de ouro o adorárão? De todo o Povo de Israel somente a Moisés e Josué exceptua o Texto Sagrado. Quando se erigio em Babilonnia a Statua de ouro do soberbo Nabuco, só tres ou quatro pessoas, diz Daniel, ficarão em pé, sendo certo que a multidão se postrou. (...)
Os sábios o desprezarão, e Cicero o fazia quando considerava que Mercadores, e outras gentes de nada, erão mais ricos que os Scipioens e que os Delios. Por essa Razão querendo Cayo Cesar tentar, ou premiar ao seu modo a Philosophia de Demetrio, lhe ofereceo duzentos Talentos de regalo, porem rindo-se o Estoico do seu nescio pensamento o desprezou. (...)
O poder do ouro vence tudo, porem não vence a todos. Não he necessario ser sabio, basta que seja o homem honrado para resestir-lhe."

Vienna de Austria, 10 de Março de 1736

(Carta XI, Tomo I, pp. 163/4/5/6/7/8) 
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Com o exemplo da Fábula de Júpiter e de Danae o autor reforça a sua ideia como o poder do ouro abre todas as portas, até as do inferno. Narra várias histórias de deuses pagãos aliadas a outras bíblicas e à história de Roma. Os sábios, a exemplo de Cícero, desprezaram-no, e quando Caio César quis premiar o filósofo Demétrio, este estóico recusou, e riu-se do seu "nescio" pensamento. Elogia os escritores de Fábulas e menciona Fontaine como seu contemporâneo, "um verdadeiro fingidor." Conclui que se o ouro vence tudo não vence a todos. para lhe resistir basta que se seja honesto, não é necessário ser-se sábio.

domingo, 26 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 3

Ao Senhor Barão de Hollembourg, a respeito das riquesas.
(...)
"O corpo he unido ao spirito, o spirito he o que somos, e os bens que a elle pertencem são aos que podemos chamar nossos propriamente. He tão grande porem a imprudencia dos homens, que buscão com mayor cuidado os bens que estão mais longe, fasendo menos caso dos que estão perto sendo estes os essenciais. Pelos bens do corpo se despresão os do spirito, e pelos da fortuna se despresão os do corpo. (...) Estima o Mundo as riquesas como se nellas consistisse o soberano dos bens.
(...) O desejo immoderado das riquesas, como diz S. Paulo, esse he verdadeyramente a causa de todos os dannos. (...) Os verdadeiros bens são aquelles que fasem bons aos que os logrão, e isto he o que as riquesas jamais fasem. (...) Assento em que as riquesas neste mundo fasem muito mais mal do que bem. (...) Não há composto mais bello que o da sabedoria com as riquesas. Assim o disia o rico e sabio Salomão: a sabedoria he boa com huma herança; porque se póde estar a coberto á sombra da sabedoria, e á sombra da riquesa. Eccles. 7. Vs.11.
As riquesas he certo que cobrem aos que as teem, porem, da mesma forma que as cascas cobrem os caracoes carregando-os. (...) Quando parecem mais seguras então fogem voando como a Aguia, diz Salomão, não havendo conselhos sabios, nem atençoens possiveis para embaraçar os seus voos em mil acidentes inopinados. (...)
O homem sabio he o único que não comprará as riquesas pelo preço que ellas se vendem. (...) A medida justa das riquesas he aquella que basta para o uso. Todas as que são superiores ao uso o não tem. Este he o preço, e esta he seriosamente a estimação que dou ás riquesas. He bem differente o que dou sempre á honra. (...) Quem não sabe viver com as que tem sendo bastante, he ignorante: Quem deseja, e trabalha por augmentar ás necessarias he desgraçado."

