sábado, 31 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Eram os fins dos tempos, tal como hoje o dia acabara, as sombras eram intensas e Ahasverus sentado num rochedo, meditava primeiro, depois misturava-lhe o sonho. Ele era o último homem da terra (pareciam os sonhos de Akira Korosawa), séculos vivera, mas sentia-se cansado e os séculos acabavam com ele. Do céu azul, das nuvens, das rosas, das águas, da terra, de tudo se despedia, às montanhas severas como a sua dor, às águias comparáveis aos seu desespero, perguntava se morreriam também!
Mas eis que lhe responde uma voz! Afinal não estava sozinho! Era nada mais nada menos que Prometeu, aquele que ousara retirar o fogo aos Deuses para o dar aos homens, e por sua ousadia, para sempre, ficara preso aos rochedos acorrentado, servindo de pasto às águias que lhe iam comendo as entranhas! Mas ele seria  de raça divina? Perguntava Ahasverus. Sendo assim, seria realmente o último ser humano podia morrer e fechar as portas da vida. Não, não poderás, disse-lhe Prometeu, a vida tem, como Tebas cem portas; umas se fecham outras se abrem, se fores o último da tua espécie, outros melhor que tu virão, não feitos de barro, mas da mesma luz. A plebe espiritual  perecerá, mas as flores do espírito essas voltarão à terra; não te recordas de Platão? Da teoria da reminiscência? Em que aprender é um recordar? Sim o espírito voltará e reinará, acabar-se-ão as guerras, os oprimidos deixarão de o ser, os ventos não mais espalharão os males da caixa de Pandora, o amor vencerá, os filósofos, os escritores proporão a justiça universal...
Porém, Ahasverus, mesmo ouvindo tudo isto a Prometeu, diz-lhe: que me importa se o mundo me sobrevirá? De que me servem lindas sedas ou "púrpuras de Sidónia", se sei que vou perecer? O que dizes é melhor ainda que o sonho de Campanella, contudo mesmo assim deixa-me morrer! Se tens tanta pressa vai, disse-lhe Prometeu. Eu tenho vivido milhentos anos, reponde Ahasverus, sinto o fastio da existência; assisti em Jerusalém ao calvário de Jesus. Sabeis o que fiz quando passou à minha porta? Empurrei-o, gritando-lhe que não parasse até à colina onde ia ser crucificado. Desde aí ouço sempre aquela voz que me diz: errarás até aos fins dos tempos. Pago o erro de ter acreditado naqueles que diziam ser o inimigo a abater, um fora da lei! Contudo, Prometeu, diz-lhe: não foi tão grave assim a tua pena, porque tu leste da vida o livro todo, podes pois , fazer uma conclusão. És privilegiado em relação àqueles a quem só foi dado ler um capítulo ou outro e não chegaram a poder concluir, porque o que sabe um capítulo de outro? Tu, mesmo assim, pudeste verificar que a vida é feita de horas melancólicas, outras alegres e mesmo felizes! À primavera que traz as andorinhas, sucede o verão, o outono e o inverno; a esse tempo de retorno e belezas te foi dado assistir! Mas Ahasverus logo lhe diz: Que sabes tu de mim? Tu ignoras a vida humana! Não ignoro não, responde Prometeu. Mas, homem, tu que és perpétuo conta-me as tuas aventuras: já sei que saís-te de Jerusalém...
Peregrinei através dos tempos, conheci raças, cultos, línguas, sol e neve, ilhas e continentes, povos civilizados e bárbaros, respirei em cada homem. Trabalho como refúgio não tive: tive sempre a moeda para cada dia; hoje não preciso dela, vou  atirá-la fora, continua Ahasverus. À eternidade, a eterna sabedoria somou a ociosidade e esta foi legada às gerações. O tempo fazia esquecer antigas línguas, e os heróis transformavam-se em mitos que se dissipavam; à própria história, restava-lhe duas ou três feições vagas. Talvez ao contrário do que disseste, Prometeu, sejam mais felizes aqueles que da vida só leram um capítulo: tudo lhes pareceu perpétuo, acreditaram que os impérios não cairiam, que tudo seria próspero e que não existiria a desolação, "acasos sobre acasos". A tudo assisti: fatalidades que fazem desejar que à noite não suceda o dia, e cheguei a confundir urzes com flores, nos olhos embaciados.
Maior castigo foi o meu, responde Prometeu. Jupiter que imperava no Olimpo, não perdoou que eu do lodo e água tivesse feito os primeiros homens. Mas isso é uma fábula, diz Ahasverus, um sonho dos Helenos! Não é sonho não. Verifica as correntes que me agrilhoam: foram fabricadas por Vulcano. Então, diz Ahasverus, essas o tempo não rói? Serão divinas? Mas, e então o que disse Moisés? Foste tu que criaste o homem? Então és tu responsável por todos os nossos sofrimentos? Mereces estar agrilhoado!
Ouve, ingrato, diz Prometeu, quem me retirou outrora as correntes foi Hércules. Pois eu tornar-te-ei  a agrilhoar, diz Ahasverus, sabes bem que eu represento os desesperos de milénios! Não mais resistirás!
Mas Prometeu disse ao último homem que ele mesmo seria o novo Hércules, e tão generoso como o antigo,  mesmo que ele diga que a glória não paga nada Prometeu continua a dizer-lhe que ele será o eleito, deixará de ser errante, será rei, e não se dará ruptura entre duas humanidades para que os novos homens conheçam o mal e o bem antigo; para isso viverás uma nova vida e melhor. E poderei olhar o sol? Pergunta Ahasverus. Olha-o, se puderes! Não posso! Vivo então o mito da caverna de Platão, em que o prisioneiro agrilhoado habituado a só observar as sombras que passam, quando liberto não consegue logo de imediato olhar o sol? Será uma aprendizagem lenta, até que o possa contemplar? Assim será, diz-lhe Prometeu. Quando as condições de vida mudarem, tu contemplarás o sol porque os homens serão livres e possuirão a natureza e tudo o que há de bom e belo. Não viverás só as sensações da vida: te-las-ás em pleno; ser-te-á dado contemplar David e os profetas e contarás todas as hipocrisias, egoísmos, vaidades e enganos que se viviam no mundo velho, contemplarás um belo céu azul e viverás auroras maviosas e noites de luar.
Então deixa-me, Prometeu, desatar-te essas correntes. Sim, podes fazê-lo, porque tu "és ainda maior que o teu Moisés", porque conheceste o mundo e voltarás a reinar nele, mesmo que o não possas nunca mudar; rei serás "de uma raça eleita". Então tudo será para "resgatar o profundo desprezo em que vivi? Como eu amarei a vida!" Não mais saberei o que é o ódio? E Ahasverus, mesmo a morrer, com a libertação, sonhava, assim como sonhavam as escravas de Sinhá Velha, quando ouviam enleadas, toda esta história Metafísica que não passava de Estilo, escrita pelo cónego Matias, que se preocupava em juntar ao substantivo um adjectivo a condizer e teimava que as letras também tinham sexo e se buscavam umas às outras.
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(continua)
      

sexta-feira, 30 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Aquilo era Um Apólogo (autêntico) , em que estas duas personagens não queriam ficar em estatuto inferior! Agulha não tem cabeça, dizia-lhe a linha. A outra retrucava que tinha razões para ser orgulhosa, pois ela é que cozia os vestidos da baronesa. Mas não! Sou eu, dizia a linha! Eu vou à frente, é que faço os buraquinhos. Que eu preencho, dizia a linha, também os tambores vão à frente do Imperador! "Você imperador"? Dizia a agulha, despeitada pois presumia ser a primeira.
Entretanto entra no sonho a costureira, que se põe a trabalhar com suas delicadas mãos, e dedos esguios como os galgos da deusa Diana; e vai unindo sedas umas às outras, até que por fim está pronto o vestido para a festa. Vestida a baronesa,  a linha sente-se muito vaidosa e diz à agulha: Vê, você fica aí, não tarda está no cestinho das escravas, e eu vou juntinho ao corpo da ama à festa.
A agulha nada tinha a dizer, mas logo surge em cena um alfinete em sua defesa e lhe diz: aprende, e não sejas tola, abres tu o caminho para ela ir depois gozar as delícias das festas! Faz como eu, que onde me espeto é para ficar! Este sonho, recorda aqueles caminhos que são abertos pelas agulhas laboriosas, mas depois são preenchidos por quem os não merece!

Quem não merecia sofrer assim era Venâncinha, que naquele dia se desfazia em lágrimas, tudo porque tinha discutido com o marido e até se tinha falado em separação! Mas para salvar a situação surge por acaso D. Paula, tia amorosa que logo se preocupa em saber porque chora a sobrinha. Deixa lá, que vou falar ao Conrado e tudo se há-de esclarecer. Assim fez. Ele tinha muitas queixas da mulher, que era uma cabeça de vento, namoradeira, tinha um admirador que lhe fazia a corte, com ela dançara e conversara na noite anterior e mais vezes; no teatro por exemplo, tudo eram sorrisos e ternuras! D. Paula diz-lhe que devia fazer ver a Venâncinha  o quanto ficava mal à reputação de uma senhora ser delicada e mostrar boa vontade aos homens! Ela era jovem e bonita, justo era que gostasse de ser cortejada. Conrado, mais convencido, estava disposto a perdoar, e D. Paula diz-lhe que a leva dois meses consigo para a Tijuca e lá se lhe recomporá o espírito! Fazem esse acordo.
Mas quem era o alegre conquistador? Já de saída, D. Paula sabe o seu nome: Vasco Maria Portela. O quê? O antigo Diplomata? Não, esse tinha agora o título de barão, e vivia fora; era o filho, "um  pelintra", regressado da Europa. A velha senhora tremia e vinham-lhe as recordações à mente. Voltou a casa e contou à sobrinha, que aceitou as condições, e, lá foram as duas para o alto da Tijuca.
Sozinhas, começaram as confidências e a sobrinha conta à tia aquela paixão que desabrochara por Vasco, delicado cavalheiro que a pretendia. Certo dia, surge ele a cavalo junto da casa da tia. Venancinha escondeu-se; ela afinal queria o Conrado! Porém a tia apreciou aquele belo jovem e à memória vieram-lhe os momentos de trinta anos atrás em que ela tinha amado o pai daquele mesmo rapaz. Ambos eram casados e mantiveram o seu casamento; tinham vivido essa paixão até a esgotarem, horas belas, doces e amargas, sorrisos e lágrimas, até que o tempo tudo esgotou. Hoje já viúva, D. Paula sentia que eram coisas "truncadas". Era uma mulher respeitada e sóbria. Através da sobrinha e da sua aventura (que não chegara a ser adultério), ela revivia o seu próprio passado, voltava atrás as páginas do livro da sua vida.
Fazia-lhe ver entretanto as qualidades do marido e como as paixões podiam trazer o "repúdio" da sociedade e o fim da instituição casamento. O medo fazia-a reponderar, e a sua alma ia sarando. O marido veio visitá-la mas pôs a "máscara"  à entrada. Fazia-lhe sentir que ainda estava magoado e não perdoava tão facilmente. A hipocrisia mesmo que disfarçada existia, as aparências tinham que ser ressalvadas. A castidade, o amor devotado ao marido, isso é que era merecedor do respeito público, dizia D. Paula à sobrinha. Até que ficou sozinha e verificava de si para si que aquelas folhas que se moviam com o vento, eram as mesmas de geração em geração e lhe traziam o eco do tempo passado.
Lembra-se Paula? Lembrava, contudo no seu coração as cinzas eram já apagadas, só na cabeça imperavam ainda. Sabia-lhe bem o ar da noite, mesmo que em nada se parecesse essa noite com aquelas que viveu no tempo de Stoltz e do Marquês de Paraná.
As escravas contavam anedotas aguardando que as memórias passassem à Sinhá Velha e que ela se fosse deitar. Nessas anedotas aparecia uma que mais parecia uma história das mitologias imemoriais. Elas contavam para Viver, e contavam-na assim: 

