Carta 19
(Continuação)
"Parece zombaria porem he ignorancia, diser-se em hum papel tão serio que o Esposo da Aurora foi muy conhecido, e todos sabem que se chamava Titão. Quando casou com ella era já velho e ela (...) o amava muito sendo idoso. Este seu affecto o obrigou a pedir a Jupiter que fisesse seu marido immortal. Jupiter ouvio os seus rogos, porem Titão cahio em huma velhice tão decrepita que servia de desgosto á sua amavel ametade. Compadecidos os Deoses (...) os metamorphoseárão em cigarras. (...)
O Imperador sem nome de que fala o Amigo de V. M. era Caligula. A este he que os Povos chamavão o moço, (...) se ele quer prova (...) pode usar neste caso da de Suetonio L.4 onde diz: Supra fausta nominae obvii sidus, & Pullum, Puppum, & alumnum appellabant.
O Principe a quem Alexandre Magno atacou he certo que foi Poro. (...) Diga V.M. ao seu Amigo que torne a ler Quinto Cursio no Livro 8. Cap. 12. 13. E 14.
Não posso diser a V. M. se está decidido que se diga Mecene, e Mecenas igualmente em Francez, porem (...) Richelet, Autor de certos dicionarios (...) nos segura que se póde diser Mecenas, e Mecene. Menage na primeyra parte das suas Observaçoens sustenta a mesma opinião, e ainda que estes Autores escrevérão sempre Mecenas, e não Mecene, houve autor de boa nota que escreveu sempre Mecene, e não Mecenas, e he Mainard nas Poesias pag. 119 onde diz assim:
Tours les Arts nous sont faciles./ O! qu'un Mecene aujourd'hui/ Pourroit faire de Virgiles!(...) Mecenas foi hum Cavalleiro Romano, favorecido de Augusto, segundo Imperador de Roma. Amava as Letras, e por esse principio todos os Escriptores lhe dedicavão as suas Obras, sendo elle o valedor das Musas na Corte de seu Soberano. (...)
Presentemente não ha Mecenas. A mayor parte dos filhos do Parnaso, e quase todos os que escrevem morrem de fome, e andão vestidos de borel. (...) Quando o Autor diz que Monsieur de Rampale foi o Mestre dos Idylios, he certo que não leu Richelet, o qual diz o seguinte do mesmo Poeta. Parece que monsieur Rampale não observou bastantemente o caracter bello, e sincero que nos deixarão os Poetas Originaes Gregos, e Latinos de quem temos verdadeyros Idylios, e verdadeyras Eclogas. Na opinião do seu amigo, M. Rampale he Mestre, e na de Richelet não chega a ser Discipulo. O certo he que o Idylio he (...) hum pequeno Poema que contém amores Pastoris ou de outras gentes que vivem nos Campos com doçura e tranquilidade. A invenção deste Poema deve-se aos Pastores do Peloponneso, ou de Secilia. Theócrito, Bion, e Mascho, poetas da Antiga Grecia, forão os que tiverão mayor reputação neste genero de versos.
Fala o Autor de Protogénes como superior a Apelles, o qual excedeo incomparavelmente ao outro na sua Arte. (...) Parece desnecessario dilatar-me neste capítulo para mostrar as vantagens do insigne Appelles."
(Desdiz o autor acerca da sua opinião sobre Marcial quando este se lhe refere como "Insigne" poeta e "insigne" cozinheiro, por ser pouco honroso e ridículo.)
"Marcial nasceo em Bibilis Paiz dos Celtiberios a que hoje se chama Aragão. Viveo no Imperio de Domiciano, e morreo muito pobre tendo mais de setenta e cinco annos de idade. (...)
Não sey que rasão teve o seu amigo para callar o nome do Papa a que elle com rasão chama doutissimo. (...) Este Papa foi Urbano VIII o qual sobio á cadeyra de S. Pedro na anno de 1623 chamando-se antecedentemente o Cardeal Barberino. Foy hum dos Pontifices que mereceo ser amado, respeitado, e nomeado, fasendo-se illustre pela sua virtude, e pelo seu entendimento. Teve grande amor aos homens doutos, e deixou as provas do seu genio em muitas Poesias Latinas, e Italianas.
Ninguem duvidará do alter ego do seu Amigo, porem sendo este exemplo muy vulgar (...) podia usar de outros. (...) Hum deles he o de Horacio, quando disse assim ao Navio em que se embarcou seu amigo Virgilio para passar a Athenas:
Finibus Atticis/ Reddas incolumem, precor/Et serves arrimae dimidium meae.