(Carta LXXI, Tomo II, pp. 414-15/417-8-9/420-21)

Vienna de Austria, 25 de Septembro de 1737
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"Pelos bens do corpo se desprezam os do espírito," e eles constituem a verdadeira perda do Homem que as carrega como caracóis às costas. Sábio é o que não compra as riquezas pelo preço da perda do seu Eu. A justa medida é a medida certa. É ignorante quem não sabe viver tendo o bastante, é desgraçado quem as quer superiores ao uso. A honra é para o autor a verdadeira riqueza, essa não tem preço.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta 2

Ao Senhor C. de R. sobre a Glória do Mundo

"Em quanto as acçoens honradas se estimarão no mundo amou-se a honra. Cícero compoz hum Tratado de Gloria, e Bruto compoz outro da Virtude. Estas obras perecerão...(...) Não vejo que sejão muy sentidas estas perdas. Hum Livro que descobrisse o segredo de fazer ouro...(...) seria mais curiosamente buscado e bem aceyto, Qua tudo o que até agora se escreveo a respeito da Gloria e da virtude. (...) Conheço e V. Ex. também conhece aqui hum dos principaes senhores, que duvida de que Alexandre Magno existisse no mundo, supondo que foi hum homem chimerico como Agramonte, ou como Amadis de Gaula. (...) Todos os tempos tiverão deffeitos e enfermidades, porem sendo necessario confessar que há huns males mais asquerosos do que outros, pode-se dizer que os achaques do nosso seculo são os mais grosseyros, e os mais corruptos...(...) Deyxe-me V. Ex. dizer que ao interesse se sacrificão hoje os pensamentos, as palavras, e as obras... (...) A mesma Ambição presentemente se alistou ao serviço da Avareza. Eleva-se á medida do muito ou do pouco que pode ganhar. (...)
Falo dos Antigos que viverão antes da decadencia da sucessão de Atalus, e que acabarão antes que as riquezas da Asia os podesse corromper. Os Consules, e os Dictadores, que eram Ministros dessas Eras, não se prezavão de acumularem Thesouros. A sua riqueza consistia na posse da honra, e na satisfação da Gloria que merecião. A pobreza destes Varoens faz ao mesmo tempo inveja, e piedade na primeyra Decada de Tito Lívio. (...) Crião que a Gloria era o único salario que os Deoses, e os Heroes, podião esperar do reconhecimento dos mortaes. Aristoteles entendeo isso mesmo muitas vezes nos seus Livros das Ethicas. Diz este Philosopho que a honra he o único bem que se póde dar aos homens que tem tudo. Os gregos, e os Romanos forão do mesmo parecer. (...) As maximas de Roma Trimphante, não são maximas que tenhão uso no nosso tempo são neste tempo acçoens ridiculas. (...) V. Ex. estima a Virtude por si mesma, com tudo sem rogar aceyta a Gloria. (...) V. Ex. estima a Virtude por si mesma, e estima a Gloria pela Virtude."

Vienna de Austria, 22 de fevereyro, de 1737

(Carta VIII, Tomo I, pp.106/7 /110/11/12, 115, 123/24/25)
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Acima de tudo, na antiguidade, amou-se a honra e Cícero e Bruto escreveram sobre a Glória e a Virtude. Ambas consistiam no seu apreço insubstituível. Aristóteles no seu livro de Ética diz que é o único bem que se pode dar aos homens que tudo possuem. O escritor lamenta que no seu tempo essa prática seja uma acção ridícula. Implícita está no seu discurso a condenação dessa atitude. Ele é um filósofo que, com franqueza, expõe, nas ideias dos Antigos, as suas, necessárias à época Moderna. 

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

"O Amigo he outro eu."

Carta 1

Ao Senhor Barão de Hollembourg, a respeito da amisade.
(...)
"Sem virtude nenhuma pessoa he capaz de Amisade, e sem merecimento real não há pessoa que seja digna della. (...) Se queremos conservar por muito tempo os nossos Amigos, tomemos tambem muito tempo para fazer a sua união. O Amigo he outro eu.
(...) He preciso que façamos as Amisades em tal fórma, que possamos achar nellas a certesa do bom exemplo, as doces consolaçoens para os trabalhos, as generosas assistencias nas opressoens, sem que seja necessario pedi-las, espera-las, nem compra-las, e finalmente huma variedade infinita de gostos sempre novos, (...) se a reputação do Amigo he atacada na sua ausencia devemos defende-la. (...) A Amisade deve ser hum socorro para a virtude, e não uma companheyra para o vicio.
(...) Como creaturas pertencemos ao nosso Creador, como vassalos dependemos do Estado, e como homens devemos respeitar as nossas Familias. Nascendo desta fórma com a qualidade de Creaturas, de Vassalos, e de Parentes, contrahimos depois disso os Amigos. (...) Ainda quando já de todo está extinta, se deve conservar o respeito por huma Amisade que foi. Depois da quebra ainda há obrigaçoens a praticar, e julgo que são as mais dificultosas; porem a honra, e o nosso mesmo interesse nos devem esforçar para as cumprir. (...) Os segredos que se confiárão reciprocamente, sepultados para sempre em profundo silencio não podem ser revelados , sendo como mysterios sagrados que não he licito profanar. (...)
Ditoso o homem que póde achar hum Amigo verdadeyro, porem muito mais ditoso aquelle que he dotado das qualidades necessarias para ser fiel amigo de quem o busca."