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(continua)      

quinta-feira, 29 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

O mesmo aconteceu a Evaristo que, quando regressou a Paris, a peça  tinha caído.Pois é ; não era de Shakespeare compreende-se tal fim! Mas também leitor, Mariana, não era Desdêmona porque, essa sim, morreu inocente e era mulher de um só amor.
Mariana casou por paixão, mas o tempo é um grande castigador, pôs a estima e a apatia no dia a dia do casal (onde havia de existir conquista, ternura, mútuo namorar), e eis que surge Evaristo, por quem Mariana se apaixonou, e que paixão! Promessas são feitas, era um amor verdadeiro. O que havia de acontecer! Contudo seu marido ausentara-se e não sabia de nada. Havia que manter as aparências, pois Mariana desejava manter o casamento. Sua mãe força de personagem  caracter, intervém e põe fim aquele adultério, que era preciso esconder a bem do visual social! Evaristo, o mais que fez foi ir-se embora para Paris. Coragem lhe faltou para lutar por esse amor que pretendeu. Tinham já passado dezoito anos quando Evaristo, movido pelas notícias da revolução, decide regressar ao Rio de Janeiro. Com o regresso, as lembranças envolvem Evaristo. Ele sim, não a tinha esquecido. Vai visitá-la e no quadro da sala revê aquela que tinha sido a sua Mariana, que ternamente desceu daquela moldura (grade do tempo que nos prende), e pousou a cabeça em seus joelhos, enlaçaram as mãos; que bom que era! O seu coração revivia, era necessário decretar a paragem dos relógios: Todos os relojoeiros deveriam aprender outra profissão. Mas não! Nada disso era possível, porque dentro do coração de Mariana a flor do amor havia "desbotado" com o tempo. Ela agora, sincera como das outras duas vezes, chorava Xavier, que partira desta vez para uma viagem sem regresso.
Mas regressar a Evaristo, Mariana não desejava. Ainda jovem, mesmo quando perto das mais frescas rosas, pois ela pertencera àquela geração dos belos cedros, não queria recomeçar de novo. Fez de conta que o não viu, e Evaristo o que fez novamente foi voltar a Paris e correr ao Odéon, reviver a sua paixão pelo teatro, mas desta vez não assistiu, pois a peça, tal como o amor, não perdurou. 

Isto de peças que caem e outras que ficam, traz-me à memória a infância e em, como é logo aí que nos iniciamos nesta peça de teatro, que é a própria vida, que põe em cena a delacção e a corrupção.
Sabe o leitor que assim é; paixões são vividas todos os anos nos bancos da escola, uma caem, outras jamais esquecem. Foi o que aconteceu ao Pilar, que nesse dia escreveu para sempre o seu Conto de Escola, pois jamais o esqueceu . Raimundo, filho do mestre-escola, disse-lhe baixinho: se você me ajudar nos deveres escolares, eu lhe dou esta moedinha de prata. (Nesse dia , em vez de ir brincar para o morro ou para o campo, Pilar se resolvera pela escola, com medo das sovas do pai, que eram de não esquecer), Pilar era o mais adiantado da classe e não teria dificuldade em ajudá-lo. Afinal aquela pratinha era do tempo do rei e vivia-se agora no fim da Regência. Pilar desejava a moedinha e propôs-se ajudá-lo. Porém os olhos inquiridores de Curvelo observaram e este colega mais velho não resistiu e foi fazer queixa ao Mestre (que nesse dia nem prestava tanta atenção à leitura do jornal como era seu costume). O céu azul lá fora era uma tentação, o seu coração ansiava que acabasse a lição! Porém, de repente, o Mestre chamou! E eis que o castigo chegou! Dinheiro por ensinar a sintaxe? Entregue já essa moeda! Seu coração hesitou, mas por fim lá a entregou. Viu-a rolar pelo chão, e nem o pedido de perdão, a humilhação de serem acusados de vilania, os impediu de levarem doze valentes reguadas. Apanharam para que não esquecessem a lição! No dia seguinte, Pilar levantou-se cedinho e a sua ideia era ir procurar a moedinha. Levava umas calças novas, e a intenção era ir para a escola, mas sentindo o rufar do tambor dos fuzileiros eis que as suas pernas o encaminham sempre atrás da música dos tambores. Acabou a manhã na praia e, dormindo, sonhou que o seu pai não mais lhe batia, e o amava, era só carinhos e que a moedinha de prata era agora uma linda e cumprida agulha que discutia a sua importância com um novelo de linha.   

quarta-feira, 28 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Escolhido, porém, não foi O Diplomático, nem consolado, pois este não foi bem-aventurado. Queria uma herdeira rica para casar, e ia sempre esperando. Entretanto ia adivinhando as sortes o sr. Rangel, e a todos entretinha ao serão, numa noite de S. João. Ardia a fogueira no quintal da rua das Mangueiras, em casa de Dª Adelaide e João Viegas. Noite de namorados sonhados e oportunidade de arranjá-los! Do livro das sortes, Rangel leu: Será que alguém a ama em segredo? Foi uma agitação! Também Rangel, essa noite, ia decidido a entregar uma carta de namoro a Joaninha, filha dos donos da casa e seus amigos de longa data. Longa sim, pois Rangel tinha andado com Joaninha ao colo em pequenina. Ela tinha uns viçosos dezanove anos e Rangel ia   já nos quarenta e um. Todo de finos cheiros e lenços de cambraia, que originavam a sua alcunha! Porém, má fortuna a sua, agora que se decidira por uma mulher que estaria ao alcance da sua mão em que já não existiriam os muros sociais a interpor-se, eis que surge um novo galã em cena. É ele leitor, o Queiroz, que rapidamente entrou nesse noite de verão, não só no jantar de D. Adelaide, mas também no coração de Joaninha. 
Rangel não conseguiu entregar a carta de amor que planeava e, quando já sonhava uma vida a dois e tudo na sua mente escrevinhava e planeava, eis que vê Queiroz, flautista melodioso, trocar olhares e mãos com Joaninha. Rangel já nem conseguia fazer o discurso pedido dessa noite, que em vez de sonho e do amor pretendido, lhe trouxe o compromisso de seis meses depois ser padrinho dos jovens noivos. 
Contudo, Rangel, infeliz, porque o sonho de uma noite de verão não se concretizou, não deixou de continuar a sonhar e a planejar, que seria soldado na guerra do Paraguai sairia brigadeiro! Mas não! Ficou indolente, mais doente que Otelo, que por ciúmes matara Desdêmona, jamais reconquistou aquilo que perdera, a oportunidade no momento próprio.

terça-feira, 27 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Amealhava o seu salário e pensava vir para a Corte gastá-lo. Deu-lhe um mês; decidira vir-se embora  e comunicou ao vigário para lhe arranjar um substituto.
Porém, aconteceu que, numa fatídica noite de 24 de Agosto, quando o coronel em acesso de raiva ameaçava dar-lhe um tiro, e lhe atirava contra a parede o prato da comida, que achava fria, ele cansado, se deixou dormir. Eis que acorda aos gritos daquele, que parecia delirar, e lhe atirava a moringa! Este, sem conseguir desviar-se, apanhou com ela na face esquerda. A dor foi tão grande que, sem reflexos, em desespero, lhe agarrou o pescoço e apertou, apertou! Lutaram, mas depressa se apercebeu que o doente morreu! Gritou, abanou-o, nada: ele não voltou à vida. Duas horas até esteve na sala, sem ousar entrar no quarto. Que angústia! Não consegue explicar o que sofreu. Ouviu o doente a chamar-lhe assassino! Assassino!, Mas imperava o silêncio, a solidão! Maldizia a hora em que aceitara aquela missão! Crime implica castigo e ele esperava a prisão. Tinha verdadeiras alucinações! 
Ganhou coragem, entrou no quarto, e que lhe fez então? Abotoou-lhe a camisa, e puxou-lhe a ponta do lençol ao queixo. Chamou um velho escravo e disse-lhe que o coronel tinha morrido de noite, que avisasse o padre e o médico. Ele mesmo amortalhou o coronel, com a ajuda do velho criado, meio cego, e só sentiu alívio quando  viu o caixão fechado. As mãos tremiam-lhe e as pessoas diziam: coitado do Procópio! Apesar do que ele sofreu, ainda está sentido!
Ironia do destino, achava ele; quando tudo acabou respirou. Porém, a sua consciência dizia-lhe: não está bem aquilo que fizeste. Sofria palpitações, toda a espécie de aflições. Mandou rezar uma missa, pagou-a a dobrar e distribuiu esmola aos pobres; tudo para ver se esse algo superior, que dizem existir, se dignava perdoá-lo e aliviá-lo daquela pesada culpa. Porém, sete dias são passados e Procópio sabe, através de uma missiva do vigário, que o coronel lhe deixara toda a sua fortuna em testamento. Surpresa, um baque no coração, ironia da sorte? Não! Pensou logo em distribuir toda a fortuna; ficar com ela é que não era possível, não! Assim pensando, lutando dia a dia com a sua consciência, conversando consigo mesmo, questionava-se e respondia.
Teria sido em legítima defesa? Terá ele morrido da sua moléstia? Talvez sim, talvez não. Diálogos surdos permanentemente originava dentro de si. Uma rebelião! Mas arranjou coragem, e lá partiu para a aldeia. Quando lá chegou, verificou que todos o receberam bem. Eram de opinião que o coronel tinha mau génio e que a sua paciência tinha sido grande em aturá-lo. Pensava este homem então que talvez ele só durasse uma ou duas semanas; não era vida que se suportasse! Enfim, de si para si se ia ilibando da culpa. Quando recebeu a herança, pensou que distribuí-la seria uma "afectação"; por isso, resolveu ficar com ela e somente fazer algumas ofertas aos pobres e à igreja, um túmulo em mármore ao coronel, e, quanto ao mais, viver essa fortuna era sua intenção. Da culpa se livrou, e, tal qual deixou escrito, pensou, aqueles que possuem são os consolados, e, por isso os escolhidos e os bem-aventurados.

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Chamava-se Procópio José Gomes Valongo, tinha quarenta e dois anos, e passava o dia a copiar os estudos de um padre de Niterói, seu antigo colega de colégio. Porém, certo dia resolveu aceitar um lugar de enfermeiro para tratar de um coronel, apelidado de Felisberto, homem de muito poder e dinheiro, que vivia numa vila do interior.Tinha tão mau génio, que nenhum anterior enfermeiro o aguentava! Ele insultava-os de ladrões e dava-lhes vida de cão. Claro está que ao Procópio fez o mesmo. O prazer dele era humilhar, ofender e fazê-lo sofrer.
Batia-lhe com a bengala, e chamava-lhe quantos nomes feios havia na cartilha da má criação, um sem fim de injúrias que se tornavam o pão nosso de cada dia. Isolado do mundo com semelhante homem perverso, julgava ensandecer! Nem o jornal lia, calculem. Tornava-se, efectivamente, um homem diferente: Desejava vir embora para o Rio de Janeiro; não o podia mais aturar; fermentava em si o ódio e a aversão.

