domingo, 28 de outubro de 2012

Clepsydra - Camilo Pessanha - Sinopse da E. C. de Paulo Franchetti

(Continuação da INTRODUÇÃO)

Só ele recobre ao mesmo tempo preocupações tão variadas como o estudo das técnicas e dos materiais que serviram à produção escrita de um texto, quer se trate de um autógrafo quer das suas cópias, o estudo das condições históricas (sociais, económicas, biográficas) que rodearam e influenciaram a produção do texto e o estudo dos seus itinerários e lugares de pouso (colecções particulares, arquivos, bibliotecas); o estudo da sua conservação, mutilação e restauros; o estudo, no caso de cópias, do número, condições e protagonistas dos actos reprodutórios.
Além de tudo isto, que tem a ver com o texto como objecto físico, e de um inevitável interesse pelas componentes gráficas, gramaticais, lexicais e discursivas do texto (ainda que se possa argumentar que elas pertencem a outras disciplinas), é também preocupação da Filologia, e possivelmente a mais visível de todas, estudar as técnicas de publicação moderna do texto e preparar as respectivas edições."
A edição do texto é competência da crítica textual - também chamada ecdótica - através de três modelos consagrados: a edição fac-similada, que fotografa o texto; a edição diplomática, também chamada paleográfica, que reproduz o texto tal como ele se encontra, numa transcrição conservadora, mesmo que em  composição tipográfica moderna; e a edição crítica, que é a mais completa e elaborada da crítica textual.
Giuseppe Tavani diz-nos que "a expressão «edição crítica» designa o processo através do qual  - utilizando os instrumentos elaborados pela crítica textual - a filologia intenta eliminar as alterações que os séculos, as vicissitudes históricas, os agentes físicos, mas em primeiro lugar o próprio acto de transcrição ou das transcrições sucessivas, introduziram num texto determinado."
A necessidade de se submeter o texto a uma análise crítica verificou-se a partir do momento em que se tornou evidente que toda a transcrição mecânica, ou manual, originava erros que podiam modificar-lhe largos segmentos e que a sua ocorrência se manifestava em intensidade proporcional ao número de cópias a que o texto tivesse estado sujeito.
Se um texto chegou ao editor através de um único manuscrito, a edição crítica deverá transcrevê-lo, emendando unicamente os erros mais flagrantes. Mas, se houver pluralidade de testemunhos, a edição crítica terá que fazer a análise comparada dos textos e obedecer a um critério que permita a escolha da lição a publicar. Esta escolha variou ao longo dos séculos e seguiu caminhos subjectivos e empíricos. Não tinha carácter científico e, por vezes, privilegiavam o gosto e a sensibilidade do editor em detrimento da vontade do autor ou do gosto do público leitor.
"Os humanistas adoptaram o princípio de privilegiar o «codex  vetustissimus» (o mais antigo dos testemunhos considerado por isso mesmo o mais autorizado, mas que por vezes é o mais adulterado) ou o «codex optimus» - o testemunho que o editor julgava mais fiável." (3)
Seria já no século XVIII, e ainda mais no XIX, que se iria verificar a necessidade de novas metodologias. Karl Lachmann, seguindo contributos de outros filólogos, irá elaborar um novo método científico para fixar a lição «autêntica»". Esse método "consistia na aplicação à crítica textual do princípio de maioria: a comparação objectiva entre os diferentes testemunhos permitia fixar as relações entre eles e, na base dos erros comuns, reuni-los em famílias (isto é, em grupos, cada um dos quais deriva de um antecedente comum, ou «subarquétipo») e identificar também as relações entre estas famílias, que podem ser representadas graficamente num «stemma codicum» ou «árvore genealógica»"(3)
Este método, que partia do princípio que dois copistas não cometem o mesmo erro no mesmo segmento textual, foi aplicado por vários filólogos e obteve resultados positivos. Porém, Joseph Bédier, filólogo francês que, inicialmente, seguia Lachmann, viria a colocar o método em causa com as suas investigações, pois, aos textos medievais nem sempre se podiam aplicar as árvores de três famílias, uma vez que, na maioria dos casos eram bífidas o que tornava impossível o critério da maioria. Voltava-se atrás no tempo e optavam pelo «codex optimos». Provadas estas teses, os editores voltaram a publicar o testemunho que lhes parecia mais autêntico. A impossibilidade de se obter o original, ou a vontade do autor, constatava que o texto é, muitas vezes, resultado de sucessivas alterações e interpretações que o afastam das suas raízes primordiais.
Isso mesmo vamos constatar na edição crítica sobre a qual nos debruçaremos. O editor tem muitas dúvidas, que vai colocando ao longo do seu trabalho, e também terá que fazer opções. Constata-se que não há um método científico para a reconstrução do texto segundo a vontade do autor? Acreditamos que sim. Isso acontecerá sempre que o autor não deixe escrita a sua vontade última, sobre a organização a seguir numa primeira edição, ou nas póstumas.
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(Continua)   