(Carta C, Tomo II, pp. 568/71/574,577,/8)
Vienna de Austria, 27 de Dezembro de 1737
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Haverá na Literatura Portuguesa uma tão clara definição do que é ou deve ser um amigo? "O Amigo é outro eu", pressupõe que sujeito e objecto coexistem num só. A ética que está subjacente mostra-nos a grandeza dos sentimentos do autor. Ele enumera as qualidades de um verdadeiro amigo, a quem não é preciso pedir, esperar ou comprar, a ajuda necessária nos momentos difíceis. A honra exige que os segredos partilhados sejam como mistérios sagrados, que não é lícito partilhar se a amizade termina. Feliz o homem que possui um Amigo verdadeiro, conclui, mas mais ditoso é aquele que é dotado de qualidades para ser o Amigo que se procura.

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

"Swift, talvez quisesse fazer a mesma distinção, no seu exemplo da aranha e da abelha. A abelha de Swift, em The Battle of the Books, diferente da abelha de Bacon no Novum Organum, representava os antigos, que se distinguiam na inspiração poética e na linguagem, as asas e a "voz" da abelha. A sua opositora, a aranha, por outro lado, é um construtor que mostra grande habilidade na ciência e na matemática. A abelha queixa-se de que a aranha não constrói com os materiais adequados." (pp.155) Encontramos na Dedicatória de Cavaleiro de Oliveira ao I Tomo das Cartas, o seguinte: «Jamais a teia de uma aranha por ser trabalho próprio, merecerá aos prudentes o aplauso que dão ao Favo de uma abelha, sendo obra fabricada das lágrimas que rio Aurora, e que recolherão as flores. Amparados do patrocínio de V. Ex. poderão os meus voos, ainda mais rasteiros que os das abelhas, produzir alguma novidade útil, ou alguma novidade engraçada.»
Está traçada, nesta Dedicatória, de certa maneira, a opinião filosófica de Oliveira. Esta metáfora da abelha e da aranha que, possivelmente, leu em Swift, mostra-nos a defesa dos antigos. Era um céptico. Os modernos teriam que ser "prudentes" nos "aplausos" à teia da aranha se comparados com o trabalho do favo da abelha. Ele voa mais "rasteiro" que as abelhas (antigos), mas voa. Não se sente ainda aranha (moderno). Mesmo que apele à razão, a Razão de Deus, será sempre mais forte. Era moralista e Cristão.
Os filósofos modernos procuravam um movimento genuíno em direcção a algo melhor ou diferente, e talvez único na história. No entanto, Racine imitou os antigos no teatro. La Bruyere diz que na arte existe um ponto de perfeição, tal como existe na natureza; um ponto de excelência ou de maturidade. Boileau aconselhava: "amai a Razão, deixem que as vossas obras escritas sejam impregnadas pelo seu brilho e valor."
Estava a nascer uma nova Ideia de história, a surgir uma nova visão que dava uma nova luz ao que os homens eram capazes de conseguir na terra, com ou sem a ajuda de Deus.