segunda-feira, 26 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

No livro da criação, imaginava, algo estava errado; bom seria, então, perguntar a Adão e Eva porque erraram. Qual deles foi culpado? É essa discussão que vamos encontrar em casa de D. Leonor. A imaginação será tanto pecado como a curiosidade? Será mais feminina ou masculina? Frei Bento, presente ao almoço dessa dia, a tudo se escusava. Tocava viola e harpa tão bem como sabia os segredos teológicos. Pronuncia-se , então? Mas não! Era assunto em que não queria tocar. Seria de Adão a culpa, ou de Eva, a perda desse paraíso, eternamente sonhado e antevisto pelos homens, para sempre perdido? Acabou por ser o juiz de fora a emitir opinião.
Tudo o que está escrito no livro do Pentateuco é muito posterior; por isso, nada leva a crer que assim se tenha passado. Não foi Deus que criou o mundo, mas o diabo (daí a dificuldade de se encontrar um astro esplêndido?). Cruzes! Dizem as senhoras presentes. Belzebu para aqui chamado, não! Diz  D. Leonor. Seja. Chamemos-lhe então tinhoso! Ele, ao criar o mundo, ficou com as mãos livres; então, decidiu-se e criou as trevas; logo Deus criou a luz, e assim se fez o primeiro dia. No segundo, os furacões e tempestades; mas logo a acalmia desceu do "pensamento divino"; ao terceiro dia, da terra nasceram as ervas daninhas e os abrolhos; porém, logo Deus criou as árvores de fruto e os vegetais saborosos.
Um cavou abismos e cavernas, o outro as estrelas, o sol e a lua: isto tudo ao quarto dia. No quinto, os animais da terra do ar e do mar. No sexto dia ,  aí criou o tinhoso o homem e logo depois a mulher, belos sim, mas sem possuírem alma. Veio então Deus e, de um só sopro, deu-lhes tudo o que precisavam: alma e um paraíso para morarem. Só não podiam comer os frutos daquela árvore, porque eram frutos que levavam a diferenciar o bem do mal.
Viveram felizes, até que o tinhoso se lembrou de chamar a serpente, que invejava Adão e Eva, porque eles andavam direitos: tinham sido feitos para as alturas e não para rastejar. E encarregou-a de os tentar. É para já, diz a serpente,  a quem o tinhoso deu assobio, e lhe disse: ficarás com a melhor parte da criação, que são os homens, e neles poderás incutir todo o mal! Esta assim fez, e procurou falar a Eva, dizendo-lhe: conhecerás todos os segredos da vida e a origem das coisas! O teu ventre se reproduzirá, e darás ao mundo Safo, cantando as suas líricas, e Cleópatra, Dido e Seminaris, Cornélia e Débora, mais tarde Maria de Nazaré. Porém, chegou Adão e disse-lhe: Não acredites em nada; vem daí. Ambos foram recompensados: veio o anjo S. Gabriel e levou-os para a "estância eterna", dizendo-lhes que o mundo, esse, ficava entregue a tudo o que o tinhoso construíra: nele reinaria a serpente, aquela que é capaz de rastejar, bajular e morder; vencerão estes, porque aqueles que são puros de coração, não encontrarão aqui lugar; no reino da serpente será difícil a esperança ou a piedade.
O juiz pedia agora mais doce a D. Leonor, e esta, como todos os que esperavam uma explicação, ficaram, de certo modo, surpreendidos. Mas logo o juiz, saboreando o doce e perguntando se ainda era daquela antiga doceira de Itapagipe,  lhes disse:  Creio bem que nada disto aconteceu; é tudo pura invenção. Mas eu  conto-lhes um caso verdadeiro, que ficou escrito e me foi endereçado pelo próprio, conhecido como O Enfermeiro. Vamos então ouvir com atenção, disse Dona Leonor. 

domingo, 25 de março de 2012

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Talvez A Causa Secreta seja aquela que encontramos na duplicidade de Fortunato, que se comprazia na dor, aliviando-a com todas as posses da fortuna e mezinhas ao seu alcance. Teve ele a sorte de encontrar, para casar, uma Maria Luísa, que era esbelta, airosa, olhos meigos e submissos. Porém, poderia ela amá-lo? Eram tão diferentes! Resignação, respeito, ou temor, que sentia Luísa pelo Fortunato? Não queria que ele fundasse a casa de saúde; porém, "não ousou opor-se-lhe e curvou a cabeça."
Experiências, mais experiências fazia Fortunato no seu laboratório. Queria agradar a Garcia, o médico, seu sócio e amigo, a todos curar. Desfazia-se em desvelos, prontificando-se a ajudar. Mas um dia houve em que Garcia conseguiu descobrir o segredo daquele homem. Foi quando entrou no seu gabinete, saía Luísa gritando! O que viu mostrou-lhe, então, que Fortunato era lunático e sentia prazer no sofrimento dos outros. Torturava um rato, lenta e deliciosamente, pezinho por pezinho, cortado, queimado, tudo porque este lhe havia comido um certo papel! Luísa nervosa e doente, desculpou-se perante o amigo da casa, que era mulher, e sentou-se, então, mais calma, após semelhante cena, "à janela, com suas lãs e agulhas".
Garcia começou lentamente a amar aquela frágil criatura; porém tudo ficou no silêncio. Luísa era comprometida, e, se deu conta e o amou, nada demonstrou, proibido era gostar de outro homem! Doente, tossia, depressa morreu. Nessa noite de vigília, Garcia não se conteve e, beijando-a, chorou esse amor impossível. Fortunato, que se tinha ido deitar, a repousar um pouco, após aquela longa agonia, regressando, assiste surpreendido àquela explosão de dor do amigo. Seria o caso de que teriam sido amantes? Isso não o preocupou: não era ciumento, nem invejoso, mas era vaidoso. Que sabor, senhor, ver o amigo sofrer aquele irremediável amor desesperado! Foi longo, longo, o prazer, imagine o leitor! 

Ao longe ouviam-se os sons de um Trio em Lá Menor, quatro andamentos; que bom sonhar! Seguia-se uma sonata ao piano. Por entre os vidros daquela janela, donde partiam entoados sons, outra mulher sonhava como seria o seu amor. Teria ela melhor sorte que Maria Luísa? Pensava, de pernas traçadas, sentada na sua cama. Tinha dois pretendentes; ambos lhe eram simpáticos: Maciel, jovem de vinte e sete anos; Miranda ia já nos cinquenta. Tudo faziam para lhe agradar. Contudo, Maria Regina, inconstante, não sabia para que lado tombar. Já no colégio a apelidavam de "esquisita" e "desmiolada"; ela, porém, sonhava, sonhava! Bom coração tinha ela, mas também muita imaginação. Gostava dos serões animados, em que se tocava uma sonata e se conversava sobre música enquanto a avó dormitava. Regina apoiava as opiniões de Miranda. Maciel, de lindos olhos, concordava com os dois.
Certo dia, porém, uma peripécia se dá, que revela a Maria Regina o carácter, o herói que é Maciel! Parece que não mais há a hesitar entre os dois: há que escolher. Maciel era valente, segurou os cavalos para salvar a criança de ser atropelada! Maria Regina fez-lhe o curativo da mão; que linda mão ele tinha! Ansiosa, esperou pela noite para o tornar a ver. Já pensava: onde arranjava eu melhor noivo? Porém, a conversa de Maciel com a avó àcerca de todas as trivialidades da sociedade local, que Maciel adorava, mostrou-lhe uma pessoa totalmente diversa, e Maria Regina desgostou-se do pretendente. Nisto, aparece Miranda, a quem contam o acidente dessa manhã. Este emite semelhante opinião, que revela ser "egoísta e mau"; por outro lado era fino e amava a música! Maria Regina completava um com o outro. Espírito musical de Miranda, beleza e juventude de Maciel. O som melodioso da sonata para piano, completava a "ficção".
Assim se passou o tempo. De tanto esperarem e sofrerem, ambos se detestavam, e Maciel, seguido de Miranda, escassearam as visitas, até que desapareceram. Passaram-se as noites, os dias. Maria Regina estava sozinha; sentia, porém, que essa noite era clara, bela e fresca; junto à sua janela espreitava o céu, para ver se descobria uma estrela dupla num só astro. Em vão tentou descortiná-la! Espírito e beleza num só astro? Virou-se para si. Dentro de si buscava aquilo que fora  não encontrava. Lá estava essa estrela dupla que em si irradiava! Ao princípio assustou-se; porém, depois deitou-se e sonhou que era sua sina oscilar entre dois astros incompletos, ao som da clássica sonata. Afinal, não era possível obter um astro explêndido: a alma humana é dúbia e complexa!            

As Sempre Vivas - Várias Histórias

Passava então por ali o Inácio, para falar ao bom padre, voltando para  a sua casa, não sem, também ele, ter vivido um sonho. Um simples sonho. Uns Braços que lhe faziam esquecer tudo, inclusivé de si. Tinha quinze anos Inácio, e D. Severina  vinte e seis, mas esta era mulher de seu patrão, o solicitador, que, por ironia de todos os santos (os da casa de jantar), não tinha nada de solícito! Gritava a bom gritar com o rapaz. Ele vivia a pensar que um dia fugiria para não mais voltar. Mas não! Vivia preso à paixão pelos braços de D. Severina. Esta a princípio pensou: É uma criança! Porém olhando-o, verificou que nele despontava, contornando-lhe os lábios, um buçozinho. Sentiu-se lisongeada; ser amada por Inácio era, afinal, tão bom!
Contudo, esse amor "adolescente e virgem" não podia jamais revelar-se, pois havia as distâncias sociais. - Não, não era preciso dizer nada ao solicitador: ele era uma criança e, além disso, um inferior! Mas a paixão persistia, e Inácio acordava, inclusivé de noite, a pensar em D. Severina, e, se lia, todas as heroínas tinham o seu rosto. Esta também sonhava com ele; beijar os seus lábios, que tentação diabólica! Mas, mesmo assim, não resistiu e, pé ante pé, quando este dormia, ela, que não sabia que ele consigo sonhava e que a beijava, o beijou: aqueles lábios que anciosamente desejou! Depois sobreveio o medo. Seria que ele estaria mesmo a dormir? E o vexame crescia. Usou, a partir daí, um xaile que lhe cobria os braços, e Borges acabou por dispensar Inácio, que regressou a casa de seus pais sem se ter despedido daquela que fora o seu primeiro amor. Através do tempo, recordar-se-ia daquela sensação e diria sempre que foi um sonho.

Quem sonhava, também, era Um Homem Célebre, que todos conheciam por Sr. Pestana. Ele sra um compositor de polcas; estas saíam-lhe tão ligeiramente do piano, e com uma facilidade, que o tornaram famoso! Animava os bailes, tocava uma quadrilha a pedido, a todos satisfazia. Viviam animados nas danças da moda, que faziam sucesso para todos, menos para o Pestana, que se sentia vexado com esse fulgor. Ele queria era o dom de compor, como Beethovan, Mozart ou Chopin. Solteiro era; pensou que, casando, encontraria a solução: a inspiração; comporia então aquilo que sonhava. Mas não! Maria cantava na festa de S. Francisco de Paula; era viúva com vinte e sete anos. Pestana gostou da sua voz. Nessa musa pensou encontrar aquela composição que sonhava escrever. Porém, o piano, seu altar, recusava-se a dar-lhe algo de eterno, de belo: saía-lhe só Chopin! Desesperado entre a ambição e a vocação, vontade tinha que lhe passasse o trem por cima!
Maria morre, tísica; Pestana chora a desolação da sua morte, mas as suas lágrimas não são só de saudade, não: são também por ele próprio, que o Requiem deixou de parte, não conseguindo compor, e como compositor não se realizava, não! Procuraria outra profissão. Mas em vão! Ele era um homem a quem nem lhe era dado escolher o nome das suas polcas! Ao editor cabia essa missão. Por fim, cansado da busca, torna a compor polcas por encomenda. Era o primeiro no género, mas, não satisfeito, levava uma vida desolada, e, cansado, doente, diz uma única graça quando lhe encomendam as últimas polcas: que deixaria, então, uma para quando tornassem a subir ao poder os liberais.
Morre bem com os que adoravam as suas polcas e o estimavam; mal com ele mesmo, que queria algo que o eternizasse: aquela música, não!