sábado, 27 de outubro de 2012

Clepsydra - Camilo Pessanha - Edição Crítica de Paulo Franchetti

"Só, incessante, um som de flauta chora,"
  ...
Camilo Pessanha
(pp.109)
"Floriram por engano as rosas bravas
No inverno: veio o vento  desfolhal-as..."
Camilo Pessanha
(pp.99)

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"Não sou filólogo em vão, sou-o ainda hoje, o que quer dizer professor de leitura lenta. 
(...) A filologia é efectivamente, essa arte venerável que exige do seu admirador antes de tudo 
uma coisa: manter-se afastado, ocupar o seu tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento.
(...) Ó pacientes amigos, este livro deseja apenas leitores e filólogos perfeitos: 
aprendei a ler-me convenientemente."

F. Nietzsche (1)


INTRODUÇÃO

Mesmo que o sentido original de termo filologia, de procedência grega, queira dizer «gosto pela palavra» e que tenha sofrido, ao longo da sua utilização, uma certa evolução, nunca encontramos uma definição de filólogo que tanto apreciássemos: «professor de leitura lenta». O amor pela palavra leva a que se lhe dedique o tempo silenciosa e lentamente. Só assim há, de facto, uma leitura conveniente. O crítico textual deve pretender isso mesmo: ser leitor e filólogo perfeito.
A filologia foi a "mãe" de todas as ciências literárias, tal como a filosofia o foi de todas as ciências. Se hoje, quando interpretamos um texto, o seu estilo, fontes, estrutura, dizemos que trabalhamos no âmbito da crítica literária, ou se fazemos uma análise morfo-sintáctica e lexical, dizemos que estamos no domínio da linguística, é porque estas ciências se tornaram, a partir do século XIX, autónomas da sua raiz matricial.
Para os investigadores românticos, a «meta derradeira que um filólogo se propõe» é a de «entender, no sentido mais amplo do termo, quanto um outro homem, mesmo distante no tempo e no espaço, confiou aos signos».
O dicionário Morais, na sua 1ª edição, de 1789, define "Philologia" como «a arte, que trata da intelligencia e interpretação critica grammatical, ou Rhetorica, dos autores, das antiguidades, histórias, etc.» Passados duzentos anos, na sua 10ª edição, a sua entrada continua a ser historicista, aliada aos estudos de uma língua e da literatura nela produzida: «Ciência das línguas ou de uma língua em particular, no ponto de vista da sua história literária e gramatical.»(2)
Apesar das principais disciplinas filológicas não aceitarem que lhes seja aplicado este sentido geral do termo, ainda é hoje o mais corrente. Os diversos estudos linguísticos pós-Saussure e o próprio estruturalismo literário, portadores de posições diferenciais, colocavam a palavra filologia fora das novas ciências.
No entanto, a filologia, na sua acepção mais pura, mantém-se nas novas disciplinas, compartimentadas e com abordagens específicas, mas que são interdependentes e têm como fim último "o texto e a sua escrita."
Para designar esse conjunto principal de disciplinas: Paleografia, Codicologia, Manuscriptologia, Bibliografia Material, diz-nos Ivo de Castro que "não há termo mais apropriado que «Filologia».
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(Continua)

Hoje...

Hoje vou dar-vos a conhecer um trabalho que realizei para o seminário de Crítica Textual I, no primeiro semestre do ano lectivo de 2003/2004.
Escolhi debruçar-me sobre as edições críticas da CLEPSYDRA de Camilo Pessanha, e fazer uma sinopse, uma resenha, acerca da organização das mesmas. 
As sucessivas edições são diferentes umas das outras e há opiniões diversas sobre a pontuação de variados  poemas, sobre a ortografia, ou mesmo no que concerne à aplicação de outras palavras que alteraram o sentido dos poemas.
Aqui reside a importância e a responsabilidade do obreiro de uma edição crítica. Fazer crítica textual, fixar um texto, a criação artística de um poeta, já falecido, implica uma interrogação permanente: será que esta é a verdade do que o poeta escreveu? As sucessivas edições impressas poderão responder a esta questão? É uma eterna interrogação.
Vamos partir para a escolha da fixação do texto, feita por Paulo Franchetti na sua Edição Crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha, e, seguidamente, para a Edição Assírio & Alvim e António Barahona.

sábado, 20 de outubro de 2012

Dia 27 de Abril de 1994!