Leibniz acreditava no progresso das "almas racionais" em direcção a "um mundo moral digno, dentro de um mundo natural." Um mundo sempre em perpétuo movimento. A ideia do devir, já audível no pensamento do século XVII, tornou-se cada vez mais forte no século XVIII. Ernst Troeltsch e outros, afirmaram mais tarde, que o Iluminismo representou o maior impulso do pensamento deste século. Foi o virar da esquina de Idade Média para a Idade Moderna da Europa com um pensamento naturalístico - científico individualista, contra o pensamento sobrenatural - mítico - autoritário do passado. Kant, afirmou o iluminismo, e o mesmo fizeram os philosophes franceses, mas também lhe chamou "uma época crítica, contra o dogma e a autoridade." Para Diderot o século XVIII era uma "época filosófica" onde os homens encontravam as suas leis racionais, mesmo na ética, dentro da natureza e não nos livros do passado. Na Encyclopédie, D'Alambert colocou a natureza antes do homem, no seu sistema, rompendo com Bacon. A ciência da natureza era grande no século XVIII, mas não absorvia a filosofia moral e política.
Nas vésperas da Revolução Industrial, seguindo Bacon; Diderot imaginava uma sociedade em que as artes mecânicas, aliadas às ciências, dariam poder sobre a natureza, para benefício do homem. "Ensinemo-los a pensar melhor de si próprios," dizia a propósito dos artesãos. D'Alembert escrevia:
«A sociedade não deve depreciar as mãos que a servem.» Os Editores da Encyclopédie, punham o homem no centro do seu universo - "o homem é o único ponto de começo, e fim para o qual tudo tem que reverter." Supondo que o homem era banido da face da terra, não haveria ninguém para contemplar a natureza, e a escuridão e o silêncio voltariam a imperar. É unicamente a presença do homem que torna significativa a existência dos outros seres," escrevia Diderot. O homem não era nesta nova antropologia, um modelo da perfeição, mas o seu destino histórico, a sua natureza, a política, eram agora o centro do interesse intelectual.
Voltaire, no seu. Essai sur les moeurs, dizia que a natureza foi sempre a mesma, em toda a parte; o homem, de um modo geral, foi sempre o que é. Pensava o mesmo quanto à ética e à estética e também quanto à natureza física, era Newtoniano. Preferia Locke a Descartes, e acreditava numa forma e num gosto artístico "eterno" e perfeito.
David Hume rejeitou todas as ideias de gosto eternas e imutáveis "fixas pelos raciocínios à priori".
Alexander Pope escreve uns versos (1730) que se tornam proféticos «Conhece-te a ti próprio, não te atrevas a olhar Deus de perto: / O verdadeiro estudo da Humanidade é o Homem." De facto a questão do homem tornou-se "própria" do pensamento do século XVIII." Não só os humanistas mas também os filósofos da França e da Alemanha colocaram a antropologia no centro do seu interesse. O estudo do Homem destituiu a filosofia naturalista do século XVII. Rosseau viu oculta no "homem natural" a semente do amor próprio. Em 1755, escreveu ele: por causa do orgulho, pela insaciável ambição e do desejo de prestígio e promoção, fazemos «muitas coisas más e muito poucas boas.» Poderia, talvez, ter sido Oliveira a escrevê-las. Ele foi também um homem das "Luzes."
Termino com este texto adaptado, "passim", de Franklin L. Baumer, para dar uma panorâmica do Pensamento Europeu Moderno - em que Cavaleiro de Oliveira viveu - e com Norman Hampson que diz: "... Les paroles de Locke, reflétant une nouvelle confiance dans l'homme et dans l'avenir les stimulèrent dans le poursuite du Graal moderne". Terá procurado Oliveira o seu Graal Moderno?
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(continua)

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Doravante, estendo confiante as  asas pelo espaço;
Não sinto Barreiras de Cristal ou de Vidro;
Abro caminho nos céus e elevo-me nas alturas.
Giordano Bruno (1)

