terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Uma Ida ao Cinema (conclusão)

Desanimado, quer que este lhe conte a verdade. Desesperado, parte para a frente da batalha; sentia que perdera aquilo que mais queria. Morreu. Roxane descobre a carta no seu peito. Cyrano diz a Christian que lhe tinha contado a verdade, e era a ele que ela amava.
Era necessário regressar, e fazer um prolepse, ou devo chamar antes uma elipse? Na verdade, como iria chegar o tempo de um filme, de uma peça, ou de um sonho para contar tão bela história? Por isso, eis que são passados quatorze anos. Roxane vive agora num convento, sempre fiel a Christian. Ali recebe a visita, todos os sábados, de Cyrano que lhe conta as novidades da sociedade da época. De Guiche visita-a, também, e pergunta-lhe por ele. Compara as suas vidas. Conta, então a Le Bret, que chega ao convento, que inimigos de Cyrano pretendem fazer-lhe mal. Assim foi: uma emboscada à traição. Le Bret não chega a tempo, e eis que uma trave lhe cai na cabeça! Ferido, muito ferido, é ajudado por amigos. Mas apercebendo-se que a morte está a chegar, teima em fazer a visita habitual. Mais uma vez teria que ver a sua amada. Anoitecia. Os longos corredores do convento já necessitavam de luz. As jovens noviças aguardavam ainda a chegada de Cyrano, que tardava nesse dia. Preparavam-se doçarias, boa comida na sua cozinha.
Mas eis que, mesmo doente, Cyrano surge e senta-se junto a Roxane. As lãs faltavam-lhe, e está entretida na sua tapeçaria. Demora a perceber que o amigo vinha doente. Quando dá por ela aproxima-se. Cyrano pede-lhe que lhe mostre a carta. Ela diz-lhe que sempre a trouxera junto ao peito. Cyrano finge que a lê. Sabia-a de cor. Ele a escrevera; as lágrimas aí caidas eram as suas. Mas o sangue era de Christian, diz-lhe. Finalmente reconhece a sua voz e descobre que fora ele que sempre escrevera as cartas. Era a ele que ela havia amado todo aquele tempo. Porque se calara? Não podia morrer, ela queria-o.
Chegam os amigos fiéis preocupados com a sua última aventura. O pasteleiro Rapeneau conta, como agora trabalha no teatro com Molière onde acende as velas, e como este aproveitara textos de Cyrano na sua peça "Scapin". E resultou bem a cena? Pergunta. Mostrando amor pelo teatro, pela literatura até ao fim. Sente que a morte o vem buscar. Continua, porém, a versejar, dizendo que esperava morrer de outra forma, mas vai ter com Sócrates e Galileu. Mesmo sabendo que ia ser vencido, conservava até ao fim o seu "penacho".
O sonho acabou. É em Picoas que estais. Escusado é chorar, porque Cyrano morreu, mas não morreu: ele vive em vós, na integridade, na beleza interior, superior à exterior, no amor infindo. Possível? Creio.
Voltamos ao séc. XX. Lisboa, 1991.

Uma Ida ao Cinema (continuação)

Eis, porém, que quando Cyrano se afasta, encontra um frei capuchinho que lhe pergunta pelo nome da prima. Era uma carta que ambos entregam a Roxane. De Guiche marcava consigo um encontro, pela calada da noite, antes de ir para a guerra. Era assunto urgente. Que faz Roxane? Inventa outra mensagem, em que o frade deve casá-la de imediato com Christian. Promete-lhe uma grande quantia em dinheiro para o seu convento, e este propõe-se a casá-los. É, então, uma corrida! Acordam-se os criados, são precisas testemunhas para o acto. A aia é a madrinha. Põe-se um altar numa mesa improvisada, mas com toalha rendada e candelebros. Entretanto Cyrano, que sabia da missiva, tapa a face com um lenço vermelho e vai ao encontro de De Guiche, para o atrasar no caminho. O nobre senhor vem mascarado, acompanhado por dois músicos. Saltando de um muro alto, diz-lhe que vem de outro planeta. Vem da lua. Onde caiu? Um homem de cara preta? Estou na Argélia? Não! É uma máscara, responde-lhe De Guiche. Será louco? Diz ainda. Então estamos em Veneza! Onde vai? Encontrar-se com uma dama? Então estamos em Paris! Floreados poéticos, ricas metáforas são utilizadas, tudo para lhe impedir o caminho. Senão quando, De Guiche descobre que é Cyrano. Enfrentam-se; as palavras são duras e os gestos. São chegados à porta de Roxane. Porém, esta já estava casada com Christian. A revolta é tão grande, que De Guiche dá-lhes o mandado imediato de irem para a guerra.
O sonho é, agora, um pesadelo. As cenas são de apocalipse. Fogo, carros queimados, cavalos mortos, feridos e esfomeados. Christian quase desfalece de fome. Cyrano, fiel ao seu amor, escreve-lhe duas cartas por dia. Noite escura, atravessa as linhas inimigas para lhas enviar. Durante uma dessas aventuras, encontra a estola branca de De Guiche. De regresso vê os seus homens numa briga, porque todos querem um pouco de rato assado. Resolve, então, dizer versos e faz um flautista tocar. Um pouco mais animados, eis que ouvem tocar os tambores. Cyrano diz-lhes: joguem as cartas, os dados, eu leio Descartes. É o comandante que se aproxima, também ele com cor verde, de fome. Cyrano dá-lhe a sua estola, prova da derrota na batalha. De Guiche pega nela e vai desencadear novamente a guerra.
Christian descobre, entretanto, que o amigo escrevia sempre a Roxane, e como é profundo o seu amor por ela. Ele escrevia uma carta de despedida, que Christian resolve ser ele a entregar. Encontra-se no caminho com colegas, que tinham ido tirar pão aos espanhóis, enquanto estes ouviam missa campal.
Aproxima-se uma carroça, que tenta passar as linhas inimigas. Os guardas espanhóis que assavam um borrego, tentam impedir a passagem, mas eis que Christian e os colegas ajudam a salvar a situação. Espanto, admiração! Quem encontram a conduzir a carroça? É Roxane! A própria. Que lhes vinha trazer mantimentos. Conseguem fugir todos. Quem vinha com Roxane? Parece mesmo um sonho! Mas assim foi. O pasteleiro Rapeneau, bom amigo, trazia uma autêntica dispensa. Comida e bebida para todos, que - quem sabe? - permitiu ganhar a batalha de Arras.
Mas quem perdeu foi Christian. Verifica que o amor de Roxane é todo inteirinho para a alma de Cyrano. Já não é a sua beleza física que ela ama, mas sim aquele espírito tão dotado e merecedor de ser amado. Cyrano.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Uma Ida ao Cinema (continuação)