Mas se ele morria zangado com o mundo, o mesmo não aconteceu com Quintília, A Desejada das Gentes, porque ela era alegre, a mais bela da cidade, por todos requisitada e amada. Se falava, com sua branda voz, um sorriso se estampava no seu rosto, e irradiava ternura e amizade. Decidida a não casar, não aceitava aqueles que a pretendiam. Era rica, bom partido, mas para nenhum ela o foi, pois escolheu viver sem partilhar o seu corpo com homem algum.
O seu espírito sim, partilhou, e amou a sinceridade, o carácter do conselheiro. Com ele fez pacto de não casar com ninguém e manter a sua amizade. Juntos, mesmo na doença de Quintília, ela deseja, por fim, casar com ele, que só a abraçou quando ela era já cadáver. Que causa secreta existiria nesta Quintília, que tudo levaria a pensar ser uma mulher para dar amor e amar, e preferiu viver a sua independência  (egoisticamente?) sem pensar naqueles que sofriam por amor dela?    
     

sábado, 24 de março de 2012

As Sempre Vivas - As Várias Histórias

A Literatura é a única disciplina que vê o ser humano integral, que abrange sentimentos e mitos, vida e morte, tudo.... é a matéria mais completa para o exercício da lucidez e, consequentemente, a felicidade.
Literatura como extensão de vida e não como prisioneira da teoria, que é a situação em que a investigação a colocou.

Lídia Jorge (in Diário de Notícias, 21/02/88)


A consciência da inconsciência da vida
é o mais antigo imposto  à inteligência.

Bernardo Soares


Camilo não acreditava em nada, mas, como adorava Rita e esta tinha por certo aquilo que a cartomante de sotaque italiano lhe dizia, Camilo acabou por ir também fazer-lhe uma visita. Rita era mulher de Vilela, advogado com banca montada. Este adorava aquela, leviana e bela. Camilo, amigo de infância de Vilela, mais novo que Rita uns quatro anos, era por natureza um ingénuo.Deixou-se prender de amores por Rita e eis que, quando dá conta, sente a ameaça das cartas anónimas. Agitação, angústia, sentia no ar o sabor da perdição! Recorre então à distância, mas em vão!
Recebe um bilhete de Vilela, que lhe diz: Corre, vem já, não demores. Vai. Não sem ter o coração em brasa, da preocupação. Que lhe queria Vilela? Passou então, ironia do acaso, juntinho à casa da cartomante. Subiu. O que ouviu sossegou-lhe o coração. Acreditou. Ela amava-o, era bela, não precisava de recear nada. Saiu contente. Rita continuaria a ser sua. Vai, de seguida, ter com Vilela, esperançoso, já sem medo! Quando lá chegou, entrou e viu Rita ensanguentada, morta.Gritou. Vilela, seu amigo dilecto, segurou-o e com dois tiros fez justiça por suas próprias mãos. Jazem os dois amantes, que a cartomante tão bem enganou!
Mas eis que, numa conversa entre santos, nessa noite de mistério, em que não se sabia como tinha Vilela descoberto o amor extra-conjugal da sua querida Rita (saberia ou não?), algo mais espantoso acontece ainda! Não no reino da fantasia, mas neste mundo em que há padres velhos, mas de fresca memória. Não eram ladrões, que altas horas da noite ocupavam a igreja de S. Francisco de Paula a conferenciar, não! Eram os santos que tinham descido do altar e se tinham posto a contar, tal qual homens em tamanho natural, e em vozes tranquilas, os pecados que ouviam, de pasmar. Sabeis? Veio cá hoje uma mulher tal, que me fez descrer dos homens! Tinha a intenção de se resignar a ser uma mulher honesta, deixar o caminho da perdição e da luxúria, mas quanto mais rezava e se persignava, mais se lembrava das delícias da paixão! Foi-se embora decidida: não queria obter o perdão; amava, queria continuar a amar, iria continuar adulterina.
Oh! Mas o que eu ouvi ainda foi melhor, diz S. Francisco a S. José. Sabei vós que Sales, amando a esposa, e estando esta para morrer, vem aqui implorando que eu a salve! Mas sendo a sua usura tanta, tanta, que , se de início pensou em oferecer uma perna em cera ou uma prateada moeda, logo daí tirou a ideia e ofertou, para que lhe salvássemos a mulher, mil padre-nossos e mil avé-marias! Os santos riam, riam das misérias dos homens. Acordou o velho padre, sacudiu os maus sonhos, era dia, abriu as janelas e deixou entrar o sol.

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(continua)      

As Sempre Vivas - Várias Histórias

A concepção do texto para Machado de Assis, como o fora para Sterne, 
é a de um campo de batalha  no qual tanto o autor quanto o leitor jogam com as armas do sentido.
A activa participação é elemento essencial para o efeito de comunicação.
O papel do leitor também é de criação.                                                                                   

Sónia Brayner
II

Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto - é costume dizer-se. Também eu me propus contar, ainda que  resumidamente e entrelaçando-as umas nas outras, as Várias Histórias , de Machado de Assis. Anulando as datas precisas que cada conto contém em si mesmo, verifiquei que, afinal, estas histórias, que foram escritas e inscritas num tempo (em meados do séc. XIX) podiam ter-se escrito precisamente agora, 1990.
Machado de Assis refere, na introdução, que estas não pretendem sobreviver como as palavras do filósofo Diderot; porém, quer o autor, quer as Várias Histórias, estão sempre vivas.
O complexo relacionamento humano, as situações misteriosas que esse relacionamento provoca, os temas do amor e da  morte, o adultério, a vida como traição, não só no aspecto das relações amorosas, mas igualmente no que se refere ao desengano, à quebra de ilusões, dos ideais, do próprio tempo que, inexoravelmente, tudo atraiçoa e corrói, que vai transformando etapa a etapa o próprio homem, é inerente ao mundo em que vivemos, e que nos é dado na ficção de M. de Assis. Por isso, assistimos, conto após conto, à frustração, ao quebrar das ilusões, às angústias, pessimismos e ambições destas personagens, que o autor também soube construir e imaginar.
Será que vou desconstruir? Transgredir? Espero que não. A ideia de perspectiva, que foi posta em prática na pintura no período renascentista em quadros como os de Miguel Ângelo, Rafael ou, ainda, Leonardo da Vinci, que se preocuparam em dar (através da perspectiva) uma ideia de profundidade, que nos leva, como observadores, a penetrar no quadro e a avançar até ao fundo do caminho (quando em paisagens campestres), ou até da própria expressão retratada (no caso da Gioconda), em que esse olhar misterioso parece levar-nos à profundeza labiríntica da sua alma, dando-nos várias e possíveis interpretações, também é posta em prática na literatura.
Então o nosso olhar institui-se como prospector dessas perspectivas. O nosso ponto de vista , ou de visão, condiciona a nossa leitura dessa pintura. Também em literatura, o ponto de vista é usado como técnica de narrar. É o que eu vou fazer: a leitura sob o meu ponto de vista, assumindo-me como narrador que interpreta os acontecimentos e as próprias características de contos e personagens.. Quando esta leitura é dada ao leitor, este não tem acesso ao conhecer as personagens através de si mesmas. Se temos um narrador omnisciente, que tudo conhece sobre as personagens, mesmo quando cede um breve espaço para que estas entrem em diálogo, e se manifestem com caracteres, cabe sempre a esse narrador a verdade sobre os factos. No caso de termos um narrador omnisciente que redige a história de forma autoritária, não são permitidas às personagens as suas formas de ver e pensar o mundo.
Em Machado de Assis verifiquei que utiliza uma óptica da relatividade quanto ao estatuto dos seus narradores "colocados no seu mundo particular, olham e julgam o que os envolve como duplos, actores/autores sempre atentos a comentar, ironizar e a apropriar-se, em benefício próprio, das instâncias discursivas do contexto". (1)
Quando os narradores dão voz aos seus personagens e os põem a dialogar, é visível a teatralização  marcada dos personagens; como exemplo, teremos o conto Viver, ou, ainda, o conto Entre Santos, que apesar de começar a narrativa na terceira pessoa: "Quando eu era capelão", logo de imediato nos surge um narrador: "contava um padre velho"; e, logo de seguida, é dada voz aos santos, que , dialogando, põem em cena os comportamentos e sentimentos dos homens, captando, também, a própria essência da sociedade, através da conversa entre os santos, é a própria exposição da palavra que nos surge como forma de mostrar a sua capacidade de criar. No conto A Desejada das Gentes, é o conselheiro que, do princípio ao fim, traça para um companheiro a história, as peripécias e os caracteres das personagens que vivem e se exprimem sob o seu ponto de vista.   
Nesta capacidade e versatilidade de narrar e de escolher narradores que deixem o discurso livre para que as personagens possam intervir, construiu Machado de Assis um discurso extremamente original num estilo correcto, clássico e de sentido coloquial.
É nesse sentido coloquial, tendo a palavra como fonte original de mostrar ou de contar de forma omnisciente, que eu tentei recontar, numa "longa" história, as Várias Histórias. Se transgressão houver, não foi essa a minha intenção. Esta foi a minha forma de jogar com as palavras neste "campo de batalha", em que o autor deu lugar ao leitor e lhe permitiu, mesmo de forma próxima ao texto, manejar , "com as armas do sentido" e de leitor passar a narrador/autor.
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(1) Breyner, Sónia, Labirinto do Espaço Romanesco, Rio, 1979, Civilização Brasileira, pp.72. 