Do carácter dos Iluministas - Antigos e Modernos

«Em consequência de de uma sucessão de "revoluções," as de Copérnico, de Galileu, de Descartes e de Newton,» surgia uma "nova natureza" criada por um espírito geométrico, que levantou, por sua vez, problemas sobre a natureza humana.
Francis Bacon falava sobre o conhecimento para a "libertação da condição humana". Sonhava com "um novo mundo intelectual." Descartes considerava que podemos encontrar uma filosofia prática. Calderon de la Barca interrogava: "Não é a vida um sonho ao qual outros sonhos se vêm juntar, e dos quais acordamos ao morrer?"
A crise intelectual do século XVII pôs tudo em dúvida; o próprio conhecimento. Da dúvida surgirá a luz, a procura da verdade, «o apelo à "Razão"...»
Pascal em oposição às razões Metafísicas, torna-se um precursor de Kierkegard e Bergson.
Saint-Simon queria restaurar a alta nobreza, e, La Bruyére, burguês, colocava em questão toda a sociedade. Fenélon sonhava com uma sociedade ideal e advogava uma monarquia constitucional.
Milton e Espinosa tinham fé no poder da verdade. Bayle levou a tolerância tão longe quanto podia no século XVIII.
Jonathan Swift, nas Viagens de Gulliver, satiriza Holbes, Petty, Locke, Grócio, Leibniz, e Boulainvilliers por quererem fundamentar as leis como "naturais". Leibniz ao inventar o cálculo infinitesimal afirma que tudo no mundo procede matematicamente. Fontanelle defende "o esprit géométrique" que se expande mais do que nunca; que a ordem, a clareza, a precisão e a exactidão. Preferia a prosa à poesia, e não acreditava sequer na possibilidade da evolução moral. Observa-se isso num dos seus diálogos entre Montaigne e Sócrates. Acreditava que "as pessoas nunca se conformarão com a ignorância quanto ao seu futuro... nunca se satisfazem simplesmente com serem felizes no momento presente." Para Montaigne, o mundo tornou-se dez  vezes mais louco e corrupto do que nos tempos antigos.Afirmava que a essência do homem está no coração e o coração não muda (ponto de vista augustiniano nos fins do séc. XVII, acerca da natureza humana).
Geram-se polémicas entre filósofos Antigos e Modernos. Bodin afirma que "a natureza tem tesouros incontáveis de conhecimento que não se podem esgotar em época alguma." Hakewil dizia que: "nem nós somos anões nem eles (antepassados) foram gigantes, mas todos somos de uma estatura, salvo que estamos um pouco mais elevados, graças a eles. Formam-se dois ramos de pensamento: um religioso, mais evidente na Inglaterra e outro secular representativo da Europa.
Le Siécle de Louis le Grande, de Charle Perraut, lido perante a Academia Francesa terá precipitado a luta entre os dois campos: antigos e modernos. Os antigos não pensavam historicamente, não estavam interessados nas ciências, na filosofia natural, mas na arte, na linguagem, na literatura e na ética. Os antigos referiam-se aos gregos e romanos (Temple incluía os do oriente e até os peruanos). Aristóteles e Horácio tinham traçado as regras da arte poética, e Horácio e Vergílio eram os modelos da arte de escrever. Sir Willian Temple era céptico como filósofo e comparava desfavoravelmente os modernos com os antigos. Dizia: "não há nada de novo na astronomia ou física para rivalizar com os antigos;" ou que nenhuma academia moderna podia rivalizar com a de Platão ou o liceu de Aristóteles. Perrault baseia-se em duas hipóteses - que reconhece não serem originais - uma; é que a natureza é sempre a mesma, outra; que a velhice é sinónimo de experiência e conhecimento superior. Tal como Wotton defendia que as leis da moral cristã são superiores. William Wotton, em resposta a Temple, fazia uma distinção nítida entre as artes e as ciências, pela primeira vez, nos debates entre antigos e modernos.
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(continua)
Nota (1) in: O Pensamento Europeu Moderno, pp.76. 