No alpendre, parras se enroscam das colunas de madeira, que a suportam; rosas, árvores no quintal, uma perspectiva bucólica, campestre, colorida. Mas a cor essencial do quadro é dada pela singeleza de Roxane, que recorda a infância, na companhia do primo. Laços de ternura, anseio de ser correspondido no seu amor. Suprema ventura. Aquela menina mulher, ser sua! Contudo, Roxane vem dizer-lhe como é sua amiga. Deseja pedir-lhe que proteja aquele cadete vindo do norte. Hã! Hã! Hã! Cyrano mantém-se preso às palavras que saem da sua boca. Eram como punhais que feriam a sua esperança. Não tem coragem de se declarar enamorado. Chega a aia, ele afasta-a, diz-lhe que, se já comeu os bolos, leia agora os versos. Reage quando a prima quere saber como se magoou naquela mão. Foi no duelo? Conta primo. Meu amigo. Ficará para outro dia. Promete proteger o cadete. Despedem-se apressadamente.
Regressa à academia; vai de mau humor. Porém, os cadetes rodeiam-no, já sabem da proeza! Querem ouvir contar. Lava-se. Hoje não, amanhã contará. Mas logo o incidente é esquecido, porque acabava de entrar os portões, em forma de arco triunfal, da academia, De Guiche, autoridade máxima, comandante de cavalaria. Este vem felicitar Cyrano pela proeza da noite anterior. Pedem-lhe que recite. Recusa: outro tenta fazê-lo, mas não se recorda completamente da letra e então Cyrano, voluntariamente, declama "Agripina", tragédia em cinco actos. De Guiche oferece a este a sua protecção e a de Richelieu, seu tio, para a poesia. Recusa, e dá-se, então, uma referência a D. Quixote, que Cyrano diz admirar.
Christian chega à academia quando Cyrano conta a proeza da noite anterior. Este, que tinha sentido os gascões muito orgulhosos e arrogantes, sabendo que Cyrano não gosta que falem do seu nariz, decide provocá-lo e a cada cena interpela-o, introduzindo a palavra "nariz".
Ele, que tudo contava em verso, torneia sempre a questão e aguenta-se durante um tempo, mesmo que visivelmente incomodado. Christian não desarma e, então, Cyrano manda embora os cadetes violentamente. Estes, receosos de que se vá dar um duelo, tentam espreitar por uma alta janela oval, que deixava entrar a luz no salão.
A sós, Christian fica a saber que o "herói" era primo de Roxane e se propunha ser seu amigo. Resolvem, então, que este o ajudará a conquistar Roxane: a beleza de um e a veia poética de outro construirão o romance. Christian hesita em aceitar a carta do amigo, mas é uma epístula de amor e o seu coração aceita-a.
Os cadetes estão surpreendidos por não ter havido briga e de os verem amigos. Ousar, um, falar no nariz e logo ali é derrubado.
Mas eis que surge a notícia da guerra. Será que todos irão? A resposta é dada a Roxane por De Guiche, que lhe mostra as cartas que enviarão as companhias para a batalha de Arras. E o sonho continua. Parece impossível mas não é. Roxane mostra-se amorosa com o comandante para que ele não leve Cyrano e os seus cadetes para a guerra. Ele ficaria revoltado por não ir. Diz-lhe ela. Seria ferido no seu orgulho! Eis a melhor maneira de o penalizares: deixá-lo ficar! De Guiche, que fazia a corte a Roxane e pretendia encontrar-se com ela, mesmo sendo casado, resolve fazer-lhe a vontade. Deixa de parte o envelope dos cadetes de Cyrano. Desce do seu quarto com a velada promessa de se encontrarem antes de ele ir para a guerra. À penunbra o dia sucede, e, com ele, novas cartas de Christian para Roxane, que quase desmaia de paixão ao lê-las.
Certo dia, pela manhã, ela mesma recebe a carta que metem por baixo da porta. Abre, para ver se encontra o mensageiro; vêem-se de fugida. Eis que a carta lhe cai da mão, e já um mendigo, com um aguilhão, lha prende do chão! Corre espavorida atrás dele. São bois, suínos, galinhas, homens, mulheres e crianças, completamente misturados nesse largo junto à sua casa. Em roupão estampado, leve e vaporoso, camisa branca, de virgem, esvoaça! Seu coração estremece, mas consegue recuperar a carta.
Que diferente vida! E coexistia! Entre portas, no palacete, tinham limpeza, criados, patamares esfregados, escadarias brilhantes de luz, e lareira acesa, que projectava a sua sombra na parede, ao ler as suas cartas de amor. Pelas janelas, aos pequenos quadrados, observava a realidade lá fora, e sonhava. Aproximava-se uma tempestade, relâmpagos, luz e sombra. Roxane, deitada, pensa em Christian. Eis que este lhe atira uma pedra à janela. Corre a abrir. E o que ouve é de encantar! Uma voz sussurada, melodiosa, que lhe dizia o quanto a amava, em ternos versos. Parecia um quadro tirado da peça de Shakespeare. Ambos, seriam Romeu e Julieta. Porém algo a intrigava. Hoje ele sabia usar a sua retórica amorosa, ao contrário da noite do sarau, em que Christian só sabia dizer: "Je t'aime".
Era Cyrano que, de improviso, tal como lhe ditava o coração, assim substituia Christian. Este acaba por subir ao quarto de Roxane.