Este foi o dia em que eu, repleta de sonhos, comecei a trabalhar para o Ministério da Educação do meu País  e comecei uma vida nova! Até aí tinha levado muitos anos a estudar para cumprir o sonho de menina de ser Professora. Na infância amei a escola e tive Professores tão dedicados, que nunca os esqueci! 
Quando saí da escola fui trabalhar, porque eu era a oitava de uma família com dez filhos. Nesse tempo, meu pai pensava que as meninas deviam preparar-se para casar e para ficar em casa a cuidar dos filhos e do marido. Assim aconteceu comigo e com outras três irmãs antes de mim. Aprendi como se deve governar uma casa com a minha mãe. Observava como ela cozinhava, como passava a ferro, como arrumava as gavetas, como fazia as limpezas, e ajudava em todas as tarefas domésticas. Quando já sabia arrumar uma casa e cuidar de tudo o que é necessário para que haja harmonia num lar, eu fui aprender a bordar à mão e à máquina, para fazer o meu enxoval.
 Os lavores femininos incluíam também o aprender a costurar. Aprendi. Fiz o meu primeiro vestido com treze anos. A partir daí eu fazia não só a minha roupa, mas a das irmãs mais novas e a da mãe. Até aos dezoito anos, incompletos, idade com que casei, nunca soube o que era ter dinheiro meu. Trabalhava para todos e ajudava em casa a passar a ferro, rimas de roupa, a encerar o chão, a arrumar os quartos, a lavar pilhas de louça, sem nunca me queixar. A minha alegria era permanente e eu gostava muito de aprender.
Quando fui para a minha casa e só tratava do meu marido, eu sentia-me uma mulher muito feliz e passava os dias a cantar enquanto trabalhava. Mas depressa me senti com vontade de aprender novas coisas e fui fazer o curso de dactilografia. Aprendia francês e estudava muito sozinha. Como a minha paixão era a leitura, todo o tempo que tinha livre, tal como desde a infância, eu passava-o a ler. Em África, onde me criei, não havia televisão, por isso, a leitura era o nosso melhor passatempo.
O meu marido andava a acabar o seu curso e trabalhava como Chefe de Escritório. Em breve tempo arranjou emprego para mim na empresa e comecei como dactilógrafa, arquivista, e também fazia o ficheiro. Aprendi muitas coisas novas e tive o meu primeiro ordenado. 
Aos vinte anos tive a minha primeira filha. Foi a maior alegria da minha vida! O tempo começou a ser  escasso e a menina tinha que ficar com uma ama. Aos vinte e dois anos tive a segunda filha. O marido já tinha acabado o seu curso e, entretanto, mudou de emprego. O meu salário era muito baixo e não compensava pagar à ama para ficar com as meninas. O meu amor de mãe dizia-me que eu tratava melhor das minhas filhas do que ninguém, e assim resolvi ser eu a criá-las e a educá-las. Vim para casa, deixei de ter o meu vencimento.
Comecei novamente a estudar e frequentava o Colégio Vasco da Gama. Fiz o exame do segundo ano (hoje 6º ano) com boas classificações. No mesmo ano lectivo, em Setembro, fiz os exames de Português e História do 5º ano, sempre a estudar sozinha, como autodidacta. Já frequentava o Colégio de Santa Maria Goretti, quando, aos vinte e quatro anos, vim para Portugal. Inscrevi-me no Serviço de Emprego. Não arranjei trabalho. O meu marido trabalhava na mesma empresa em Portugal, da que tinha sido gerente em África. 
Aos vinte e oito anos eu tinha quatro filhos e continuava em casa a educá-los. Tudo o que tinha aprendido com a minha mãe, tudo o que meu pai pensava ao educar-nos, era-me agora essencial. Mas eu continuava a estudar, mesmo como autodidacta, eu nunca parei de estudar. Matriculei-me no Liceu e acabei o 12º ano. Fui para a Faculdade e assistia diariamente às aulas durante seis anos. Estudava todo o dia, tratava de uma casa de seis pessoas. Cozinhava, costurava, lavava e tratava da roupa de seis pessoas, arrumava a casa, sempre com o exemplo do trabalho da minha mãe presente. Educava com muito amor os meus filhos. Ajudava-os. Todos se licenciaram. Eu não ganhava o meu salário. Vivíamos única e exclusivamente com o salário do meu marido. Não sabia o que eram fins de semana, nem férias. O trabalho e o estudo eram a minha vida. Estive dezasseis anos em casa a educar os filhos, que são a minha maior obra e os meus maiores amores.
Em Abril de 1994 tive novamente o meu salário! Enfim, eu contribuía para as despesas da casa. Comecei a dar aulas. Até hoje tive vinte e sete Escolas! Ensinei em 27 Escolas Públicas! Todos os anos fui contratada. Chegava a Agosto, ou antes, e acabava-se o contrato! Dei o melhor de mim. 
No ano lectivo 2011/2012 fiquei doente com um esgotamento. A depressão chegava pela primeira vez. Nunca tinha faltado às aulas, a não ser com uma gripe, ou infecções de garganta. 
Hoje estou novamente no desemprego. Este ano lectivo não tive trabalho. Estou sem colocar. Não tenho sequer tempo que chegue para me reformar! Estou novamente sem salário. Faço vinte anos lectivos a trabalhar para o Ministério da Educação no dia 27 de Abril de 2014. Isto se voltar a trabalhar. Sempre sonhei ficar efectiva. Quem destruiu Portugal com dívidas, nunca aprendeu a governar uma casa, nem sabe o que é educar quatro filhos. Nem sabe o que é ensinar centenas de crianças, que nos passam pelas salas de aulas. Nem sabe o que é estar desempregado.
Haja Deus.      