He verdade que naquelle tempo erão os amigos doces... (...) os amigos deste tempo são como os meloens, e que he necessario muitas veses provar hum cento para encontrar com hum que seja capaz."
(Referência a Júlio César e à sua morte, contradizendo que já estivesse prognosticado aquele fim trágico.)
"Não sabendo de outro vaticinio mais que do de Syurina, que lhe tinha predito como refere Suetonio que nos idos de Março seria desgraçado como se verificou. (...) Diz muito bem o Autor disendo, que a virtude dota os Monarcas antes do tempo, (...) lembro-lhe que não tem novidade, e que he huma pura imitação de Ovidio quando disse: Caesaribus virtus contingit ante diem."
(Referência aos Astros, Ursa Maior e Menor, e ao nome que se dava em Lisboa: o sete estrelo.)
"Arato entre os Gregos, e germanico, entre os Latinos, escrevérão largamente a respeito da disposição destas Estrellas... (...)
Ariano, Plutarco, e Quinto Cursio escrevérão de Alexandre Magno, e todos dissérão, que fora hum grande Capitão."
(Critica as comparações que o autor faz entre Alexandre e Júlio César)
"Alexandre Magno foi Rey de Macedonia, subjugou a Grecia, e desfez Dario, e Poro que erão dous Reys muy poderosos. Morreo em Babilonia de idade de trinta e dous annos e os Literarios perdérão muito com a sua falta. Ele os amava... (...)
Arrás he huma Cidade famosa, e Capital da Provincia de Artois situada em Flandres, a qual sitiou Luis XIII de França no anno de 1640. A Gasconada Hespanhola de que o Amigo de V. M. diz que se não lembra he a seguinte:
Parecia aquella Praça tão forte, e os Hespanhoes que a defendião se imaginavão tão seguros contra o ataque do inimigo, que escreverão sobre a Porta os versos seguintes: Quand les François prendont Arras/ Les souris prendont les chats. (Quando os Franceses tomarão Arras os Ratos comerão os Gatos) (...)
O prognostico dos Hespanhoes não foi ditoso. Os Franceses se senhoréarão da Cidade á vista dos dous Exercitos, commandado hum por Lamboi e outro por Buquoi. Entretanto os Franceses na Praça riscárão a Gasconada, e pintárão no mesmo lugar hum Cavallo magro com esta incripção:
L'Espagnol reprendra Arras/ Quand ce Cheval deviendra gras. (O espanhol recuperará Arras quando este cavalo engordar)
Quanto ao assunto deste discurso já disse a V.M. que o seu Autor não prova cousa alguma, parecendo-me tempo perdido o que gastou em provar a immortalidade de huma cousa que não conhece. (...) Se a alma como elle diz he toda spirito, quem Diabo lhe meteo na cabeça dar-lhe a sua chincada? Finalmente sendo o papel todo o corpo, entendo que não passa de ser materia, salvo outra vez a propriedade da Rhetorica. ..."
Vienna de Austria, 7 de Setembro de 1737
(Carta LXVII, Tomo II, pp. 376/7/8/9/380/1//2/3/4/6/7/8/9/390/, 392/3/4/5)
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Desta Carta ressaltam vários aspectos que, poderíamos dizer, cobrem assuntos históricos, morais e filosóficos. Discute-se a imortalidade da alma como assunto da missiva. Oliveira considera tempo perdido já que o autor, que ele contesta, não prova coisa alguma. Depois volta, como é recorrente, à interrogação retórica e diz que se a alma é toda espírito, como é que se lhe meteu na cabeça de lhe dar uma "chincada?" Por fim, declara que "sendo o papel todo o corpo", entende "que não passa de ser matéria, salvo outra vez a propriedade da Retórica". Ou seja, tudo aquilo que ele emendou de errado no dito discurso, é o que se salva, essa sim, imortal, a Retórica. Temos uma Carta com cariz pedagógico, porque o escritor, censurando tudo o que aparece como incorrecto, nos dá uma resenha histórica de diversos factos, reais e mitológicos. É, igualmente, uma reflexão sobre o vocabulário usado no seu tempo. Como se deviam escrever certas palavras? Segue-se a devida correcção. Depois, é uma crítica acerada à opinião mal fundamentada e com erros históricos. Por fim, aquilo que Oliveira condena como "um ramalhete, colhido das fragâncias dos jardins mais conhecidos," é, de facto, o que o nosso escritor também faz ao longo de algumas das suas Cartas. Cita exemplos, recomenda autores e obras, etc. Colhe, incansavelmente, o néctar das flores mais belas da literatura clássica, para produzir o seu próprio mel.