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Nesses dois anos seguintes vai viver sempre com problemas financeiros. Entretanto volta a contrair segundas núpcias com Maria Eufrosina de Puechberg. Vivem no campo uma temporada, perto de Viena, e o autor prepara para publicação os seus primeiros escritos. Regressa à Holanda, "paraíso de Filósofos" em 1740, para tentar reaver papeis, e editar os seus livros. Esta, "oferecia o espectáculo único em que a liberdade de imprensa, embora não absoluta, era, no entanto, uma realidade palpável. (...) A actividade editorial em língua francesa, então língua da Europa, era enorme...(15) Porém aí, conhece dificuldades e escreverá:
«Sou dos autores que escreve para os livreiros...» (15)
(...) Há neste País muitos autores que trabalham só para viver; e a fome e a sede são as musas que os inspiram. Saboreiam um pão por seis linhas de escrita e a sua cozinha assenta sobre o número de folhas de papel que garatujam.» (15)
Em fins de Março de 1741 empreende tentativas para que a esposa e o filho, do primeiro matrimónio, se reunam a ele. Se por um lado a mulher sofre a viver com os seus pais, longe de Oliveira, por outro lado as dificuldades motivadas pela penúria em que o marido vivia, faziam-na compreender a difícil situação.
"A Frei Agostinho de Lugano expõe em carta de 7 de Julho:
«Meu senhor. Não sou obstinado, nem preguiçoso, nem Filósofo depravado. Sei o que vale o bem, sei para que é o bom, e sei o que ele merece que se faça para o adquirir. (...) Não ha formosa sem senão, porém tem tantos Lisboa (...) O maior é deixarem ali morrer de fome a todos os homens de merecimento.» (in: Cartas Inéditas, 1942. Biblos, pp. 152/3)"  (14)
Esta carta para Lisboa mostra o desespero com que Oliveira tenta reaver o dinheiro que tinha pago pelos documentos empenhados.
Em Setembro de 1741, Maria Eufrosina adoeceu. Mais tarde, as suas reminiscências colocam neste ano a sua "conversão". Oliveira tornar-se-á no "exemplo mais nítido de repúdio da tradição religiosa nacional antes do liberalismo." (16) Mesmo que ainda a defenda contra certos "argumentos reformistas" verifica-se que "o seu pensamento já aplica à fé todas as teorias da moderna filosofia." A presença do cepticismo francês é de fácil e conveniente verificação. Faz a apologia da Razão como fonte do conhecimento, «da liberdade de discorrer» das «leis sagradas e invioláveis da consciência.» (17)  
"Em Outubro de 1742 participa a Barbosa de Machado a morte recente da mulher. (In: Cartas Inéditas) (...) Francisco Xavier terá encontrado nela o equilíbrio moral, a fonte de fortaleza que o anima na luta contra a adversidade (...) a ela confessa dever «as verdadeiras e úteis mudanças» da vida". (18) Tinham vivido pouco mais de um ano juntos.
Saiam do prelo as Cartas Familiares, o I Tomo editado em Amesterdam em 1741 e o II e III Tomo em Haia, em 1742. Em Portugal só seriam publicadas em 1855 e não na sua totalidade, porque foram muitas as Cartas proibidas. Vamos ler excertos de algumas delas, e torná-las nossas, na estima e respeito pelo autor.
A selecção das Cartas fala por si. Retirei as saudações de despedida, conservei os cabeçalhos e as datas. Procurei o Ser e o Devir nas epístulas, naquilo que considerei essencial ao tema escolhido Elas serão o retrato do ser moral, e de um tempo histórico e filosófico: - O século das Luzes - que, um português, Cavaleiro de Oliveira, viveu em Viena, Holanda e Inglaterra.
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Notas:
(15) RODRIGUES, Gonçalves, António, O Protestante Lusitano, Coimbra, MCML, pp.83, 86.
(16) Idem, in: Prefácio
(17) Idem, pp.147.
(18) Idem, pp.80,81. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Esperava, possivelmente, que fosse o conde de Tarouca o pai que ele não teve. Um amigo e protector. Mas o conde já tinha junto de si o arquitecto Inácio Mauro Valmagini, que o ajudava na sua secretaria. Com ele, estava também um irmão, o abade Valmagini que se prestava a dar todo o apoio necessário. Estes irmãos italianos, de facto, já ocupavam o lugar para o qual Cavaleiro de Oliveira tinha sido indigitado. A cadeira de seu pai não estava vaga, essa era a realidade. Os italianos eram pessoas prestáveis ao conde, tinham um temperamento servil, que Oliveira abominava. A empatia de Tarouca não foi imediata nem favorável. Mandou-o aguardar umas semanas até tomar posse das funções. A sua intenção seria ir conhecendo o novo secretário. Quando lhe pareceu que o conhecia, negou-lhe a sua tomada de posse do cargo.
Entretanto, Cavaleiro de Oliveira começou a fazer vida de sociedade. Apresentava-se com o seu hábito de Cristo, tinha recebido algum dinheiro da herança de seu pai, e vivia na embaixada, num quarto junto da secretaria. Apresentava-se e assinava como secretário do embaixador, o que de facto não era, e vivia num mundo de ficção criado por si mesmo porque, segundo conta, todos o recebiam bem. Ia à ópera, ouvia concertos de boa música e convivia com a mais alta nobreza. Algumas dessas relações poderão ter sido mais do que simples amizade como, por exemplo, a da  Princesa da Valáquia. Com ela despendia quantias impróprias para a sua situação indefinida. Foi padrinho de uma filha dos príncipes e, em casa de estes compadres, viria a ficar quando o conde de Tarouca lhe deu ordem de regresso a Portugal.