domingo, 29 de janeiro de 2012

Uma Ida ao Cinema

Imaginai-vos apressados para sair. Um encontro de amigos. Local o cinema Picoas. Cumprimentam-se, trocam beijos, sorrisos. Bem instalados? O filme vai começar. E hoje será Cyrano de Bergerac. Como num sonho, eis que vos sentis transportados para outra época, outro local que não Lisboa.
Era o séc. XVII. Em pleno Paris, numa noite de chuva, caleches a trote, pessoas que se abrigam, outros que abrem as sombrinhas. Todos apressados. Objectivo, chegar ao teatro, conseguir um bom lugar.
Camarotes, frisas, plateia. Diversos estratos sociais. Os membros da academia. Cavaleiros do Rei Sol. O mosqueteiro que não paga ingresso. Uma criança o acompanha. A sua curiosidade em tudo observar. Mistura-se o povo à nobreza. Ombreiam rendas, plumas, chapéus. Damas com belos vestidos de cetim, veludos; com trajes de estopa e linho, mãos sem luvas, chapéus sem adornos. Mas algo os une naquela noite: a paixão pelo teatro.
Sobem os candelabros, faz-se luz. A simulação, os efeitos do fumo são já visíveis no palco, que abriu o pano após a insistência do público ruidoso, em ouvir e ver Monfleury, aquele artista que Cyrano "ousara" proibir de actuar. Era trair a peça, a letra, a poesia; ele não tornaria a declamar! Além disso ousara cortejar Roxane!
No meio da multidão da plateia, mesas com frutas. O poeta Lignière, amigo de Cyrano, prova-as e comenta acerca das diversas personalidades. Virá Cyrano esta noite? Já pergunta Rapeneau a Le Bret. Não posso perder a aposta! Porque era também Lignière o ameaçado: ele ousara satirizar os ilustres cortesãos. Cem homens o esperavam. Isto confidenciou um espectador mais atrevido, que, ao meter a mão no bolso do barão Christian de Neuvillette, é apanhado. Tentava roubá-lo? Este estava enlevado a observar Magdeleine Robin, que após entrar no teatro com o rosto tapado por uma máscara preta, acompanhada por De Guiche, se encontrava no seu camarote e retribuia esses olhares.
Christian começava a gostar de Roxane. Seria impossível este amor? Roxane estava destinada a um nobre pretendente que De Guiche, seu tutor, escolhera para si. Mas eis que se inicia a peça «Clorise» de Baltasar Baro. No palco, o artista contestado por Cyrano declama, envolto em vestes luminosas, coloridas, de faces "bem" pintadas.
Eis que Cyrano irrompe entre a multidão, e, com falas em verso, ameaça: É preciso sair do palco já! Gera-se a confusão. De espada na mão, desafia quem com ele se quiser bater em duelo. Mas trair assim um texto é que não! Cai o cenário em cima dos artistas, que tentam em vão continuar no palco, apesar dos protestos. Acaba ali o espectáculo. Mas outro se iniciava. Cyrano vê a sua prima, amada do fundo do coração. De Guiche protege-a; descem as escadas, mas eis o desafio ao pretendente predestinado. Aceite o duelo, é já fora do teatro que este se realiza. A sua voz, numa entoação de enlevo, provoca aquele que ousa tirar-lhe Roxane! A sua espada, em lances perfeitos, deslumbra o povo, burgueses, nobres, que os rodeiam. A chuva parou. A força da natureza, ali, era Cyrano, para quem todos os olhos convergiam. Derrota brilhantemente o adversário, mas eis que logo se aproxima a guarda da noite, montada! Dispersa-se a multidão; Roxane parte de carruagem com De Guiche e olha-o ternamente. Admira-o!
Este afasta-se, e recebe o chapéu das mãos daquela criança que lho apanhara no meio da confusão. Seus olhos infantis, seu rosto, tem a expressão de quem viu um herói. Desenhá-lo`-á e colocará por cima de sua cama, folhas e folhas, onde traços de lápis lhe dão o seu herói que até todo o seu dinheiro deixou no palco.
Já Cyrano descansa, sentado, rodeado por alguns amigos, quando ao longe se vêem archotes, vultos que se aproximam. Que surpresa! Era a aia de Roxane que vinha marcar-lhe um encontro com a sua prima. Às sete horas, no fim da missa, Roxane queria falar-lhe. Onde seria? Ah, sim! Na pastelaria de seu amigo Rapeneau, que amava a poesia. Transborda de alegria, emocionado, por se saber procurado por sua prima. Precisava de comemorar aquela ventura.
Sabendo que Lignière não regressara a casa, porque cem homens o esperavam para o abater, eis que ousa desafiá-los. Vai, então, acordar o poeta que dormia nas arcadas, junto às docas, perto do rio, misturado com gente simples, e uma mulher que amorosamente o acolhia. Vamos todos, não receies, tu passarás a ponte e irás ficar a casa. Não são cem homens que me assustam! Dá-se, então, o desafio contra os que ousavam fazer-lhe a espera.
Amanhece. No ar, para além da brisa, esvoa-se o perfume daquela pastelaria. Afanosamente o pasteleiro e sua mulher e empregados durante a noite tinham trabalhado, para que manhãzinha houvesse doces dos mais variados, frangos e perús assados, para os seus fregueses. Mas este pasteleiro era um sonhador! Amava os versos e prodigamente abria suas portas aos esfomeados poetas. Sua mulher insurge-se contra a sua bondade, e dos seus livros, folha a folha, faz pacotes em forma de cone para embrulhar os bolos. Desespero do pasteleiro, que até com as receitas deseja fazer versos! Compara, então, a mulher à formiga e os poetas às cigarras. Um seu jovem empregado faz-lhe uma lira em pão doce; ele encantado, retibui-lhe o gesto com algumas moedas. Lira que alimenta um dos poetas, que comenta ... ser a primeira vez que esta lhe mata a fome.
A azáfama é grande, mas logo surgem os primeiros fregueses. São as duas crianças. Pedem os bolos empacotados - desespero do pasteleiro, ao ter que escolher um cartucho dos seus amados autores para lhes vender os bolos. Por fim são servidos pela mulher. Corre ele, porém, atrás deles e dá-lhes mais bolos em troca das folhas dos versos queridos. Feliz! Recuperou-os.
mas eis que, surpresa, surge Cyrano. Segreda-lhe que Roxane vem ali encontrar-se com ele. A esposa e o pasteleiro leva-o para as traseiras da pastelaria. Receoso, confuso, atormentado, vê-se ao espelho; falta-lhe a coragem de se encontrar com a prima, de lhe declarar o seu amor. Escreve-lhe, então, uma linda carta. Mas ei-la, chegou. Cyrano afasta a aia, enche-lhe um pacote de bolos e diz-lhe que só regresse quando os tiver terminado. Fica a sós com Roxane.