sexta-feira, 23 de março de 2012

As Sempre Vivas

Por exemplo: Garcia (...) estalava as unhas", mais adiante encontramos "o cão ficava ganindo (...) ouviu-se o rumor de vozes (...) o homem gemia (...) foi uma malta de capoeiras (...) ouvi um barulho..." Tudo neste conto, pensei, tem uns sons estranhos dados pelos verbos estalar, ganir, gemer, vozes surdas ligadas a ruídos  dos capoeiras, ajudando a descobrir a dupla personalidade de Fortunato que, apesar disso tinha o "riso" jovial e franco; porém, havia "os guinchos dos animais (...) era a mesma troca das teclas da sensibilidade. A música de teclas estava trocada, havia necessidade, dizia de mim para mim, em dedicar juntamente com os "soluços" de Garcia, aquela Gloria que cantavam no concerto, a Maria Luísa. Assim fiz. E comecei logo a pensar no Trio em Lá Menor.
No palco estavam dois violoncelos: um tocado por Ana Paula Góis, e outro por Teresa Rombo, e um orgão que, com toda a melodia possível completava o trio instrumental. Tocava-o o professor Rui Paiva. Acompanhavam  (não a Maria Regina, a personagem do conto) mas Ana Ferras, soprano, jovenzinha , mas que linda voz! O Credo fazia-me lembrar Maria Regina dividida. Não. Possivelmente ela não dizia "Creio". Mas também ela acreditava na paixão pela música, na inspiração, nos dons naturais. Por isso tocava piano, escolhia uma sonata e discutia "música (...) moderna e antiga. A sua avó tinha "a religião de Bellini e da Norma"; outro conto, pensava eu, construído em quatro andamentos que nos dão o seu próprio ritmo, desvendando através da palavra o "correr" da história. Primeiro o Adagio, lentamente, mas melodioso, expressivo, indiciando a indecisão, mas também a esperança, da personagem; um Allegro, mas non tropo, que corresponderá a um narrar mais rápido, mas não demasiado; com o Allegro Appassionato, a acção corre rápida, mas não esperançada. Regina, já sem emoção, entra no Minueto (AABA), dando-nos a ideia de uma dança batendo um ternário simples; por fim fica sozinha com a sonata, e a sua imaginação.
Cantava-se, agora na sala o Sanctus, da missa de Hayden, e eu pacientemente prosseguia na verificação da intercepção da música nos contos de Machado de Assis. Eis que, enquanto decorria o concerto, dou comigo a pensar em Frei Bento, que, se não era santo, era, porém, um "insigne" músico na arte de tocar viola e harpa. Agora reparo que praticamente já me surgiram quase todos os instrumentos em texto, que esta noite vi em palco! Contêm as Várias Histórias uma verdadeira orquestra de câmara? Ou serei eu que, sem dormir, manhã dentro, já vejo as personagens de Adão e Eva, o juiz-de-fora, D. Leonor, Frei Bento, todos no palco a agradecer aquela ovação que se tornava a compasso, até que Paulo Brandão, ou Manuel Peres Newton,  ou, ainda, Teresita Gutierrez Marques, viessem novamente ao palco! Não seriam, também, estes aplausos para Machado de Assis? Ele inscreveu-os (aos instrumentos, aos músicos, aos compositores) não em pauta de música, mas em palavras tão melodiosas quanto aquele Benedictus a solo , pela soprano, "onde miríades de anjos os esperavam cantando (...) ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dous  egressos da criação..."
Era, realmente, um final em pleno para todos os alunos e professores. Eis que se inicia o Agnus Dei, e eu sinto presente Procópio que conseguiu ser um enfermeiro a quem foi louvada a "mansidão cristã", apesar de escutar "vozes surdas, gritos da vítima" e novamente o silêncio (a melhor melodia reside apenas no silêncio, dizia Carlayle). Entretanto Procópio escutava missa pelo descanso do coronel (não a de Hayden, que essa foi dedicada a S. João de Deus e tocada em Viena, e não na igreja do Sacramento), ou do seu próprio, e o Cordeiro de Deus acabou retirando-lhe a sombra da culpa e do pecado.
Agora que o som das palmas se esvaía, em que todos os alunos deixavam de bater os pés no soalho e de gritar Bravo! Bravo!, eu volto a pensar na noite de S. João e com ela, revivo o conto do Diplomático, ao som  da "fogueira", pois nestes bailes populares ele  não precisaria de ter "posição subalterna". Dançaria toda a noite e depois iria até à Foz, ver nascer o dia. Aí talvez o desgosto se desvanecesse por ter perdido a Joaninha para Queirós, que era um "saudoso na flauta". "Verão o que é a flauta..." dizia Calisto. Nem sabia que Rangel, nessa noite, "rompeu em soluços". Pois é. Chorar, soluçar, também é música e essa viveram-na Mariana, D. Paula e Venancinha em paixões mais difíceis de apagar. Evaristo desejava que as cordas dos relógios se quebrassem, para que estes, tal qual, metrónomos, não mais marcassem os tempos. Efectivamente, aquilo que Evaristo concluiu "que a arte era superior à natureza," coincide com o meu ponto de vista: a paixão pela música como arte, pela palavra, pela literatura, que estes contos reúnem, é superior às paixões da natureza, que o tempo apaga. Esta paixão vem da infância e inscreve-se no Conto de Escola, que nem os castigos conseguiram tirar, porque aí já se pressentia o poeta, que vê "lá fora no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio" e no rufar dos tambores une essa poesia à música eterna, dos bailes que a baronesa de um Apólogo vive e, o plic, plic, plic da agulha no pano, no "rumor das saias", no bater do coração, que ainda não era "um livro mas um prólogo, de paixão intensa, que merece Viver!, mesmo até ao "limiar da eternidade" aliviando o "tinir dos ferros".
Tal qual como fazia o cónego Matias "com essa melodia do velho drama de Judá", creio afinal, nesta paixão pela arte, mesmo que ela seja transgressão, aí está para durar. Concluí, quando ouvi tantas vozes (mais de duzentas) terminar a Missa Breve, de Hayden. Sim, mesmo as "cantigas da Roça" se aliam ao canto clássico e, neste cantar, estão as palavras, a voz, e o dom da pureza de os amar. Vou dormir, seria meia-noite quando descíamos as escadas; já são oito horas da manhã.
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Nota ao leitor:
Quando saí do Conservatório Nacional de Música de Lisboa seriam, de facto, perto das 24 h, e em seguida   escrevi este texto, durante a noite, porque tinha pensado nos contos de Machado de Assis o tempo todo, uma vez que tinha que realizar um trabalho sobre as Várias Histórias. Foi aquilo a que os estudantes chamam uma "directa", porque, quero realçar, logo em seguida ao ter acabado este texto fui para as aulas da Faculdade sem dormir. Assim se passou.

(continua)             

quinta-feira, 22 de março de 2012

As Sempre Vivas

Conforme avançava o concerto, também os contos iam, página a página, desocultando para mim toda a sua melodia. Tocava, agora, a classe de orquestra, a composição de A. Borodine, "As Estepes da Ásia Central"; e eu imaginava como tinha vivido o Sr. Pestana, compositor de polcas; ele que fora Um Homem Célebre; o som do piano impõe-se-lhe não como o gelo das estepes, porque esse vivia só no coração do Sr. Pestana. Mas se este fosse como uma composição de Borodine? Então esse coração (triste por não conseguir música eterna) era uma mina de melodiosos sons! Pois era.As polcas animavam os bailes, os saraus, talvez porque fossem mais parecidas, em questão de animação, de ritmo e de fazer sonhar, com a Kaiser Waltzer, opus 437 de J. Strauss. "O riso", as "danças", (quer fossem quadrilha ou polcas) davam neste conto "os primeiros compassos". O "assobio", a "cantarola nocturna", tudo originava sons no piano do Sr. Pestana! As suas composições soavam "sopradas em clarineta"
Um padre "lhe ensinara latim e música", pela qual era "doudo", fosse "sacra ou profana". Nisto pensava eu, quando se fez ouvir o comentário do professor José Maria Pedrosa: para quem souber latim, é fácil de traduzir:  Missa Brevis "St. Joannis de Deo", de J. Hayden. E contava: esta, chamada missa breve, foi oferecida por Hayden a S. João de Deus, santo português que tinha a sua ordem e uma igreja também em Viena, e na qual Hayden tocava nas missas de domingo. Este compositor, como génio, podia transgredir, dizia o professor, porque afinal, toda a arte é uma transgressão, continuava. Sabem? É que Hayden transgrediu na regra do motete, usual nessa época na composição de missas. Encortou os textos e distribuiu-os pelas diversas vozes: baixo, tenor, contralto e soprano, ao contrário da regra, que punha cada voz a cantar uma mesma letra. 
Ouvia e questionava-me: possivelmente o que o Sr. Pestana não conseguiu foi transgredir! Seria? Não viveu nunca, possivelmente, uma noite de S. João (não de Deus, mas a do Porto). Pois é. Eu vivi, na sexta e no sábado, dias 9 e 10 deste mês, não o S. João, mas as vésperas de S.to António na Ribeira do Porto. Aquilo é que era dançar! Andava muita gente na rua. Do outro lado do rio, como que uma cascata (daquelas que se faziam para pedir um tostão para o S. João), viam-se ao longe letreiros luminosos dos vinhos Sandeman, Taylor's, Croft, etc. A alegria era tanta que permitia a transgressão; nisto pensava, quando ouvi dizer que aquele santo a quem Hayden dedicara a missa era o nosso S. João. 
Porém, o Sr. Pestana não tinha letreiros de vinho do Porto com nomes ingleses, nem mesmo de S. João; tinha era retratos de compositores: "Cimaroza, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann (...) postos como santos da igreja; o piano era o altar. Todos os compositores tocava na ânsia  da perfeição. Também ele (como eu) ouvia "Hayden (...) à meia noite", (...) e as estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais", e eu pensava em como eram belas estrelas candentes estas centenas de jovens, que esta noite ali davam provas do trabalho de um ano inteiro! 
E no humor que tiveram os três jovens do trio de clarinete, Luís Gomes, Nuno Silva e Luís Casalinho, quando no palco contaram, que não estavam em traje de gala, porque lhes tinham roubado tudo de dentro do carro! Nem os sapatos, diziam, nos deixaram! Por isso, vamos mesmo assim actuar com estas roupas: T-shirts, com palavras coloridas inscritas, ao contrário dos pardejos, camisas brancas, calças e saias pretas das centenas de alunos!.
Mas foi assim, este concerto que traduziu para todos os que enchiam o salão "as velhas obras clássicas" que o Sr. Pestana rogava aos anjos e ao diabo que lhe fosse permitido compor. Contudo, também ele tocava "duas, três, quatro horas", de Mozart. Por isso pensei nele esta noite! E ainda "tinha de dar lições no dia seguinte". "Compunha (...) teclando ou escrevendo; deixou de parte o Requiem, tornou a compor polcas que "as orquestras de teatro" executavam.
Este conto é do princípio ao fim repassado de amor pela música, num infindo amor que se sente em cada melodiosa palavra, em cada nome de compositor, até que o Sr. Pestana feche as pestanas, não sem ter deixado ainda duas novas polcas compostas. E se em tudo isto pensava, sempre ligava a palavra à música, durante estas horas do concerto. Vinha-me à memória a Flauta Mágica, de Mozart, e em como ele, quando compunha a célebre área de Papagena, se recordava da sogra a falar alto, mesmo a gritar. até aí eram as palavras que inspiravam o compositor.   
Oh! É isso mesmo. Tudo o que pude imaginar durante estas horas ficará sempre aquém destes melodiosos contos! "Falar em verso, (...) todos os homens devem ter uma lira no coração". Aqui era a "divina" Quintília que inspirava o ressoar desta lira, qual Orfeu em busca da sua amada! Que "tinha olhos (...) apesar de nocturnos" (a lembrar o amor de Chopin por George Sand) em parceria com o riso, qual clarim soando em "voz brandíssima; "ria, ou antes, sorria apenas".
Os sorrisos e as vozes continuavam no palco, cantavam melodiosamente o Kyrie,  e eu continuava em pensamento a ler os contos quase linearmente, encontrando aqui e ali algo que através da palavra me transponha para o mundo da música.
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(continua)

quarta-feira, 21 de março de 2012

AS SEMPRE VIVAS

E o concerto continuava; na minha mente escrevinhava, ouvindo a classe de metais, o trio de clarinetes: fanfarra, allegro, andante, adágio, e pensava no conto Entre Santos, em que o capelão "caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos (...) o rumor das vozes (as vozes não subiam do tom médio"; assim aconteceu, não com a fanfarra, mas com o allegro e o adágio dos metais e também com a interpretação do grupo vocal "IDEA" em To be sung of a summer night on the water, de F. Delius, e, ainda, do Salmo, de S. Racmaninof. Mas, apesar de não subirem "do tom médio (...) ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão, (...) a moeda, girando, girando, girando (...), descia do tecto, ou subia do chão, ou rolava no altar (...) ou tilintava nos pingentes do lustre".
Lustres lindos tem realmente o salão nobre do Conservatório (não do tempo de Garrett, pois só ao fim de dezassete anos Luís Augusto Palmeirim conseguiu, já durante o ministério de Fontes Pereira de Melo, a conclusão das obras). Mas estes só foi possível obtê-los quando Eduardo Schwallbach cedeu o salão gratuitamente, para que aí se realizassem os concertos e ensaios da Real Academia de Amadores de Música, pelo espaço de cinco anos, com a condição de que esses mesmos lustres e todo o material de iluminação, findo esse tempo, ficassem a pertencer ao Conservatório. Isto tudo escrevia eu quando olhava para aqueles lindos lustres e imaginava a música dos seus "pingentes"; como tilintavam aqueles se fosse possível rodá-los? Soariam como o Divertimento, de Malcolm Arnold? "A moeda girando, girando," fazia com que os meus olhos girassem também de uns medalhões para os outros, também eles redondos e lá de cima sorrindo, como que ouvindo estivessem, dizendo-me de olhos bem vivos: Fomos pintados pelo ilustre pintor Malhoa, um a um, Passos Manuel, Garrett, Xavier Migone e Marcos de Portugal.
Lembras-te que eu fui o compositor português cuja celebridade foi mais vasta?Dizia-me este último. Nasci em 1762, seis anos depois de Mozart, e oito antes de Beethoven. Conheci, como nenhum músico português, a celebridade, a reputação em toda a Europa e no Brasil, para onde parti em 1810 e seria no Rio de Janeiro que o Príncipe Regente me prestaria mercês. Em 1813 era já aí director do Teatro de S. João e ainda aí compus, em 1823, a música de S.M.I. do Brasil. Tudo isto eu lia nos seus olhos e pensava nos contos; e os meus subiam ao tecto e desciam ao chão (tal qual o cónego Matias), ou não se despregavam do "altar" (como Um Homem Célebre) que, para mim, era aquele palco, onde tocavam o trio de oboé, flauta e clarinete. Continuava a pensar e a conversar, já não com Marcos de Portugal (que tanto dera de si ao Brasil), mas com as Várias Histórias, de Machado de Assis. Era nelas que eu pensava. Porque nelas até o silêncio e as pausas se inscrevem para melhor apreciar a sua melodia. E então surgia-me "toda a melancolia da solidão e do silêncio de Inácio, quando o próprio solicitador lhe perguntou o que tinha "ao cabo de alguns minutos de pausa (...) a noite caíra de todo; D. Severina ouvia o tlic do lampião de gás." É espantoso não é? Isto que eu descobria; em todos os contos encontrava esta estranha melodia, que é a poesia  feita de palavras e música, que, para além das pausas no silêncio, se ouvia o tlic do acender do candeeiro! Este concerto despertava em mim esta ligação ininterrupta aos contos de M. Assis. Mas porquê? Pensava. Afinal, já assisti a muitas dezenas de concertos. Pois é. Mas só agora descobri Machado de Assis! Antes, adorei a melodia de Camilo Pessanha. Hoje, porém, só os contos, ligados à música, ocupam todo o meu pensamento e relia-os, e ouvia, "o tom da voz" que "saía brando e  até meigo" de D. Severina, ou os passos do solicitador que descia as escadas. Seriam em andantino ou  maestoso? Soariam como o som de clarinete, ou do oboé? Fariam "ruído", como quando o gato deitou a tigela ao chão? Não. O "rumor", fosse do mar, das gaivotas, só terminava neste conto com o beijo que esta ansiava e que por fim  receou.
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(continua)      