Se o comportamento de Oliveira não agradou ao conde de Tarouca, o embaixador seria, igualmente, uma verdadeira desilusão para o filho de José de Oliveira e Sousa. Todos os sonhos da sua vida se desmoronavam. O conde jogava a dinheiro e tinha dívidas avultadas. O seu filho pertencia, por casamento, à família do Imperador e era à corte de Viena que servia.
Oliveira vem a verificar que os interesses de Portugal não estavam devidamente salvaguardados e que, havia documentos da embaixada que tinham sido empenhados. Na posse deste segredo ele torna-se testemunha dos desmandos deste nobre, de famílias poderosas no reino. "A casa de Alegrete recebera o nome do conde aureolado de Glória e determinara manter essa glória em incorrupta limpidez. (...) Contra Oliveira se empregariam todas as armas empeçonhadas da grande casa ofendida." (14)
Entretanto, Oliveira, com boas intenções como o vão comprovar as suas Cartas, pagou em Viena dez mil trezentos e oitenta cruzados, para ter na sua posse os documentos de Portugal, e desloca-se a Amesterdam para reaver a «Cópia da secretaria do Conde de Tarouca» que estava penhorada pela quantia de quarenta cruzados.
O conde de Tarouca morre subitamente, a 29 de Novembro de 1738, e Oliveira, na esperança de se reabilitar perante o Rei, de todas as calúnias sofridas, escreve-lhe:
"A minha razão me guia, e a minha justiça me tem sustentado" (14)
Como não obtém resposta para as esperanças de vir a obter o seu cargo que, por direito lhe pertencia, nem o dinheiro que tinha sido despendido, vai escrever uma carta a sua mãe que segundo António G. Rodrigues é a prova mais evidente da sua inocência. Nela "latejam todas as cordas da sinceridade e da piedade filial, duvidar da boa-fé desprevenida, da honestidade fundamental que presidiu aos actos para os quais Francisco Xavier de Oliveira pedia a aprovação Régia, não é possível." (14)
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Nota:
(14) RODRIGUES, Gonçalves, António, O Protestante Lusitano, Coimbra, MCML, pp.32, 40, 42,45.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Nas Memórias das Viagens, I Tomo, publicadas em Amesterdam, em 1741, diz-nos Oliveira logo no "Prologo ao Leytor":"
«Que sejas amigo ou inimigo basta que sejas Portuguez para saberes que desde a idade de doze annos fui inclinado a escrever memórias (...) ouve hum agudo trilema de Plinio que te persuade a seres benevolo...» (p.4)
Ao chamar a atenção para as situações embaraçosas que vivia, recorre a Plínio para pedir ao leitor que seja benévolo, quer seja amigo ou inimigo, basta-lhe que seja português. Ele precisava de quem o ouvisse, e tivesse compaixão pela sua desdita.
Já então ele sentia que tinha inimigos, ao contrário do que acontecia quando vivia em Lisboa. No mesmo livro ele escrevia:
«Recebi ao mesmo tempo a triste notícia do falecimento do meu pai, e a honrosa insinuação do Conde de Tarouca(...) para ir tomar posse da sua secretaria, em que meu pai tinha servido.(p.4) No tempo mais aprasível do anno, no dia 19 de Abril pela manhã (...) troquei a formosa situação (dezassete anos que eu tinha servido a sua Magestade nos Contos do Reino) pela triste morada da Balandra (a balandra chamava-se Juffr. Anna, e era de Monsieur Bourguin) em que embarquey. (p.5) Em doze de Maio, logo pela manhã começamos a avistar as costas da Holanda. (...) Pelas quatro e trinta minutos da tarde fundeou a Balandra no Porto do Texel, que é uma ilha Setentrional da Holanda junto ao Golfo de Zuiderzée. (pp.26) (...) Eu tinha tomado a determinação de desembarcar no primeiro Porto.»(pp.28)
"Doze dias de permanência na Holanda bastaram-lhe para entrar em relações com gente grada. Em Haia visitou D. Francisco da Liz, riquíssimo judeu de origem portuguesa nascido em Inglaterra...(...) e o embaixador D. Luís da Cunha ... (...) De volta a Amesterdam, fez novos conhecimentos entre hebraicos: Jacob Henriques Medina, Abraão Cohen Rodrigues, pregador da sinagoga portuguesa, e Álvaro Nunes da Costa, cuja família servira oficialmente a corte de Portugal na Holanda." (13)
Quando da sua chegada, sentia-se que Cavaleiro de Oliveira ainda estava cheio de "confiança na sua boa estrela" (13). Não lhe desagradava "a perspectiva de uma carreira diplomática, para a qual não lhe faltavam a experiência burocrática e larga cultura e lhe sobravam o verniz social. (...) Ninguém como ele estaria preparado para aceitar os ensinamentos do experimentado diplomata em cuja «aula» esperava «beber como na fonte as sensatas postilas de Cícero, os retóricos documentos de Quintiliano, a certeza poética de Vergílio, a tradução fidedigna de Homero» (in: Cartas Inéditas, Biblos, 1935) "O seu entusiasmo ia ao ponto de invadir os domínios do ditirambo: Era «o nosso Cícero português, excedendo em muitas coisas ao Latino...» (13) 
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Notas:
(13) RODRIGUES,Gonçalves, António, O Protestante Lusitano, Coimbra, MCML, pp.13,14,15.