sábado, 28 de janeiro de 2012

Uma Ida ao Teatro

Entre as primeiras aquisições humanas, à canção natural do rouxinol, respondeu muito prontamente o jogo sábio da flauta.

E. D'Ors

Uma Ida ao Teatro

Por quem devo começar? Por aqueles que me esperavam, para fazer as honras da casa? Seja! Eram os músicos.
A sala estava na penumbra nessa noite estrelada, fria. Então resolvi meter-me dentro dessa Cornucópia e escutar. Ouvi melodias longínquas.
Eis que são chegados; sobem e descem as escadas! São eles, os actores de Shakespeare! Fez-se luz e o que vi vos vou contar:
Uma mesa com uma bela toalha de brocado estampado, repleta de iguarias, copos e jarros torneados, de cristal arroxeado, para um banquete, concerteza. Assim era; Benedito já se servia: bebia o suco de uma ostra, e da boca deitava a pérola na concha.
«Tanto barulho por Nada»! Por nada? Então não vinha o príncipe de vencer e adiar a guerra? E os seus nobres militares, garbosos, com mantos dos mais lindos veludos, para receber os sorrisos das damas! E os louvores!?
Vi, então, o mau génio e a teia de intriga que o bastardo, irmão do príncipe, preparou, e que resultou! E como este se sentava na sua cadeira tão singular!
Vi os seus bobos "efeminados", com roupas a rigor do tempo, que salientavam os seus orgãos genitais! Mas mais! O baile de máscaras, onde todos e cada um descobriam os seus segredos.
Vi que as damas se compraziam nos enredos de amor, e que discutiam e vestiam as mais belas roupas, ousadas! Com seus corpetes cintados e os seios brancos, pérolas realçados!
Vi o gongo, a flauta transversal, tímbales, xilofones de cana, e, de vasos brancos de vários tamanhos, tambores!
Vi que os músicos ajudaram a vestir em cena os actores! Se o dia nascia, o sol subia; se a noite vinha, no céu mil estrelas se acendiam! Luz e sombra, sombra e luz, originaram um amor, uma acreditada traição! Mas não! Eis que as sombras se esvaem e a luz repõe as verdades. Estas vencem a mentira, a intriga, mas com a ajuda dos guardas da noite. E aqueles dois que se catavam um ao outro, sem cansaço, em carícia, em enlevo!
Os actores misturaram-se, durante o intervalo, com os "cortesãos", que fumavam, bebiam café e mascavam pastilhas, observando a graça que irradiava o bobo, de fato às listas! As suas posições, tão demoradas, tão conseguidas! Subiam e desciam escadas, como se estivessem em cena, e estavam.
Vi os guardas, e ouvi a sua retórica, principalmente a do gordo, porque o magrinho sempre o seguia e lhe obedecia!
Mas eis que me atrevo, e regresso à mesa dos convivas. Queria ver os pudins, os biscoitos, o rosado licor, tudo aquilo que irradiava ideologia, mensagem, forma de vida. Logo um artista, aquele magrinho que o outro catava, se aproxima de mim. Sim! O outro, mais atrás, trazia a lanterna, e eu vi-me rodeada: pertencia à encenação!
Eis as pancadas de Molière: pediam o regresso de cada um à sua representação.
E os pombos? E o papagaio a dar o "esplendor de veludo barroco"? E o caramachão de ternas rosas? Eis que a "realidade era agora a cores"; que belos quadros, que linda voz, a do "Cintra"! E Beatriz!? Sempre lhe respondia que não o queria; mas queria sim! Amava-o com paixão. Essa era a "preto e branco, mais realista".
Simulação já bastou aquela que o bom padre arranjou! E o Conde, junto à campa da sua prometida, rezou os mais lindos versos, daqueles eternos, que prendem o coração. Isso levou a que o governador de Messina lhe arranjasse uma prima da sua primeira amada para casar. Era, e não era.
Chegado o dia, que espanto, que alegria! Estava viva! O amor vencia a morte, a intriga, a mentira!
Vi que Beatriz também casou e parecia feliz.
Ouviam-se entoar trovas de encantar e melodiosos sons, extraídos de um cravo simulado por um orgão electrónico, complicado.
Vi que ali quem imperou não foi a corte absolutista. Não! Foi o eternamente amado Shakespeare. Foi o Teatro, a literatura, a música, o artista.

Teatro e Cinema- O Jogo das Máscaras (Introdução)

INTRODUÇÃO

A Palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.

Marguerite Yourcenar, in «Memórias de Adriano».