terça-feira, 20 de março de 2012

AS SEMPRE VIVAS

Uma História das Várias Histórias, de Machado de Assis

Introdução 

I

Será isto uma introdução? Porquê começar assim? Afinal, já tinha uma introdução escrita, prevista, inserida no contexto, falando dos vários tipos de narradores, omniscientes, relativos, personagens, peripécias que narram sobretudo, como o encontro do "acaso" inverte as coisas, carateres que levam a praticar os actos (o amor, o ciúme, o ódio, a paciência, etc.), as várias paixões, pontos de vista, e tantas coisas mais, presentes nos contos, de que me proporei, no entanto, falar mais adiante. Mas, porque o acaso aconteceu, fez com que tudo o que tinha escrito passasse para segundo plano. Que acaso foi esse?
Estava eu presente no concerto desta noite (11 de Junho 1990), na Escola de Música do Conservatório Nacional. e, enquanto ouvia alunos e professores, era este texto que eu escrevia. No hall de entrada, assim como no tecto do salão nobre, um retrato de Garrett logo de imediato me levou a "viajar" pelo mundo dos contos, dos romances, da vida e obra desses autores que foram Machado de Assis e Garrett, que, tanto um como outro, amaram certamente a música (como eu). Ela está presente na sua obra, como esteve na sua vida. Mas a que propósito vem o concerto? Que tem este a ver com as Várias Histórias, de Machado de Assis? Tem. Sabeis porquê? Porque a música está entrelaçada com a palavra, presente em todos os seus contos. Senão vejamos: na Cartomante: "mas as palavras estavam decoradas (...) eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela (...) tinham um tom de mistério..., voz , murmuradas, e tom, leva-nos de imediato a uma ideia musical. Mas continuemos: "A Cartomante, alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola."
Era em tudo isto que eu pensava quando ouvia a «Música para o Túnel», composta e interpretada por Paulo Brandão e pelo grupo vocal "IDEA", dirigido pelo mesmo professor. Esta composição feita propositadamente para uma peça de teatro intitulada o Túnel, sugere a ponte entre a vida e a morte, ou seja, tem como história esta peça, a morte de dois rapazes num túnel de combóio, e que se recusam a morrer. Vivos, mortos, eles deambulam pelo túnel. Música contemporânea, chamada de improvisação, nada tem de improviso, pois toda ela é controlada. A banda magnética, diz o compositor, é um espelho dos próprios cantores.Tocando ao longo da peça musical com as duas pontas do diapasão na cabeça e logo colocando a outra extremidade no ouvido, os cantores entoavam sons, que sugeriam palavras não audíveis e que nos transportavam para essa viagem ao fundo do túnel, ao abismo da morte (tal como a cena de «Sonhos» de Akira Kurosawa, em que a personagem que  regressa da guerra, ao atravessar o túnel, se recorda de todos os que não voltaram, mas que, tendo morrido, se recusam a voltar ao mundo de Dante e o perseguem na memória do tempo, acusando-o de ele estar vivo e aqueles mortos). Assim se passa, também, com o murmurar daquela voz, aquele tom, que prenunciava no conto a morte de Camilo.No entanto A Cartomante mandava-o confiante para a morte, "cantando uma barcarola."
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(continua) 

O SONHO...

Fazer História, Rever O Sonho, é o título às avessas deste longo enumerar de trabalhos, que se vão esbatendo nas antigas fotocópias daquele tempo, pelo tempo, mas agora aqui ficam depositadas, como em cofre a que todos têm acesso com a chave milagrosa do Google, no meu blogue. Ficou guardado para o fim "o sonho" de que um dia nas nossas faculdades, em todas as faculdades do mundo, os alunos possam escrever textos criativos sem estarem "prisioneiros" das citações, das longas bibliografias, da intensa pesquisa. Porque é que os alunos não hão-de ser avaliados só porque os professores consideram um trabalho criativo fora do âmbito escolar? Ainda hoje não estou de acordo e o diferendo mantém-se. Incluí, pois, estes trabalhos no capítulo a que chamei "O SONHO", porque eu tinha um sonho quando entrei os portões daquela faculdade, - escrever -, aprender a escrever uma boa crónica, uma boa crítica literária, um conto, uma novela, quiçá, um romance...que sonho tolo, dirão! De facto foram seis anos de licenciatura e pós-graduação no Ramo de Formação Educacional, e nunca, mas mesmo nunca nos ensinaram nada sobre escrita. Nem sequer comentários aos trabalhos que se iam fazendo. Isto está bem...aquilo está mal... Enfim! Uma desilusão profunda e assim vão as nossas canoras aves raras...  
Este trabalho As Sempre Vivas, Uma História das Várias Histórias, de Machado de Assis foi realizado para a disciplina de Literatura Brasileira, no 2º ano da Faculdade e não foi avaliado; por isso, não sirva de exemplo aos estudantes. Aqui fica o conselho.
Agora vamos ao "sonho":  As Sempre Vivas!

segunda-feira, 19 de março de 2012

Teoria da Literatura (VULCÕES)

(Vulcões)
A palavra em si - vulcões - de imediato nos dá a imagem de algo que irrompe das entranhas da terra sem aviso prévio; sem limites, estremece-a a lança lava e chama, qual boca de dragão incontrolável.
Eles são fenómenos que o homem ainda não controla. Sobre os quais não tem previsões certas. Outra imagem, é o memorável desastre de Pompeia. Quando o Vesúvio em actividade sepultou para sempre uma cidade em plena efervescência. Vemos os amantes que enlaçados ficaram, e permaneceram para a eternidade, soterrados na lava do vulcão, e séculos depois libertos, quando retirados os seis metros de cinza, que qual lençol os cobriam. Por tudo isto que a nossa percepção nos dá, ao ler o título do poema, de imediato se forma a ideia de que o texto nos quer conduzir para algo que podendo ser destruidor também pode ser ao mesmo tempo, força pujante de criação e amor, e corte radical, fazendo olvidar o passado, mesmo que a fogo o futuro se imprima
Fala-nos em "profecia", e em como ela "se faz sempre a nível da linguagem". Profecia, como anúncio conjectural, quase oráculo, que se enuncia de forma "cifrada" por números. Vaticínio que se torna por vezes de difícil decifração. Mas é a ler que a descodificação se vai fazendo. O inigma como que se vai revelando e ocultando ao mesmo tempo. E as sucessivas leituras, mostram-nos da face oculta uma réstea de luz, permanecendo na sombra aquilo que não é revelável, ou que o excesso de cultura, impede de ver, quando simbolicamente se enuncia na mensagem.
O autor cita o exemplo do Apocalipse, como texto de linguagem cifrada, e enunciada numerologicamente. Nós, presentes na aula, sabemos, porque sempre nos disseram, que "bem aventurados são aqueles que guardam a Palavra da profecia", e que acreditam: "Eu Sou o Alpha e o Omega, o Princípio e o Fim, o Primeiro e o Derradeiro". E esta será a revelação que se mostra àquele que acredita, e guarda a Palavra. Simplesmente acredita. E de facto, este é o melhor exemplo, de que não se necessita de possuir uma vasta cultura para ascender à revelação. Essa cultura pode, inclusive revelar-se impeditiva, porque crer é aceitar o mistério, sem procurar intentar a sua decifração plena. Por isso revelação pode ser "puro espaço de contradição", e conter em si, "as dimensões do símbolo", sem descodificação. Contradição, porque o símbolo e a revelação serão aceites sem questionação. Como que neles cabendo a razão e a intuição, ou, se quisermos, a fé na criação. Essa fé permite o irromper do vulcão, tal como aconteceu quando Nietzsche, tentou e criou de novo, pela imaginação "o mistério grego", aquilo que a excessiva decifração da cultura grega, não tinha obtido.
A profecia é então ilimitada. Vai de menos infinito a mais infinito, o que proporciona a imensidão da liberdade na criação, ela mesmo contradição. E ao ser contradição, pode conter em si a orgia de Dionísio e a contenção e beleza de Apolo. Pode infinitamente encontrar Sófocles e Ésquilo, como força incandescente de criação, chama ardente de vulcões em permanente combustão. Eterna inspiração, fonte de novos mundos.
Eis o que é a literatura: vida e morte, contradição que, mais não é que a libertação plena da imaginação no acto de criar.
Ao finalizar, esta aula de teoria, queria dizer que mesmo que a criação literária seja à medida infinita do homem, ela existe e vive pela linguagem. E como tal pode ter uma sintaxe própria, e uma ampla semântica adaptável a esse "jogo" imprevisível, que é a literatura.
Sausurre, signo a signo, lançou a semente, ou ela já existia larvar, das bases deste estudo teórico. Linguística e filosofia que de mãos dadas, creio, sempre estiveram subjacentes ao estudo da literatura, "num excesso de cultura". Um canon a que Ésquilo e Sófocles obedeceram, e que lhes permitiu, assim como a S. João, e a Nietzsche, porque não, serem vulcões, (Vulcões)... "transgressões", vivas pulsões.  
E são essas que a teoria quer captar, corpo e alma do texto.

Lisboa, 26 de Maio de 1993.    

Teoria da Literatura

Preparar um texto para dar uma aula de Teoria da Literatura era o desafio. A aula estava prevista para o dia 13 de Maio de 1993. Não chegou a concretizar-se. Não me recordo o motivo pelo qual o trabalho não foi apresentado (já lá vão tantos anos!),  mas o "rascunho", ou as linhas mestras da aula, três páginas singelas, foram entregues à professora. Foram entregues numa 2ª versão de escrita no que se refere às duas primeiras páginas que preparavam a introdução do texto em análise para esse dia. Hoje vou guardar aqui, a 1ª versão da  abertura da aula, e depois, então, o texto da 2ª versão, esse sim entregue à docente. Vamos ao trabalho!

