Por exemplo: Garcia (...) estalava as unhas", mais adiante encontramos "o cão ficava ganindo (...) ouviu-se o rumor de vozes (...) o homem gemia (...) foi uma malta de capoeiras (...) ouvi um barulho..." Tudo neste conto, pensei, tem uns sons estranhos dados pelos verbos estalar, ganir, gemer, vozes surdas ligadas a ruídos dos capoeiras, ajudando a descobrir a dupla personalidade de Fortunato que, apesar disso tinha o "riso" jovial e franco; porém, havia "os guinchos dos animais (...) era a mesma troca das teclas da sensibilidade. A música de teclas estava trocada, havia necessidade, dizia de mim para mim, em dedicar juntamente com os "soluços" de Garcia, aquela Gloria que cantavam no concerto, a Maria Luísa. Assim fiz. E comecei logo a pensar no Trio em Lá Menor.
No palco estavam dois violoncelos: um tocado por Ana Paula Góis, e outro por Teresa Rombo, e um orgão que, com toda a melodia possível completava o trio instrumental. Tocava-o o professor Rui Paiva. Acompanhavam (não a Maria Regina, a personagem do conto) mas Ana Ferras, soprano, jovenzinha , mas que linda voz! O Credo fazia-me lembrar Maria Regina dividida. Não. Possivelmente ela não dizia "Creio". Mas também ela acreditava na paixão pela música, na inspiração, nos dons naturais. Por isso tocava piano, escolhia uma sonata e discutia "música (...) moderna e antiga. A sua avó tinha "a religião de Bellini e da Norma"; outro conto, pensava eu, construído em quatro andamentos que nos dão o seu próprio ritmo, desvendando através da palavra o "correr" da história. Primeiro o Adagio, lentamente, mas melodioso, expressivo, indiciando a indecisão, mas também a esperança, da personagem; um Allegro, mas non tropo, que corresponderá a um narrar mais rápido, mas não demasiado; com o Allegro Appassionato, a acção corre rápida, mas não esperançada. Regina, já sem emoção, entra no Minueto (AABA), dando-nos a ideia de uma dança batendo um ternário simples; por fim fica sozinha com a sonata, e a sua imaginação.
Cantava-se, agora na sala o Sanctus, da missa de Hayden, e eu pacientemente prosseguia na verificação da intercepção da música nos contos de Machado de Assis. Eis que, enquanto decorria o concerto, dou comigo a pensar em Frei Bento, que, se não era santo, era, porém, um "insigne" músico na arte de tocar viola e harpa. Agora reparo que praticamente já me surgiram quase todos os instrumentos em texto, que esta noite vi em palco! Contêm as Várias Histórias uma verdadeira orquestra de câmara? Ou serei eu que, sem dormir, manhã dentro, já vejo as personagens de Adão e Eva, o juiz-de-fora, D. Leonor, Frei Bento, todos no palco a agradecer aquela ovação que se tornava a compasso, até que Paulo Brandão, ou Manuel Peres Newton, ou, ainda, Teresita Gutierrez Marques, viessem novamente ao palco! Não seriam, também, estes aplausos para Machado de Assis? Ele inscreveu-os (aos instrumentos, aos músicos, aos compositores) não em pauta de música, mas em palavras tão melodiosas quanto aquele Benedictus a solo , pela soprano, "onde miríades de anjos os esperavam cantando (...) ao som de todas as cítaras, que uniam as suas notas em um hino aos dous egressos da criação..."
Era, realmente, um final em pleno para todos os alunos e professores. Eis que se inicia o Agnus Dei, e eu sinto presente Procópio que conseguiu ser um enfermeiro a quem foi louvada a "mansidão cristã", apesar de escutar "vozes surdas, gritos da vítima" e novamente o silêncio (a melhor melodia reside apenas no silêncio, dizia Carlayle). Entretanto Procópio escutava missa pelo descanso do coronel (não a de Hayden, que essa foi dedicada a S. João de Deus e tocada em Viena, e não na igreja do Sacramento), ou do seu próprio, e o Cordeiro de Deus acabou retirando-lhe a sombra da culpa e do pecado.
Agora que o som das palmas se esvaía, em que todos os alunos deixavam de bater os pés no soalho e de gritar Bravo! Bravo!, eu volto a pensar na noite de S. João e com ela, revivo o conto do Diplomático, ao som da "fogueira", pois nestes bailes populares ele não precisaria de ter "posição subalterna". Dançaria toda a noite e depois iria até à Foz, ver nascer o dia. Aí talvez o desgosto se desvanecesse por ter perdido a Joaninha para Queirós, que era um "saudoso na flauta". "Verão o que é a flauta..." dizia Calisto. Nem sabia que Rangel, nessa noite, "rompeu em soluços". Pois é. Chorar, soluçar, também é música e essa viveram-na Mariana, D. Paula e Venancinha em paixões mais difíceis de apagar. Evaristo desejava que as cordas dos relógios se quebrassem, para que estes, tal qual, metrónomos, não mais marcassem os tempos. Efectivamente, aquilo que Evaristo concluiu "que a arte era superior à natureza," coincide com o meu ponto de vista: a paixão pela música como arte, pela palavra, pela literatura, que estes contos reúnem, é superior às paixões da natureza, que o tempo apaga. Esta paixão vem da infância e inscreve-se no Conto de Escola, que nem os castigos conseguiram tirar, porque aí já se pressentia o poeta, que vê "lá fora no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio" e no rufar dos tambores une essa poesia à música eterna, dos bailes que a baronesa de um Apólogo vive e, o plic, plic, plic da agulha no pano, no "rumor das saias", no bater do coração, que ainda não era "um livro mas um prólogo, de paixão intensa, que merece Viver!, mesmo até ao "limiar da eternidade" aliviando o "tinir dos ferros".
Tal qual como fazia o cónego Matias "com essa melodia do velho drama de Judá", creio afinal, nesta paixão pela arte, mesmo que ela seja transgressão, aí está para durar. Concluí, quando ouvi tantas vozes (mais de duzentas) terminar a Missa Breve, de Hayden. Sim, mesmo as "cantigas da Roça" se aliam ao canto clássico e, neste cantar, estão as palavras, a voz, e o dom da pureza de os amar. Vou dormir, seria meia-noite quando descíamos as escadas; já são oito horas da manhã.
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Nota ao leitor:
Quando saí do Conservatório Nacional de Música de Lisboa seriam, de facto, perto das 24 h, e em seguida escrevi este texto, durante a noite, porque tinha pensado nos contos de Machado de Assis o tempo todo, uma vez que tinha que realizar um trabalho sobre as Várias Histórias. Foi aquilo a que os estudantes chamam uma "directa", porque, quero realçar, logo em seguida ao ter acabado este texto fui para as aulas da Faculdade sem dormir. Assim se passou.
(continua)
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