Ao iniciar este trabalho para Cultura Portuguesa II, queria referir aquilo que Kayserling dizia: a cultura é sempre filha do espírito em núpcias com a terra (...) o homem não é ainda filho legítimo de uma terra de que não pode conquistar as matérias espirituais senão em escala extremamente reduzida.(1)Essa 'conquista' é feita paulatinamente ao longo da vida, porque, tal como R. Barthes definia a cultura: ela é tudo em nós, excepto o presente. (2)
Ora o passado geracional representa, então, essa 'caminhada' na recolha de 'matérias espirituais' que nos permitem sentirmo-nos 'filhos legítimos' da nossa terra. Assim sendo, a infância e a adolescência são fundamentais para conhecer e viver por dentro a nossa cultura, a do mundo que nos rodeia. T.S. Eliot já referia no seu ensaio "Notas para a definição de Cultura", que o principal canal de transmissão de cultura é a família. Penso que assim é. A escola, os professores completam-na. O gosto pela leitura, o teatro, o cinema, a música, a pintura, a dança, e todas as artes, vem desses tempos longínquos e vai-se "sedimentando" no nosso imaginário, mesmo sem disso nos apercebermos.
Sem pretenções autobiográficas ou confessionais, que poderão parecer "construções na areia", mas sim como testemunho, eu recordo que, ainda antes de saber ler, já via apaixonadamente cinema. Trepava a uma robusta árvore de maçãs da Índia, enlaçava-me nos seus ramos, e eis que eles me transpunham do meu quintal para o recinto da Igreja do Carmo. Aí vi as primeiras sessões de cinema. Eram os vários filmes de Charlot e os do Bucha e Estica. Assim como as 'famosas' matinés infantis "Primor", no cinema Restauração, quando a publicidade a estes produtos lácteos se fazia através da oferta de filmes para crianças.
Mais tarde tive a sorte de ter um professor (Mário Pereira) que nos levou a amar o teatro e a participar activamente. Durante vários anos fiz teatro infantil. Do cinema para o teatro, representei (no Colégio S. José de Cluny) um quadro do filme «O Rei e Eu», que era interpretado, no principal papel, por Yul Brynner. Éramos um grupo de crianças, 'filhos' do rei da Pérsia, que brincava, dançava e representava com uma perceptora. As canções eram cantadas em inglês. O colorido dos vários fatos de cetim, o feitio das calças e das blusas, as pulseiras nas pernas e braços, a forma como nos sentávamos (como se a fazer Yoga) são bem visíveis na minha memória. Era uma experiência de outras culturas. Guardo a alegria dos momentos de ensaio e a espectativa da estreia.
Esta vivência, aliada aos diversos comentários àcerca dos filmes mais variados, pelo conjunto de irmãos (em que um era crítico de cinema) levou a que se formassem hábitos de frequência assídua ao cinema, ao teatro, num profundo apreço pela arte de representar. Sebentas recolhiam colecções de fotos de artistas, e completava-se esse gosto com a leitura da revista "Flama", e de outras, como o "Cinéfalo", onde se aprendiam como eram simulados os cenários e os mais pequenos truques dessa arte nova, o cinema, que "combina e incorpora outras, servindo-se de códigos e modos de expressão diversos".(3) Aprendemos a reconhecer a importância da 'montagem' (como conjunto) e da estética, que caracteriza o cinema e o teatro.
Efectivamente, vivi um tempo em que a educação e o acto de ensinar era um acto de amor e dedicação, por parte dos pais e professores. Hoje verifico, inclusivé pelas notícias mais recentes, que junto, um regresso à preocupação de que a "frente de batalha do futuro passe por escolas capazes de produzir estudantes de 'classe mundial,'" para "que não deixem desperdiçar nenhum talento, por maiores que sejam os obstáculos sociais ou financeiros". Esta é a aposta do presidente americano Bush, que se propõe passar à História como o "presidente da educação". Tese que reforça as palavras de Kayserling e a minha própria preocupação: a educação e o criar de bases sólidas culturais, que fomentem o gosto pelo saber.
É com a ajuda desta "experiência" vivida, possivelmente "formada em partes iguais de instinto e cultura",(4) que eu vou abordar a peça de teatro «Tanto Barulho por Nada» e o fime «Cyrano de Bergerac», pois caracterizam uma época própria, o 'Barroco', matéria de estudo nesta cadeira.
Consciente que "qualquer crítica depende necessáriamente de se saber o que quer dizer um texto, de ser-se capaz de o ler", e que, para isso, talvez seja necessário possuir bases teóricas de semiologia, como uma "área de estudo vital para a estética do filme", eu vou, sem pretenções críticas, dizer como os vi. O trabalho será uma "montagem como princípio dialéctico" como conflito. Integrarei a comparação de um espectáculo e outro, no período barroco vivido em Portugal, para que possa considerar-me um pouco mais "filha legítima".
__________________________
Notas:
(1) Autores vários «Jornalismo e Literatura», Actas do II Encontro Afro-Luso-Brasileiro, Editora Vega, Clecção Trimédia, Lx., pp.82.
(2) Barthes, Roland, «O Prazer do Texto», Edições 70, Col. Signos, Lx., 1988, in Prefácio, pp. 22.
(3)Wollen, Peter, «Signos e Significação no Cinema», Horizonte Cinema, Livros Horizonte, 1979.
(4) Yourcenar, Marguerite, «Memórias de Adriano», Editora Ulisseia, 6ªed. 1988, pp.26.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

O Sonho na Realidade

Quando organizei todos estes trabalhos para os registar, chamei "Rever" aos escritos sobre literatura, e "O Sonho" aos trabalhos em que escrevi com o coração. Aos que considerei de História juntei-os com o nome de "Fazer História". Porque estou a referir este facto? Porque a um dos trabalhos para "Cultura Portuguesa II", «Teatro e Cinema-O Jogo das Máscaras» retirei dois textos. "Uma ida ao Teatro", e "Uma ida ao Cinema", que incluí no capítulo "O Sonho". O resto do trabalho incluí-o no "Fazer História", porque continuava, de certa maneira, o meu trabalho sobre a história do Cinema, embora noutra perspectiva. O "Sonho" de escrever com qualquer ponta de criatividade, ficou pelo caminho. Digo isto, porque neles gastei muitas horas retiradas ao descanso e ao lazer e escrevi, como se costuma dizer, ao correr da pena. Ficou-me o gosto de os ter realizado. Porque refiro esta situação? Porque, hoje, decidi incluir novamente "o sonho" na realidade e escrever o texto tal como o entreguei na Faculdade. A realidade é muito mais injusta que o sonho, mas isso são mágoas antigas que não vale a pena recordar. O que interessa é ver o entusiasmo com que assisti à peça «Tanto Barulho por Nada», de Shakespeare, levada à cena pelo Teatro da Cornucópia, e ao filme «Cyrano de Bergerac», baseado na peça do dramaturgo Edmond Rostand. Aqui está patente a inocência com que escrevia o que via, sentia, pensava. Ainda acreditava.