Aula de Teoria da Literatura

Introdução  
(1ª versão)

Analisar um texto numa perspectiva de teoria da literatura é diferente da análise feita para uma aula de literatura? Esta questão se me tem posto. Afinal o texto em si, poesia ou prosa, não é diferente para uma aula de literatura ou de teoria. Devemos descrever ou interpretar o texto?
Ora, o que de facto tenho observado, é que a dificuldade em delimitar o objecto de estudo da teoria literária se prende com a própria dificuldade de delimitar o objecto da literatura, o que leva a que estas aulas se assemelhem muito entre si, ou que se confundam. Ambas partindo do mesmo texto, a teoria procura encontrar as bases do objecto literário. Então quais são as suas barreiras e diferenças?
A teoria pretende estabelecer leis universais que presidam à criação literária, ao contrário da literatura que não aceita leis nem constrangimentos?
Muitas vezes me interroguei em como dar esta aula. Será de Teoria ou simplesmente de literatura?
Queria algo mais do que a descrição do texto, ou a historicização das correntes literárias. De vos falar das escolas de Praga, da Alemanha, da França, ou E.U.A. e Inglaterra. Das teorias Pragmáticas, Simbólicas, Objectivas, Miméticas, ou Românticas.
Parece-me que nada se cria que tudo permanece. Falo-vos dos anos 60/70, ou dos 80 ainda, Das tendências, do que disse Jakobson, Tynianov, Todorov, Propp, Greimas, Jauss, Iser, Ingarden, Barthes, Genette, Hifaterre, ou Peirce, Kuhn, M. Masterman? Da passagem de "Poiesis" para a "Aithesis", ou de que maneira reagiram a tudo isto os filósofos que se importam com a literatura, a teoria, porque só ela nos dá o homem integral? E a filosofia tem como objecto de estudo o homem pleno, logo a literatura não lhes é indiferente, e aí temos o que escreveu Austin, e o o que pensa Derrida, Foucault, Gadamer ou Haidegger, numa busca da verdade, de criar algo de novo. Mas na realidade nós não criamos nada de novo. Nada, Nem sequer se critica aquilo que está fossilizado (caso da "aithesis"), que não é viável, e que mais não serve do que ser motivo de desinteresse da teoria, porque nos dá uma mensagem ultrapassada. Se o é, tem que ser colocada na prateleira da história, e servir para a ela recorrermos como pesquisa e ponto de partida para criar novas formas de encarar a teoria da literatura.
É necessário um abrir de brechas, e, esse abrir, só é possível se for aceite a nossa crítica e questionação. Se eu, ou nós, não nos interrogarmos, tudo continuará como até aqui. Não é isso que queremos, por isso, para começar queria dizer-vos que a aula esta aberta à crítica, e à interrogação. Eu própria me pergunto como lhe dar início?

(2ª Versão)

Para começar queria dizer-vos que a  aula está aberta à crítica e à interrogação. Eu própria me interrogo como lhe dar início.
Todos nós sabemos que os formalistas se imbuiram da forma do texto, que se apaixonaram pela análise formal como se de um corpo anatómicamente palpável, mas que não lhe interligaram o conteúdo ou o ser profundo, a alma desse corpo - o texto. 
Os estruturalistas também não esgotaram a justificação do literário, tal como os morfologistas ou os da corrente new-criticismo, como, aliás, seria difícil, porque desde Aristóteles que a problemática subsiste.
Mas se a literatura é algo de subjectivo, «lugar de invenção», será possível teorizar sobre esse terreno movediço esse "estranhamento"? No entanto a teoria da literatura não será  "afirmação de uma metalinguagem", linguagem ela mesma, sobre diversas linguagens? E é isso mesmo que deve ser? Então colocaremos a literatura, em princípio, no improvável, e a teoria da literatura no provável, na técnica? Ou esta será uma conjectura? Penso que não. Mesmo que só ensinada  como disciplina autónoma nos finais do século XIX, creio, que esteve sempre subjacente ao estudo da literatura.
"Etimologicamente o termo teoria vem do verbo theorein em grego que significa: observar, contemplar, inspeccionar. Mas com Kant o termo teoria adquiriu    o sentido de um sistema de conceitos que visa dar uma explicação global a uma área do conhecimento." Então, teoria será, no sentido mais antigo da palavra, contemplar, inspeccionar, e no mais recente, em que encaramos a teoria da literatura como um sistema de conceitos, uma explicação global do objecto literário - o texto.
Nesta aula pretendo interligar o sentido grego do termo e o kantiano. Vamos juntos, contemplar o texto e tentar dar uma explicação global dele . Inovemos, é o desafio, e que a nossa curiosidade em conhecer seja sempre como "um vulcão".

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Nota ao leitor:
O texto que se segue, em análise, tem por base um outro texto de Herberto Helder, intitulado [(vulcões), assim mesmo, entre parenteses curvos], e pertence ao seu livro Photomaton & Vox, 2ª ed., pp. 125-126, Assírio e Alvim, Lx., 1987. Continuemos...



domingo, 18 de março de 2012

Sobre a Leitura (conclusão)

Este é o milagre da leitura que se faz sonho e nos transporta para além do tempo. Pode ser Shakespeare, ou a Divina Comédia de Dante a conseguir este sortilégio. Acontece a Proust esse sonho de se sentir em "Veneza na Piazzeta, diante das suas duas colunas de granito cinzento e rosa que suportam sobre os seus capitéis gregos, uma o Leão de São Marcos, a outra São Teodoro calcando aos pés o crocodilo." Era "um pouco do séc. XII, do sé. XII há tanto tempo transcorrido", que pela leitura ali renascia, e lhe mostrava aquelas "belas estrangeiras vindas do oriente sobre o mar... "Conservando o mistério que não se deixa possuir - o passado - esse eterno feitiço que se faz ilusão para caber na palma da nossa mão e ao mesmo tempo dessa se evolar.
Aos nossos olhos é presente, que mesmo enterrado parece "todavia ali no meio de nós, próximo, (...) imóvel ao sol".
Assim conclui Proust este prefácio que se me afigurou de uma riqueza primordial. Não resisti à inclusão de passagens do texto, que considerei belas. Poderia dizer-se que é um terno elogio da leitura e que se lê como um romance. Conseguiu, de facto, que eu, como leitora, visse nas suas palavras, no seu desenrolar de memórias, tantas e sentidas recordações a mim intrínsecas. Vivias em pleno, entrei pelas suas paisagens. dentro, senti-me em sua casa e nos mais reconditos recantos onde viveu o seu, meu, encanto da leitura.
Senti o perfume das flores, vi a "Primavera" de Botticelli, fui ao Louvre; e percepcionei os dedos que se faziam melodiosos na sonata de Beethoven.
Levou-me a visitar o dicionário de autores para melhor me familiarizar com todos os que tão harmoniosamente cita, ou simplesmente nos traz à memória ao referir os seus nomes. Tal como dizia Foucoult quando falamos em Homero ou em Platão, Dante ou Shakespeare são as suas obras o seu legado imenso, que no seu nome observamos e revemos.
Na verdade, contei, com o meu espírito curioso, os autores de que nos fala e são cerca de oitenta. Preenchi páginas com dados das obras e vidas que ainda me eram desconhecidas.
Este é de facto o corolar da leitura, quando sujeito e objecto se fundem no mesmo prazer sentido, e bebem pelo mesmo cálice o manancial de vida que recolheram dela.
Dentro deste "pequeno" livro como que cabem imensos mundos espirituais, bem visualizáveis. Se nos fala da "língua como espelho da vida" é nele que nos deslumbramos. Porque o belo reside na simplicidade com que expõe as suas reflexões. Quer seja sobre literatura, música, pintura, paisagística, ou simplesmente o sonho das viagens. Por Veneza, ou pela Holanda, pela Flandres, Londres ou Paris. Há em si os "condimentos" na medida exacta, porque, ao nosso olhar, ao nosso olfacto, ao paladar, ao nosso desejo nada é subtraído.
A nossa memória visualizou em quadros pintados a meio tom ou com cores quentes, a simetria e a cor dos locais e tempos inesquecíveis. No som suave dos sinos, ficou em mim o ouro puro da amizade por Proust. grata pela vida que dedicou à escrita, à leitura, amando tanto as personagens que se esqueceu de si. E, talvez por isso, escreveria a uma amiga:"o principal rasgo do meu carácter? a necessidade de ser amado."(1) Eis que conseguiu aquilo que dizia: "o universo aspira a por-se em contacto connosco; depende de nós, romper o encanto que tem prisioneiras as coisas, trazê-las para nós e impedir que voltem a cair no nada para sempre". Esta será a função da escrita, da leitura: fazer com "que uma música, uma pintura que nos comovem, correspondam a uma realidade espiritual" (2) que se faz língua, frase, sintaxe duradoura e recriada por séculos e séculos no próximo leitor. Numa eterna interrogação, porque só assim, penso, se cumpre a literatura, a vida.

Lisboa, 19 de Abril de 1993.
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Notas:
(1); (2) - in Proust, Marcel, entrada no Dicionário de Autores, González Porto- Bompiani, Montaner Y Simão, S. A., Barcelona,  Vol. I,II,III, 1968.
Soares, Bernardo, Livro do Desassossego, Lx, 1982, pp. 16; 18;19.        
   

Sobre a Leitura (continuação)

