Acaso estará certa a comparação que estes entrevistadores fizeram da "procura da angolanidade" com a procura de 'pátria' (Heimat)", que surge na obra de Ernest Bloch, e que terá vindo como que "remodelar o marxismo, dizendo que se atinge a utopia vivendo-a no dia-a-dia, fazendo dela mais um meio do que um fim?" Está patente, na sua obra, a liberdade como uma conquista que se vive dia-a-dia? Esta é a longa questão que lhe propõem, à qual o escritor responde que, efectivamente, assim é. Quer na obra, quer na vida, esse é o caminho. Porque a liberdade, para que exista, é necessário criá-la e fazer dela uma conquista permanente.
Angolanidade e liberdade "são realidades que estão ligadas" sinonimamente na sua obra. Essa procura da utopia mantém-se, mesmo sabendo que, possivelmente, nem metade dela se realiza. O real é "mais forte". No entanto, as pessoas idealizam um programa que lhes permite passar à acção, mesmo que, no fim, não se atinja a realização plena. "No caso da revolução", o sonho e a acção diferem e "não é possível atingir o que se havia programado."
Perante esta forma de ver, os entrevistadores perguntam: "então como interpretar a morte de Sem Medo, o personagem de Mayombe? Essa é uma questão que sempre lhe põem, diz. Mas simplesmente responde que ele teria que morrer, porque era uma personagem que só podia viver "numa situação de luta". Não inicia o livro, mas, a dada altura, como que se impõe à acção e ele a conduz. Teria que ser morto. Pedia isso.
Surge, então, aquele que é o seu mais recente romance. Acaso é uma biografia? Yaka, como uma saga familiar, terá origem na sua própria família? Um ou outro elemento da família é integrado no livro, mas não é directamente uma autobiografia, se bem que Yaka a represente também, uma vez que os familiares maternos fundaram a cidade de Moçâmedes. O seu pai teria ido, a certa altura para Benguela... Essa será uma ligação. Yaka representa, isso sim, as famílias antigas, aqueles "colonos que foram para Angola no século passado, que se integraram na sociedade" e, após 1975, se dividiram, com a independência. Ultrapassa, por isso, um pouco a realidade da família.
Porque se passa "a acção do romance à volta de uma estátua?" A esta questão responde o escritor que a introdução dá uma pista. Uma espécie de formação guerreira, que juntava bayakas, javas e imbangalas, terá percorrido Angola, umas vezes a "mando do rei do Congo", outras formando chefias no planalto central. Por isso, talvez deixassem uma organização social e política, que seria comum às diversas etnias de Angola. Ora, culturalmente, expressavam-se através de uma estatuária própria e "representativa", que também se terá espalhado pela sociedade, tornando-se símbolo de unidade nacional (agrupando as diversas etnias). Essa estatuária era utilizada como forma de ironizar o colonizador. Por isso, recair a escolha nesse símbolo, que obtém a oralidade no final do romance, quando se pôs fim à colonização. Consciência muda do personagem Alexandre Semedo.
A propósito de outras simbologias, noutras obras em que surgem animais, como o cão e a toninha, ou flores, como a buganvília, o escritor diz que, por vezes deixa em aberto para que os leitores decidam. O cão poderá, porém, ser a consciência do povo. "A toninha é a utopia"; a buganvília uma certa burguesia nascente? "è isso," responde. Faz notar que a cultura tradicional angolana é, por natureza, imbuída de máscaras e estátuas, que representam a própria força dos animais, da natureza. Surgem no Luegi, porque a intenção foi recolher na tradição "as pedras fundamentais da angolanidade".
Colocam-lhe, ainda, a questão de trabalhar com mistura de tempos no tempo. Será uma forma estilística? Ou uma forma de se ilibar de crítica à situação política de Angola? Não. Essa forma de trabalhar já vem desde Muana Puó. É uma sua constante. Mesmo em termos políticos, aí estão as ideias programadas que depois irá paulatinamente desenvolver.
E a propósito da actual literatura? Qual é o seu pensamento? É diferente. Os novos escritores não viveram a situação colonial, nem a de libertação: escrevem sob novas preocupações, que são as suas. É bom. Porque torna a escrita diversa. Existe uma preocupação de uma procura estética. O que "não quer dizer" que esses escritores não venham a trilhar caminhos na linha destes primeiros, mas sempre já a "outro nível".
Quais as influências na sua obra? De escritores africanos, francófonos e anglófonos? Eis a última questão. A que o escritor responde que as influências de escritores africanos não existiam porque, até há pouco tempo, não os conheciam. Somente os das colónias portuguesas, do Brasil e Portugal: José Lins dp Rego, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Jorge Amado, etc. Estes escritores conheceram-nos ainda primeiro que os modernos portugueses, pois "nos anos 57 e 58 chagavam a Angola, normalmente." Através destes, chegavam aos norte americanos, como Steinbeck, John dos Passos, Hemingway, "este sobretudo nos diálogos". E é dos escritores que mais admira. Considerando que "até a sua morte foi exemplar."
Então será uma experiência idêntica à dos homens que protagonizaram Claridade e Certeza, de Cabo Verde, que tal como Teixeira de Sousa se considerou influenciado pelos modernistas brasileiros? Desconhecia, responde Pepetela. E confessa que conhece há pouco tempo este escritor, a quem ainda não teve a oportunidade de falar.
Àcerca de uma possível influência de Camus, responde que não. Talvez de Roger Vailland. "Sobretudo no Mayombe." "Talvez Sem Medo tenha alguma coisa do conquistador de Vailland."
Propositadamente deixo para o fim a constatação de que os entrevistadores não conhecem "nas literaturas anglófona e francófona uma experiência igual "à de Pepetela. A que o escritor responde que se viveu "situações diferentes". E que considera haver uma literatura interna à própria Angola, que vem já do "século passado". E constata que a colonização de Angola foi diferente de qualquer outro país africano. Isso reflete-se, também, na língua. E dá Luandino como exemplo. O seu trabalho, diferente no que se refere à língua portuguesa, não encontra paralelo no francês ou inglês.
Acaso são os textos do escritor "entendidos" pelos "potenciais leitores"? Sim. Pela experiência que tem das reuniões "organizadas pela União de Escritores Angolanos" e pelas perguntas que são formuladas, pensa que sim. Se assim não fosse tinha "desconseguido".
Como conclusão, acrescentarei eu própria que, efectivamente, Pepetela - Pestana, "O grande" - conseguiu. Ele é um "construtor da angolanidade."
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JL, Jornal de Letras Artes e Ideias, pp. 6 e 7, de 2/10/1990.
Lisboa, Maio de 1991.
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