Até logo.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

O Cinema Português - Problemático? (Bibliografia)

BIBLIOGRAFIA

Barros, Leitão, «Como Eu Vi Castro Alves, e Eugénia Câmara, no Vendaval Maravilhoso de Suas Vidas», Ed. Cinamateca Portuguesa, Lx., 1949.

Cinamateca Portuguesa,«J. Leitão de Barros», 1982.

Costa, Alves,«Breve História do Cinema Português», 1896-1962, B.B., I.C.P., Lx., 1978.

Costa, Alves,«Da Lanterna Mágica ao Cinematógrafo», Cinamateca Portuguesa, Lx., 1986.

Castro, Alves, «Poesias Completas», Editora Tecnoprint, S.A., Rio de Janeiro

Cinamateca Portuguesa, «Cinamateca Nacional-25 anos», Lx., 1983.

Duarte, Fernando,«Leitão de Barros», publicação do 4º Festival Internacional de Cinema de Santarém, 1974.

Cinamateca Portuguesa, «Chianca Garcia», Lx.,1983.

Fundação C. Gulbenkian,«Os 40 na Arte Portuguesa», Ciclo de Cinema Português, Lx., 1982.

Matos Cruz, José,«Prontuário do Cinema Português, 1896-1989, ed. Cinamateca Portuguesa, 1989.

Pelayo, Jorge,«Bibliografia Portuguesa de Cinema, Uma Visão Cronológica», ed. Cinamateca Portuguesa, Lx.

Pina, Luís de,«História do Cinema Português», Publicações Europa-América, Lx., 1986.

Pina, Luís Andrade de, «Educação pelo Cinema e para o Cinema em Portugal», Separata da Revista "Rumo", Nov., 1963, Jan. e Fev., 1964, Bertrand (Irmãos) Lda., Lisboa.

Ribeiro, Félix M.,«Filmes, Figuras e Factos da História do Cinema Português», 1896-1949, Cinamateca Portuguesa, Lx.,1983.

Serrão, Joel,«Cronologia Geral da História de Portugal», 5ª ed., Livros Horizonte, Lx., 1986.

Jornais:
Expresso, 2 de Março de 1991
Diário de Notícias, 24 de Março de 1991
O Jornal, 21 de Dezembro de 1990

«Prontuário do Cinema Português»-Filmes de actualidades políticas - 1900/1911

1900 - «Um Passeio de D. Carlos I» de M. M. Costa Veiga.

1901 - «Chegada da Família Real dos Açores» de M. M. Costa Veiga.

1903 - «Chegada a Lisboa de S. M. El-Rei Eduardo VII de Inglaterra» de M. M. Costa Veiga.
«Visita do Rei Afonso XIII de Espanha» de M. M. Costa Veiga.
«Visita Oficial a Portugal dos Duques de Connanght» de M. M. Costa Veiga.

1904 - «El-Rei D. Carlos e a Rainha D. Amélia de Portugal, Hóspedes dos Soberanos Ingleses no Castelo de Windsor» de M. M. Costa Veiga.

1905 - «História de D. João IV».
«Visita do Imperador Guilherme II da Alemanha» de M. M. Costa Veiga.
«Visita do Presidente Emile Loubet de França» de M. M. Costa Veiga.

1906 - «El Rei de Portugal em París». / «Os Lusíadas» Edison, Paris. /
«Vasco da Gama» Edison, Paris.

1907 - «Casamento da Princesa Luísa D'Orleans, Figurando S. M. A Rainha D. Amélia». / «Chegada de S. M. D. Carlos a Paris».
«Desembarque no Arsenal dos Heróis da Campanha contra os Cuamatas».
«Um Trecho do Batuque a que o Príncipe Real assistiu em África».
«Viagem do Príncipe Real às Colónias» de João Freire Correia.
«Visita Oficial do Rei do Saxe»

1908 - «Viagem D'El Rei ao Norte». /«El Rei D. Manuel em Aveiro». /«El Rei D. Manuel em Braga»./«El Rei D. Manuel em Coimbra»./«El Rei D. Manuel em Espinho»./«El Rei D. Manuel em Viana do Castelo»./ «El Rei D. Manuel na Festa do Centenário da Guerra Peninsular».
«Entrevista com D. Carlos e Guilherme II em Gibraltar» de M.M. Costa Veiga.
«Os Funerais D'El Rei D. Carlos e do Príncipe Real» de M.M. Costa Veiga.

1909 - «Chegada de D. Manuel II a Calais». / «Chegada de D. Manuel II a Portsmouth». / «Chegada de D. Manuel II a Madrid». / «D. Manuel Visita o Colégio Militar em Toledo». / «O Rei D. Manuel em França». / «Os Reis D. Manuel II e D. Afonso XIII em Toledo».
«Vida Íntima de El-Rei D. Manuel II».

1910 - «Caçada Real em Albufeira». / «O Desembarque de D. Manuel e de sua Mãe em Gibraltar». /«A Partida para Londres e a Chegada àquela Capital». / «A Ex-Família Real Portuguesa no Exílio» - Gaumont.
«Proclamação da República» - Empresa Cinematográfica Ideal.
«A Rainha Maria Pia embarca no "Regina Elena"» - Gaumont(França).
«A Revolta em Lisboa» (Barcelona). / «A Revolução de 5 de Outubro» de M.M. Costa Veiga. / «A Revolução Republicana» -"Os Diversos Episódios".

1911 - «Festas da República» - M. M. Costa Veiga. / «Festa do 1º aniversário da República» - Alfredo Nunes de Matos./ «Festa do 31 de Janeiro no Porto». / «A Fita dos Conspiradores no Porto». /«Funerais da Senhora D. Maria Pia» (França). /«O Governo Provisório na sua visita ao Porto». /«Incursões Monárquicas».