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Carta XXXVIII
(Tomo II)

A' Senhora Condeça de N. a respeito do Praser.
(...)

"A deleytação do Praser he em tal fórma inimiga do descanço, que he impossivel que os homens se entreguem a ella sem que se fação miseraveis, e criminosos. He tal na opinião do Padre Serrault (1) que fere a alma e o corpo com o mesmo golpe, enfraquecendo a alma, e corrompendo com remedios ainda peores do que o mesmo mal de que nos pretende curar."

(1) Serrault, Tratado do uso das Payxoens, trat. 6. Cap. 1.

Vienna de Austria, 18 de Mayo de 1737

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Carta V
(Tomo III)

Ao Senhor Conde de La Fimoneta, a respeito da Pobresa.
(...)

"Lembrou-me o que disse Seneca depois de Epicuro, que o remedio para ser rico era o de se acordar hum homem com a sua pobresa. Isto a falar verdade parece-me que não he mentira. (...)
Creyo que Seneca devia ter os pés bem quentes quando escreveo estes admiraveis pensamentos, porque se os tivesse descalços, gelados, e metidos em dois sapatos de pão, achando-se sem hum só toco para acender a sua chaminé, e aquentar o seu forno, creyo que estando mais frigido seria menos rigido.
El viver para ser pobre/Es cosa senor tan cosa/Que solo el que la padece/Sabe ser Zampa limosnas.
Exaqui o que disse hum Terencio Hespanhol, e exaqui huma sentença mais verdadeyra que todas as de Seneca."

Vienna de Austria, 24 de Janeyro de 1738
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Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Depois de concluído o trabalho acerca Do Carácter histórico, moral e filosófico das Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira, devo dizer-vos que seleccionei com total livre arbítrio os excertos das Cartas que quis que fizessem parte deste meu labor. Depois de lidos os três Tomos das Cartas, e escolhidas, numa primeira fase, aquelas que mais me sensibilizaram, tive que, numa segunda fase, retirar algumas delas, e, por fim, abreviá-las o mais possível, porque o trabalho de pesquisa estava a ficar mais longo do que o previsto.
Hoje, já liberta do número de páginas a cumprir, vou publicar mais dois excertos de Cartas, que não foram incluídas nesse trabalho. Uma é a respeito do "Prazer", outra é a respeito da "Pobreza." Continuo a seguir  a forma de escrita que Oliveira usava no século XVIII, e a mostrar-vos a sua maneira de pensar.
Até já.