Eram os fins dos tempos, tal como hoje o dia acabara, as sombras eram intensas e Ahasverus sentado num rochedo, meditava primeiro, depois misturava-lhe o sonho. Ele era o último homem da terra (pareciam os sonhos de Akira Korosawa), séculos vivera, mas sentia-se cansado e os séculos acabavam com ele. Do céu azul, das nuvens, das rosas, das águas, da terra, de tudo se despedia, às montanhas severas como a sua dor, às águias comparáveis aos seu desespero, perguntava se morreriam também!
Mas eis que lhe responde uma voz! Afinal não estava sozinho! Era nada mais nada menos que Prometeu, aquele que ousara retirar o fogo aos Deuses para o dar aos homens, e por sua ousadia, para sempre, ficara preso aos rochedos acorrentado, servindo de pasto às águias que lhe iam comendo as entranhas! Mas ele seria de raça divina? Perguntava Ahasverus. Sendo assim, seria realmente o último ser humano podia morrer e fechar as portas da vida. Não, não poderás, disse-lhe Prometeu, a vida tem, como Tebas cem portas; umas se fecham outras se abrem, se fores o último da tua espécie, outros melhor que tu virão, não feitos de barro, mas da mesma luz. A plebe espiritual perecerá, mas as flores do espírito essas voltarão à terra; não te recordas de Platão? Da teoria da reminiscência? Em que aprender é um recordar? Sim o espírito voltará e reinará, acabar-se-ão as guerras, os oprimidos deixarão de o ser, os ventos não mais espalharão os males da caixa de Pandora, o amor vencerá, os filósofos, os escritores proporão a justiça universal...
Porém, Ahasverus, mesmo ouvindo tudo isto a Prometeu, diz-lhe: que me importa se o mundo me sobrevirá? De que me servem lindas sedas ou "púrpuras de Sidónia", se sei que vou perecer? O que dizes é melhor ainda que o sonho de Campanella, contudo mesmo assim deixa-me morrer! Se tens tanta pressa vai, disse-lhe Prometeu. Eu tenho vivido milhentos anos, reponde Ahasverus, sinto o fastio da existência; assisti em Jerusalém ao calvário de Jesus. Sabeis o que fiz quando passou à minha porta? Empurrei-o, gritando-lhe que não parasse até à colina onde ia ser crucificado. Desde aí ouço sempre aquela voz que me diz: errarás até aos fins dos tempos. Pago o erro de ter acreditado naqueles que diziam ser o inimigo a abater, um fora da lei! Contudo, Prometeu, diz-lhe: não foi tão grave assim a tua pena, porque tu leste da vida o livro todo, podes pois , fazer uma conclusão. És privilegiado em relação àqueles a quem só foi dado ler um capítulo ou outro e não chegaram a poder concluir, porque o que sabe um capítulo de outro? Tu, mesmo assim, pudeste verificar que a vida é feita de horas melancólicas, outras alegres e mesmo felizes! À primavera que traz as andorinhas, sucede o verão, o outono e o inverno; a esse tempo de retorno e belezas te foi dado assistir! Mas Ahasverus logo lhe diz: Que sabes tu de mim? Tu ignoras a vida humana! Não ignoro não, responde Prometeu. Mas, homem, tu que és perpétuo conta-me as tuas aventuras: já sei que saís-te de Jerusalém...
Peregrinei através dos tempos, conheci raças, cultos, línguas, sol e neve, ilhas e continentes, povos civilizados e bárbaros, respirei em cada homem. Trabalho como refúgio não tive: tive sempre a moeda para cada dia; hoje não preciso dela, vou atirá-la fora, continua Ahasverus. À eternidade, a eterna sabedoria somou a ociosidade e esta foi legada às gerações. O tempo fazia esquecer antigas línguas, e os heróis transformavam-se em mitos que se dissipavam; à própria história, restava-lhe duas ou três feições vagas. Talvez ao contrário do que disseste, Prometeu, sejam mais felizes aqueles que da vida só leram um capítulo: tudo lhes pareceu perpétuo, acreditaram que os impérios não cairiam, que tudo seria próspero e que não existiria a desolação, "acasos sobre acasos". A tudo assisti: fatalidades que fazem desejar que à noite não suceda o dia, e cheguei a confundir urzes com flores, nos olhos embaciados.
Maior castigo foi o meu, responde Prometeu. Jupiter que imperava no Olimpo, não perdoou que eu do lodo e água tivesse feito os primeiros homens. Mas isso é uma fábula, diz Ahasverus, um sonho dos Helenos! Não é sonho não. Verifica as correntes que me agrilhoam: foram fabricadas por Vulcano. Então, diz Ahasverus, essas o tempo não rói? Serão divinas? Mas, e então o que disse Moisés? Foste tu que criaste o homem? Então és tu responsável por todos os nossos sofrimentos? Mereces estar agrilhoado!
Ouve, ingrato, diz Prometeu, quem me retirou outrora as correntes foi Hércules. Pois eu tornar-te-ei a agrilhoar, diz Ahasverus, sabes bem que eu represento os desesperos de milénios! Não mais resistirás!
Mas Prometeu disse ao último homem que ele mesmo seria o novo Hércules, e tão generoso como o antigo, mesmo que ele diga que a glória não paga nada Prometeu continua a dizer-lhe que ele será o eleito, deixará de ser errante, será rei, e não se dará ruptura entre duas humanidades para que os novos homens conheçam o mal e o bem antigo; para isso viverás uma nova vida e melhor. E poderei olhar o sol? Pergunta Ahasverus. Olha-o, se puderes! Não posso! Vivo então o mito da caverna de Platão, em que o prisioneiro agrilhoado habituado a só observar as sombras que passam, quando liberto não consegue logo de imediato olhar o sol? Será uma aprendizagem lenta, até que o possa contemplar? Assim será, diz-lhe Prometeu. Quando as condições de vida mudarem, tu contemplarás o sol porque os homens serão livres e possuirão a natureza e tudo o que há de bom e belo. Não viverás só as sensações da vida: te-las-ás em pleno; ser-te-á dado contemplar David e os profetas e contarás todas as hipocrisias, egoísmos, vaidades e enganos que se viviam no mundo velho, contemplarás um belo céu azul e viverás auroras maviosas e noites de luar.
Então deixa-me, Prometeu, desatar-te essas correntes. Sim, podes fazê-lo, porque tu "és ainda maior que o teu Moisés", porque conheceste o mundo e voltarás a reinar nele, mesmo que o não possas nunca mudar; rei serás "de uma raça eleita". Então tudo será para "resgatar o profundo desprezo em que vivi? Como eu amarei a vida!" Não mais saberei o que é o ódio? E Ahasverus, mesmo a morrer, com a libertação, sonhava, assim como sonhavam as escravas de Sinhá Velha, quando ouviam enleadas, toda esta história Metafísica que não passava de Estilo, escrita pelo cónego Matias, que se preocupava em juntar ao substantivo um adjectivo a condizer e teimava que as letras também tinham sexo e se buscavam umas às outras.
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