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

O Cinema Português - Problemático? (Conclusão)

Conclusão

Ao concluir este trabalho verifiquei que podia, através da história do cinema, contar a História de Portugal. Mas, para se pôr em prática, terá que ser como complemento, pois "nunca se substitui à lição do professor".
Efectivamente, o cinema também pode ensinar, mostrando e aproximando "elementos distantes no tempo". É o caso destes filmes históricos de que falei. Oxalá que, em breves tempos, "a educação pelo cinema em Portugal" deixe de ser "um conjunto de sonhos, de leis por aplicar, de comissões sem actividade, de escritos à espera de serem lidos, de tentativas isoladas, de protestos sem eco". Estas são palavras de Luís Andrade de Pina, datadas de 1964. Pergunto: Acaso não estarão actualizadas?
Em 1918 a Invicta Filme mantinha nos seus estúdios uma escola de cinema. Rino Lupo montou a sua escola; mais tarde, a Tobis (1941) tenta uma pequena escola, que não teve longa vida. Segue-se-lhe o Centro Universitário da Mocidade Portuguesa, na criação de uma escola de cinema. "Embrião do Estúdio Universitário de Cinema Experimental em 1960/61". E agora? A Escola de Cinema do Conservatório Nacional chegará para criar laços e gosto pelo cinema, de molde a que se induza o gosto por esta arte, de forma a que venhamos a ter uma indústria cinematográfica capaz de produzir filmes que nos digam respeito? Ou iremos continuar a fazer a história dos anos trinta e quarenta e a falar na crise dos cinquenta? No cinema novo, velho, dos anos sessenta, e a dizer que o "cinema português não existe, não tem imagem"?
De facto, a sensação que posso transmitir ao terminar este trabalho, como aluna da Estudos Portugueses, é a de que há muito que fazer no campo da cinematografia em Portugal. E, para começar, talvez fazer um elo de ligação da escola primária à universidade.
Ao terminar, não queria deixar de manifestar o meu gosto em trabalhar na Cinamateca. Precisamos de duplicar, triplicar, cinamatecas como esta, por todo o nosso País, e, com elas, o cinema português.

Lisboa, Maio de 1991.

A História de Portugal no Cinema (continuação)

