E o concerto continuava; na minha mente escrevinhava, ouvindo a classe de metais, o trio de clarinetes: fanfarra, allegro, andante, adágio, e pensava no conto Entre Santos, em que o capelão "caminhava devagarinho, calando o mais que podia o rumor dos sapatos (...) o rumor das vozes (as vozes não subiam do tom médio"; assim aconteceu, não com a fanfarra, mas com o allegro e o adágio dos metais e também com a interpretação do grupo vocal "IDEA" em To be sung of a summer night on the water, de F. Delius, e, ainda, do Salmo, de S. Racmaninof. Mas, apesar de não subirem "do tom médio (...) ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão, (...) a moeda, girando, girando, girando (...), descia do tecto, ou subia do chão, ou rolava no altar (...) ou tilintava nos pingentes do lustre".
Lustres lindos tem realmente o salão nobre do Conservatório (não do tempo de Garrett, pois só ao fim de dezassete anos Luís Augusto Palmeirim conseguiu, já durante o ministério de Fontes Pereira de Melo, a conclusão das obras). Mas estes só foi possível obtê-los quando Eduardo Schwallbach cedeu o salão gratuitamente, para que aí se realizassem os concertos e ensaios da Real Academia de Amadores de Música, pelo espaço de cinco anos, com a condição de que esses mesmos lustres e todo o material de iluminação, findo esse tempo, ficassem a pertencer ao Conservatório. Isto tudo escrevia eu quando olhava para aqueles lindos lustres e imaginava a música dos seus "pingentes"; como tilintavam aqueles se fosse possível rodá-los? Soariam como o Divertimento, de Malcolm Arnold? "A moeda girando, girando," fazia com que os meus olhos girassem também de uns medalhões para os outros, também eles redondos e lá de cima sorrindo, como que ouvindo estivessem, dizendo-me de olhos bem vivos: Fomos pintados pelo ilustre pintor Malhoa, um a um, Passos Manuel, Garrett, Xavier Migone e Marcos de Portugal.
Lembras-te que eu fui o compositor português cuja celebridade foi mais vasta?Dizia-me este último. Nasci em 1762, seis anos depois de Mozart, e oito antes de Beethoven. Conheci, como nenhum músico português, a celebridade, a reputação em toda a Europa e no Brasil, para onde parti em 1810 e seria no Rio de Janeiro que o Príncipe Regente me prestaria mercês. Em 1813 era já aí director do Teatro de S. João e ainda aí compus, em 1823, a música de S.M.I. do Brasil. Tudo isto eu lia nos seus olhos e pensava nos contos; e os meus subiam ao tecto e desciam ao chão (tal qual o cónego Matias), ou não se despregavam do "altar" (como Um Homem Célebre) que, para mim, era aquele palco, onde tocavam o trio de oboé, flauta e clarinete. Continuava a pensar e a conversar, já não com Marcos de Portugal (que tanto dera de si ao Brasil), mas com as Várias Histórias, de Machado de Assis. Era nelas que eu pensava. Porque nelas até o silêncio e as pausas se inscrevem para melhor apreciar a sua melodia. E então surgia-me "toda a melancolia da solidão e do silêncio de Inácio, quando o próprio solicitador lhe perguntou o que tinha "ao cabo de alguns minutos de pausa (...) a noite caíra de todo; D. Severina ouvia o tlic do lampião de gás." É espantoso não é? Isto que eu descobria; em todos os contos encontrava esta estranha melodia, que é a poesia feita de palavras e música, que, para além das pausas no silêncio, se ouvia o tlic do acender do candeeiro! Este concerto despertava em mim esta ligação ininterrupta aos contos de M. Assis. Mas porquê? Pensava. Afinal, já assisti a muitas dezenas de concertos. Pois é. Mas só agora descobri Machado de Assis! Antes, adorei a melodia de Camilo Pessanha. Hoje, porém, só os contos, ligados à música, ocupam todo o meu pensamento e relia-os, e ouvia, "o tom da voz" que "saía brando e até meigo" de D. Severina, ou os passos do solicitador que descia as escadas. Seriam em andantino ou maestoso? Soariam como o som de clarinete, ou do oboé? Fariam "ruído", como quando o gato deitou a tigela ao chão? Não. O "rumor", fosse do mar, das gaivotas, só terminava neste conto com o beijo que esta ansiava e que por fim receou.
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(continua)
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