Só ele recobre ao mesmo tempo preocupações tão variadas como o estudo das técnicas e dos materiais que serviram à produção escrita de um texto, quer se trate de um autógrafo quer das suas cópias, o estudo das condições históricas (sociais, económicas, biográficas) que rodearam e influenciaram a produção do texto e o estudo dos seus itinerários e lugares de pouso (colecções particulares, arquivos, bibliotecas); o estudo da sua conservação, mutilação e restauros; o estudo, no caso de cópias, do número, condições e protagonistas dos actos reprodutórios.
Além de tudo isto, que tem a ver com o texto como objecto físico, e de um inevitável interesse pelas componentes gráficas, gramaticais, lexicais e discursivas do texto (ainda que se possa argumentar que elas pertencem a outras disciplinas), é também preocupação da Filologia, e possivelmente a mais visível de todas, estudar as técnicas de publicação moderna do texto e preparar as respectivas edições."
A edição do texto é competência da crítica textual - também chamada ecdótica - através de três modelos consagrados: a edição fac-similada, que fotografa o texto; a edição diplomática, também chamada paleográfica, que reproduz o texto tal como ele se encontra, numa transcrição conservadora, mesmo que em composição tipográfica moderna; e a edição crítica, que é a mais completa e elaborada da crítica textual.
Giuseppe Tavani diz-nos que "a expressão «edição crítica» designa o processo através do qual - utilizando os instrumentos elaborados pela crítica textual - a filologia intenta eliminar as alterações que os séculos, as vicissitudes históricas, os agentes físicos, mas em primeiro lugar o próprio acto de transcrição ou das transcrições sucessivas, introduziram num texto determinado."
A necessidade de se submeter o texto a uma análise crítica verificou-se a partir do momento em que se tornou evidente que toda a transcrição mecânica, ou manual, originava erros que podiam modificar-lhe largos segmentos e que a sua ocorrência se manifestava em intensidade proporcional ao número de cópias a que o texto tivesse estado sujeito.
Se um texto chegou ao editor através de um único manuscrito, a edição crítica deverá transcrevê-lo, emendando unicamente os erros mais flagrantes. Mas, se houver pluralidade de testemunhos, a edição crítica terá que fazer a análise comparada dos textos e obedecer a um critério que permita a escolha da lição a publicar. Esta escolha variou ao longo dos séculos e seguiu caminhos subjectivos e empíricos. Não tinha carácter científico e, por vezes, privilegiavam o gosto e a sensibilidade do editor em detrimento da vontade do autor ou do gosto do público leitor.
"Os humanistas adoptaram o princípio de privilegiar o «codex vetustissimus» (o mais antigo dos testemunhos considerado por isso mesmo o mais autorizado, mas que por vezes é o mais adulterado) ou o «codex optimus» - o testemunho que o editor julgava mais fiável." (3)
Seria já no século XVIII, e ainda mais no XIX, que se iria verificar a necessidade de novas metodologias. Karl Lachmann, seguindo contributos de outros filólogos, irá elaborar um novo método científico para fixar a lição «autêntica»". Esse método "consistia na aplicação à crítica textual do princípio de maioria: a comparação objectiva entre os diferentes testemunhos permitia fixar as relações entre eles e, na base dos erros comuns, reuni-los em famílias (isto é, em grupos, cada um dos quais deriva de um antecedente comum, ou «subarquétipo») e identificar também as relações entre estas famílias, que podem ser representadas graficamente num «stemma codicum» ou «árvore genealógica»"(3)
Este método, que partia do princípio que dois copistas não cometem o mesmo erro no mesmo segmento textual, foi aplicado por vários filólogos e obteve resultados positivos. Porém, Joseph Bédier, filólogo francês que, inicialmente, seguia Lachmann, viria a colocar o método em causa com as suas investigações, pois, aos textos medievais nem sempre se podiam aplicar as árvores de três famílias, uma vez que, na maioria dos casos eram bífidas o que tornava impossível o critério da maioria. Voltava-se atrás no tempo e optavam pelo «codex optimos». Provadas estas teses, os editores voltaram a publicar o testemunho que lhes parecia mais autêntico. A impossibilidade de se obter o original, ou a vontade do autor, constatava que o texto é, muitas vezes, resultado de sucessivas alterações e interpretações que o afastam das suas raízes primordiais.
Isso mesmo vamos constatar na edição crítica sobre a qual nos debruçaremos. O editor tem muitas dúvidas, que vai colocando ao longo do seu trabalho, e também terá que fazer opções. Constata-se que não há um método científico para a reconstrução do texto segundo a vontade do autor? Acreditamos que sim. Isso acontecerá sempre que o autor não deixe escrita a sua vontade última, sobre a organização a seguir numa primeira edição, ou nas póstumas.
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(Continua)