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Sabe-se, no entanto, que o ambiente de Lisboa também tinha o outro reverso e que Cavaleiro de Oliveira viveu as aventuras próprias dos amores juvenis daquele tempo, em que o exemplo da devassidão dos costumes vinha do alto. Do rei, dos conventos, da nobreza, do clero, com, e o povo. O que o levaria a classificar Lisboa como "fermosa estrivaria". Ele mesmo contará esses namoros, "à margem dos mandamentos". A paixão pela cigana Vitorina, o amor por uma jovem judia que morreu queimada em auto-de-fé, "arrancada por assim dizer aos seus braços pelo conde de Povolide e dois esbirros da sua laia" (10), e "o seu romance com Antoninha Clara, tomada em hora de arrufo a D. António Manuel, irmão do conde de Vila Flor." (10)
Apesar disso, vai ser defensor do casamento como "primavera dos estados" e factor de "equilíbrio psicológico". Será "em vão que se procurará a apologia, ou vestígios da prática, da infidelidade conjugal (...) o Cavaleiro era no fundo um moralista, sorridente e tolerante, mas com doutrina estabelecida, embora muitas vezes olvidada." O certo é que "nenhum escritor português dissertou com tanto gosto sobre o amor humano," (11) como ele. Casará a primeira vez em 1730 com D. Ana Inês de Almeida. Deste enlace ficou-lhe um filho que mandará ir, mais tarde, para Viena.
Tudo começava a precipitar-se na sua vida quando se dá a sua primeira viuvez a 16 de Março de 1733. "Em carta de 27 de Janeiro de 1737 a Mr. De M. dizia:" (11)
«Estou obrigado em crer que há casamentos ditosos porque já o experimentei...» (11)
O que contradiz a ideia, de que este enlace foi infeliz, advogada por Aquilino no seu estudo sobre o escritor. É a sua voz e o seu coração que fala. Aqui fica.
Talvez a sua desdita tenha começado quando o pai faleceu em Viena no princípio do ano, a 9 de Janeiro de 1734, porque, ao aceitar a oferta do cargo que seu pai tinha, deixava a sua família, amigos e "nunca mais pousaria os olhos sobre a Lisboa da sua juventude." (12) Não conheceria a Lisboa do reinado de D. José I, nem o de D. Maria I, nem o desterro e condenação do Marquês de Pombal. Outro mundo espiritual e cultural, mas incerto, o esperava.
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Notas:
(10) in: Prefácio, pp.XII, Cartas, Cavaleiro de Oliveira, Selecção de Aquilino Ribeiro, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 3ª ed., 1982
(11) RODRIGUES, Gonçalves, António, O Protestante Lusitano, Estudo Biográfico e Crítico sobre Cavaleiro de Oliveira, Coimbra, MCML, pp.12.
(12) Idem, pp.13.