Queríamos com eles visionar, penetrar, e passear pela totalidade dessas paisagens e saber o que os levou a escolher aquele local, e não outro, para pintar, e nos darem a impressão do seu génio.
Mas é com a aparência que eles nos cativam, qual "miragem parada na tela, e que representa "a última palavra da arte de pintar." Tal como o pintor também o escritor só consegue fazer-nos ver uma parte insignificante do imenso universo repleto de incongruências e fealdades. Por isso apela ao olhar. Vê. "Olha! Aprende a ver! E a partir daí como que se eclipsa.
O leitor fica então perante a insuficiência que a leitura não colmata porque ela é um abrir de janelas ou portas para a vida, na qual se entrelaça, mas não a substitui. "A leitura está no limiar da vida espiritual; pode introduzir-nos nela: não a constitui."
Porque se a constituisse, então levar-nos-ia a conhecer casos patológicos em que os livros funcionam como psicoterapeutas, daqueles que perderam a vontade de querer e de pensar por si próprios, esquecendo a sua identidade.
Mas a leitura pode constituir também incentivo ao acto criador e Proust dá o exemplo de Emerson que normalmente lia Platão antes de iniciar a escrita. Assim como Dante, que Virgílio olhou até ao "paraíso."  Por isso, nos diz que: "enquanto a leitura for para nós a iniciadora, cujas chaves mágicas nos abrem no fundo de nós próprios a porta das moradas onde não teríamos sabido penetrar, o seu papel na nossa vida é salutar." Mas é perigoso quando, em vez de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela. Porque "a verdade não se encontra (...) nas folhas in-fólio," nem em todas as viagens possíveis para a alcansar através de bibliotecas, conventos, pesquisas sem fim, mas só em nós próprios, e nas nossas reflexões permanentes e nunca saciadas. 
Proust faz então a diferença entre o letrado e o erudito e em como,  tanto um como outro, sofrem da chamada "doença literária." O gosto pelos livros, cresce com a inteligência" e faz-se paixão, com todas as aventuras próprias dessa vivência. Grandes alegrias, ou grandes angústias rodeiam o objecto da paixão. Mesmo ausente, não sai da memória, está presente, e tudo se lhe dedica, sem nada pedir em troca. E da escrita se passa à leitura e vice-versa, porque aqueles que "sofrem" esta paixão não prescindem do "convívio com os livros." Victor Hugo, diz-nos, sabia de cor Quinto-Cursio, Tácito e Justino. O seu génio era de erudição alimentado.
Também Schopenhaur tinha uma "capacidade de leitura proveitosa", que reduzia cada "conhecimento novo (...) à parte de realidade, à parcela de vida" que continha. E para sustentar uma opinião fazia uso de várias citações. Homero, Hérodoto, Heráculo, Platão, Plutarco, Sófocles, Plínio, Schakespeare, Byron, Voltaire, todos terão usado máximas e citações uns dos outros, ou de "amores antigos". Foram autores que conseguiram a um "máximo de leitura" aliar um "máximo de originalidade".
A leitura cria sinceros elos de amizade que, se dedicam a um ausente; sem nada se cobrar por ela. É uma "amizade pura e calma", que no silêncio tem a sua atmosfera. É o pensamento do autor e o nosso que se tornam um só. Levando-nos a perdoar a "jocosidade tagarela e as melancolias" de escritores, que são também jornalistas, exemplo de Gauthier. Eles possuem "hábitos um pouco desordenados", mas esse elo de amizade, que se cria entre leitor e autor, suplanta o desagrado pelas tintas muito sombreadas ou esbatidas com que nos inscrevem no retrato. Veja-se, diz, que Fomentin e Musset, sendo doctados, ao retratarem-se o fizeram de forma desajeitada e inferior às suas capacidades. E os erros surgem como uma maneira de se aprender. Mesmo quando o espelho das páginas de um livro nos mostra espíritos deformados, em vez de altruístas, está a instruir-nos. E os perigos dessas leituras  esbatem-se quando do fracasso se aprende a afastar o perigo.
"Um espírito original" sabe subordinar as suas leituras às suas actividades pessoais. Porque distraindo-se "põe-se em contacto com os outros  espíritos" e é então que se dá a aprendizagem" dos 'modos de espírito". nesse evoluir de gosto, a visão dos grandes escritores, diz, depressa se volta para a apaixonante e sempre renovada descoberta dos clássicos. Victor Hugo se falava das suas leituras eram nomes como Horácio, Ovídeo, Molierre e Regnard que patenteava. Mesmo Afonso Daudet, que Proust considera ser o escritor menos livresco, e era moderno, vivo; lia, citava, Pascal, Montaigne, Diderot, Tácito.
O público seria, nesta reflexão, romântico, e os mestres, clássicos. Mas também estes últimos, preferidos desse público inteligente. Esta visão é extensível a todas as artes. A música de Vicent d'Indy surge como aquela que o público ouve, e a que o compositor relê será a de Monsigny. Ou as exposições das galerias, com Vuillard ou Maurice Denis, e estes visitam as do Louvre.
É como sair de si, do tempo, viajar. Uma necessidade que se enriquece nessa matéria antiga que é "a língua em que foram criadas". Nos versos trágicos de Racine, ou nas memórias de Saint-Simon, encontramos intacta essa arquictetura escultural de divinais cidades antigas e sentimos palpitar a doçura de vidas, o sol que as iluminou, as borboletas, as flores, que se representam na sintaxe viva, formas modelares do século XVII francês. 
É o palpitar dessas almas antigas que se inscreve em cada frase, mas também é visivel, diz-nos Proust, o silêncio. Recorda-se de como no Evangelho de S. Lucas, ouvia a pausa dos dois pontos, na leitura em voz alta do fiel. "Este silêncio enchia ainda a pausa da frase que, ao cindir-se para encerrar, conservara a sua forma; e mais do que uma vez enquanto eu lia, diz, ele trouxe-me o perfume de uma rosa que a brisa, ao entrar pela janela aberta, tinha espalhado na sala onde se encontrava a Assembleia e que se não evaporava desde há dezassete séculos."
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(continua)
      

sábado, 17 de março de 2012

Sobre a Leitura (continuação)

Era a leitura no parque; e a ela ligado estavam por um fio de memória as águas do rio, a erva onde se pousava o livro. Os cisnes, as estátuas, as carpas a saltar, os prados que o rodeavam e os bois que dormiam. As aldeias com "torres informes"; "roseiras bravas", e "a natureza que se estendia até ao infinito", e nela o labirinto pelo qual corria até alcançar a alameda onde se sentava a ler. Onde só chegavam intercalados no tempo "o som de ouro dos sinos que ao longe" faziam lembrar que as horas passavam, mas de tão doces, "nunca tinha a certeza de quantas tinham sido as badaladas."
Quando se aproximava a última página lida, era já a saudade das personagens que se instalava. Então, "estes seres a quem se tinha dado mais da nossa atenção e da nossa ternura do que às pessoas vivas, não ousando sempre confessar até que ponto os amávamos, (...) nunca mais os veríamos, nada mais saberíamos delas?"
"Bem gostaríamos que o livro continuasse, (...) obter outras informações sobre todas essas personagens, saber agora qualquer coisa da sua vida (...) não ter amado em vão."
Seria então, reflecte Proust, que estes seres, "sobre uma página esquecida num livro sem relação com a vida", não continham "o universo e o destino" mas somente ocupavam um lugar na Biblioteca?
Este será o cerne da questão? Proust diz que a seu "ver a leitura não deve desempenhar na vida o papel preponderante que Ruskin lhe reserva no Tesouro dos Reis", e vai-se questionando e questionando para mostrar o porquê do seu pensar. Aborda de imediato o "sortilégio" que uniu nele o acto da leitura e da própria vida passada.
Essa lembrança, qual benção, não é a dos livros que se leram, mas "é a imagem dos lugares e dos dias" em que as leituras se fizeram.Através deste voltar ao passado, teria despertado no leitor "o acto psicológico original, chamado leitura", e levá-lo a descobrir a experiência reveladora que é conter também dentro de si esse desejo de reflexão sobre o que representa, de facto, o acto de ler. Essa paixão desmedida que vem dos anos longínquos da infância e se transporta toda a vida.
Ruskin sustenta nas suas conferências sobre a leitura aquilo que Proust diz se poder resumir através das palavras de Descartes, que "a leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as melhores pessoas dos séculos passados, que foram os seus autores."
Mas o autor inglês, envolve em "ouro apolínio" esta ideia e diz que, "nem sempre podemos conhecer quem queríamos (...) podemos ter a sorte de entrever um grande poeta e ouvir o som da sua voz, ou pôr uma questão a um homem de ciência", isso só por um acaso fortuito. Daí a valorização da leitura.
Contudo, Proust sustenta que esta não deve ser comparada a uma conversa, mesmo com o mais sábio dos homens, porque o que as define e separa é a possibilidade de receber-mos um pensamento outro, sem deixar-mos de estar sós. À solidão da leitura contrapõe-se o som na conversação e a perda da comunicação de espírito a espírito.
Crê que Ruskin "não tentou ir ao próprio âmago da ideia da leitura (...) esse milagre fecundo de comunicação no interior da solidão", senão teria chegado a conclusões condizentes com as suas.
"A leitura (...) é algo de mais, algo de muito diferente do que disse Ruskin". Até que ponto é importante e quais são os limites do seu papel?
Torna de novo à questão das leituras feitas na infância, e interroga em que consistem as suas virtudes.  Elas serão as frases inesquecíveis, porque belas, e pelas quais se entrevê toda a antiguidade ou a idade média (que Gauthier no seu Capitão Fracasse lhe proporcionou), e que falam de algo que fechado o livro, se pode "continuar a conhecer e a amar." E que nos leva a desejar a opinião desse autor elegido sobre Shakespeare, Saintine, Sófocles, Eurípedes ou Sílvio Pellico. Ou a sua ajuda na descoberta da verdade a seguir, em assuntos na própria vida particular?
Mas, e logo surge a adversativa; seguindo-se a essas frases belas e inesquecíveis vêm aquelas que são insignificantes a nossos olhos para nos prender a atenção. Por isso o que o autor nos poderá dar não são respostas, conclusões, para o nosso questionar, mas o desejo, a incitação, de "contemplar a beleza suprema à qual o último esforço da sua arte lhe permitiu chegar". Donde se conclui que a verdade não nos é dada ou  iluminada por outro espírito, que através da escrita comunica connosco, mas que ela se cria por nós próprios, uma vez que fechado o livro, chegado o limite da dádiva, logo desejamos obter um pouco mais e partimos em busca de outro. Essa partida será  como que "um efeito de amor que os poetas despertam em nós". Porque nos mostram quadros que nos fazem percepcionar a maravilha, a palavra, esse outro lado do espelho onde queríamos penetrar. O mundo desconhecido revelar-se-nos-ia, porque, diz-nos, os pintores ensinam-nos à maneira dos poetas. "O Campo" de Millet ou "A Primavera" de Claude Monet, apenas nos deixam antever um pouco desses locais escolhidos para figurarem na nossa memória como em bruma.
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(continua)    

Sobre a Leitura (continuação)

Lembro-me, como do que estou vendo,da noite em que, 
ainda criança, li pela primeira vez numa selecta, 
o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. 
Fabricou Salomão um palácio...
E foi lendo, até ao fim, trémulo, confuso, 
depois rompi em lágrimas felizes...

Bernardo Soares

Sobre a Leitura é por Proust dedicado "à Princesa Alexandra de Caraman-Chimay", aludindo às suas Notas sobre Florença e preconizando que Ruskin se sentiria deliciado ao lê-las.
Esta dedicatória de "homenagem" e "profunda admiração" levaram-no a recolher nestas páginas recordações sobre a sua infância. Daqueles dias "plenamente vividos (...) com um livro preferido", que substituía todos os prazeres do jogo, ou do passeio, que resistia aos raios de sol ou ao zuir das abelhas, ao escurecer, à merenda, esquecida. Tudo o que fora aparente obstáculo à leitura era hoje, como ontem, uma "lembrança doce," porque tudo o que lia era  "então com tanto amor".
São os tempos das férias que se inscrevem nas próprias leituras que então se fizeram. Mas é também através delas que vem à memória o recanto da sala de jantar, da "velha Felícia, (...) dos pratos pintados pendurados nas paredes, (...) do pêndulo e o fogo", que davam ao que se estava a ler um cenário novo, sem se introduzirem no sentido das palavras, porque eram silêncio sem o ser, eram a companhia que se buscava ideal, para o acto de ler. A "cadeira, perto do lume baixo de lenha, o tio madrugador e jardineiro, (...) o barulho da bomba de onde a água ia correr, (...) os amores perfeitos colhidos (...) nestes céus demasiados belos (...) como que reflectindo os vitrais da igreja."
Eram os olhos que se erguiam da página para se alongarem em todas estas misteriosas belezas, que se inscreveram no livro que com frémito e ardor se leu. As horas passavam então depressa demais, e a refeição interrompia o contacto vivo com a personagem. Eram então outras personagens que irrompiam, quando punham o seu correio em dia. Acto pelo qual "havia respeito, mistério, lascívia e circunspecção.  "Leitura e escrita como que se interpenetravam, sem brecha, na memória da infância longínqua, a marcar o presente, o futuro. E eram essas personagens vivas que lhe diziam: "fecha o teu livro, vamos almoçar."
Ao livro, à leitura ficou ligado o odor do café, e o prazer de o ver ser feito à mesa, a "subir na campânula, a ebulição súbita que deixava a seguir, nas paredes (...) desse instrumento de física (...) uma cinza perfumada e acastanhada. "mas eram também os morangos e as natas, e as conversas da tia avó sobre culinária, na qual não aceitava ser contrariada,  sobre as sonatas de Beethoven, sobre a boa educação. Eram os condimentos na medida exacta que,  tal como faziam uma boa refeição, também faziam as boas maneiras; um bom músico. Só sobre versos ou romance não se pronunciava, em definitivo; aí, ouvia a opinião  dos entendidos.
E a leitura recomeçava no quarto. E então o que se avista da janela, "o vizinho armeiro, o pároco de breviário na mão, (...) ou o menino de coro", a decoração, a estética, "as teorias de William Morris (...) aplicadas por Maple", que entram no texto, que se fez recordação. A beleza das "mantas bordadas" e de como desaparecia debaixo delas, só comparável a um altar no mês de Maio - de Maria - (en)coberta de flores. Todos os pequenos objectos que, sendo supérfluos e não escolhidos, por si, constituíam, contudo, o seu agradável prazer de alí viver, e aconchegado de emoções várias, ler. mesmo quando se corria o risco de castigo, ou de insónia, por tornar a acender a vela, para olhar os últimos capítulos.
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(continua)