As invasões francesas irão suceder-se e, com elas, penetrarão em Portugal os ideais do liberalismo. Será como que um voltar de página na nossa História, pois nada ficará como antes. D. João VI parte para o Brasil e aí terá o seu reino. Portugal ficava problematicamente "adiado".
No filme de Manoel de Oliveira, «O Pintor e a Cidade», lá surge "intercalada" como um relâmpago a imagem de D. Pedro IV, estendendo a Carta Constitucional. Irão dar-se as lutas liberais. De um lado D. Miguel e a Rainha, que não quisera jurar a Carta; de outro D. Pedro IV, que pretendia um outro destino para Portugal. Absolutistas e liberais. Novos filmes reflectem esta vivência, extremamente importante da nossa História. «A Rosa do Adro», de Chianca Garcia, baseada no romance de Manuel Maria Rodrigues, reflecte a vivência (no Norte) dos homens que seguiam D. Pedro e os que eram partidários de D. Miguel. Rivalidades e ódios políticos, que se revelavam em duas diferentes concepções de vida: uma sociedade absolutista, que não queria perder os seus privilégios de "casta", e uma grande maioria de ideais liberais que pretendia uma nova forma de vida. A vivência no exílio de grandes intelectuais, como Alexandre Herculano e Almeida Garrett, produziria os seus frutos. Iniciar-se-ia também aí uma verdadeira literatura nacional.
«As Pupilas do Senhor Reitor», «Os Fidalgos da Casa Mourisca», e a «Morgadinha dos Canaviais», são romances de Júlio Dinis, adaptados ao cinema, e realizados por Leitão de Barros. Todos eles nos revelam a sociedade daquela segunda metade do séc. XIX, e como os ideais liberais tinham originado a ruína de alguns fidalgos, que tiveram que se adaptar à ascenção da burguesia e à implementação das novas ideias.
«Vendaval Maravilhoso» também nos conta os fins da época imperial do Brasil, decorrente, de certo modo, destas novas formas de pensamento que não admitiam já que o homem fosse escravo de outro homem, e que o Brasil se mantivesse na dependência do rei, da Metrópole, ou, mais tarde, do imperador.
Os filmes «Amor de Perdição» e «José do Telhado» também contam épocas e vivências da nossa História, assim como «A Severa».
De Carlos Porfírio, «Sonho de Amor» é uma mostra do ambiente "belle époque" da Lisboa de 1900.
E somos chegados àquele período em que havia cinema somente há quatro anos. Se primeiramente se filmou aspectos documentais, como sejam festas populares, jogos tradicionais, ou simplesmente a chegada de um navio, ou a saída de uma fábrica, a partir de 1900 começamos a encontrar documentários de Manuel Maria da Costa Veiga, e outros, sobre a família real. Um passeio; uma vinda dos Açores; ou viagem ao Norte, e ainda visitas de outros soberanos a Portugal; ou dos nossos últimos reis a Londres, a Paris, ou a África. Aproximava-se a revolução republicana, e também esta vai ficar bem marcada através da película cinematográfica. Aurélio da Paz dos Reis era um homem de "índole liberal e democrata convicto", como nos diz o Dr. Félix Ribeiro. Estivera ligado ao movimento republicano de 1891 e fora, inclusivamente, preso como implicado. Podemos, por isso, dizer que o cinema nasce em Portugal pelas mãos de um republicano e democrata, que merece figurar na História de Portugal.
Pelo Prontuário do Cinema, é-nos dado verificar que este, desde muito cedo, se ligou aos acontecimentos políticos. O ano de 1910, e a proclamação da República, também iriam ser filmados em profusão, com diversos episódios. Desde as revoltas em Lisboa, até ao embarque da família real para o exílio, após o regicídio de D. Carlos I e seu filho D. Luís. D. Manuel II e família, mais tarde sua mãe, e, por fim, as exéquias fúnebres destes últimos monarcas. Os levantamentos daqueles que preferiam o rei a governar também foram filmados, e datam de 1911 as "incursões monárquicas". Logo após a formação do governo republicano, são tomadas medidas através de um decreto para se introduzir o cinema nas escolas.
Passados são quatro anos, e, com o deflagrar da primeira guerra mundial, é criada a cinematografia dos serviços do Exército. O certo é que logo aí são criadas, também, as primeiras imposições à liberdade das câmaras. "Em 1917, no Diário do Governo nº 155, 1ª série, de 10 de Setembro", era publicado o decreto que impunha restrições à livre exibição. O Presidente da República, Bernardino Machado, e o ministro da Guerra, José Mendes Ribeiro Norton de Matos, assinavam este decreto.
Portugal tinha entrado na guerra, ao lado das nações aliadas, cumpria o tratado de aliança com a Inglaterra, e, por isso, era necessário proteger a entrada e exibição de filmes sobre os acontecimentos bélicos. Mas o cinema continua a servir a política, e é filmada a proclamação do Dr. Sidónio Pais em 1918. Mas também é iniciada, com regularidade, uma certa prática cinematográfica que formará os alicerces do cinema português. Em 1925 era implementada uma lei (nº 1748, de 16 de Fevereiro), que estabelecia normas concretas sobre a fiscalização da imoralidade, e em 1929 é criada a Inspecção de Espectáculos (decreto nº 17046-A). Este decreto irá orientar também o trabalho da Comissão de Censura, tal como nos diz Luís de Pina. Porém, e ainda segundo este historiador de cinema, nos primeiros vinte anos de filme sonoro atingiu-se o máximo da sua qualidade expressiva, apesar da censura, o que não obteve o cinema subsidiado posterior.
Em 1935, António Ferro está na posse de poderes para superintender todo o cinema português. Depois deste ano, a "produção nacional assentara sobretudo na estrutura da Tobis, na Lisboa Filme, depois de 1941, e na Cinelândia.
Apesar da entrada em vigor da lei de protecção, o cinema irá entrar em crise. Era o próprio País que vivia também em crise. Por ocasião da segunda guerra mundial, os próprios negativos dos filmes são vendidos a peso para "extraírem o celulóide e recuperarem a prata da sua emulsão". Não pude deixar de sentir mágoa, ao ler que "saíram da nossa terra toneladas e toneladas de película positiva e negativa, em muitos casos com grave prejuízo para a história do cinema português".
Entre elas o negativo «Nazaré Praia de Pescadores». Portugal entrava, tal como a nossa cinematografia, no «Feitiço do Império». Em 1938 constituiu-se a "Missão cinematográfica às colónias de África", criada no Ministério das Colónias. António Lopes Ribeiro produz este filme. Alves da Cunha, Ribeirinho, Estêvão Amarante, Isabela Tovar, são artistas que protagonizam este "Feitiço do Império".
Quase a terminar este meu trabalho, falo, ainda, sobre os «Heróis do Mar», de Fernando Garcia. "O Mar", diz Félix Ribeiro, é o grande protagonista. Aliado a ele, a vida dos pescadores do bacalhau na Terra Nova. A vivência de épocas em que os homens souberam, apesar de ventos e tempestades, "sempre vencer e dele triunfar". A esse triunfo liga-se esta vontade férrea dos actuais realizadores de cinema em Portugal, fazerem cinema português.
«Non ou a Vã Glória de Mandar», de Manoel de Oliveira, acaba de contar episódios da guerra do ultramar. Tempos que se misturam no tempo do seu filme. É a memória que se grava em fita. «Enterrados Vivos», de Gil Serine (Austrália), que foi rodado parcialmente em Portugal, mostra as consequências da colonização de Timor Leste. Chaga em mim, em nós aberta. Documento da "História do Império", que a «Ilha dos Amores», de Paulo Rocha, poderá, como que "símile da pátria", resgatar, na intemporalidade vivida com amor, elo entre os povos, encadeamentos da nossa História, que vive também no cinema português.

domingo, 22 de janeiro de 2012

A História de Portugal no Cinema (continuação)

No reinado de D. Fernando tomam-se medidas de desenvolvimento e publicam-se as Leis das Sesmarias. Mas não viria a ser feliz, pois o seu casamento com Leonor Teles e o envolvimento do Conde Andeiro, parece não ter agradado a todos os portugueses. D. Beatriz, sua filha, casa com o rei de Castela e Portugal fica sem sucessor ao trono. Quem viria a tomar o lugar do rei D. Fernando? D. João ou D. Dinis, filhos de D. Pedro e de Inês de Castro? Não. Seria o Mestre de Avis, filho do mesmo rei, que viria a ser D. João I, apoiado pelo Dr. João das Regras e D. Nuno Álvares Pereira.
Com o filme «Camões» (de Leitão de Barros), que, segundo o Dr. Félix Ribeiro, foi preparado com muito cuidado e seriedade, quanto às fontes históricas, poderia falar da conquista de Ceuta e de todas as viagens promovidas pelo Infante D. Henrique, que pertenceu a essa gloriosa dinastia de Avis. Da viagem de Vasco da Gama à Índia; de Goa, Damão e Dio, onde o vice-rei Afonso de Albuquerque viveu uma época de esplendor e de gloriosos feitos, tentando erguer o Império Português do Oriente; em como promoveu os casamentos entre portugueses e indianas.
Para além do seu amor por Dinamene, e da sua vida aventurosa, poder-se-ia visionar toda uma época da História de Portugal. Como viviam os nossos reis, nos "esplendorosos interiores do Palácio Real", e como era o Rossio no Séc. XVI. O Tejo as naus e caravelas. Como se continuaram as descobertas nos reinados de D. Afonso V e D. João II. E todos os enredos que originaram o Tratado de Tordesilhas (1494). Já se sabia ou não da existência do Brasil? Em como D. Manuel I continuou a gesta dos mares. Falaria de João de Barros, a quem D. João III doou uma capitania do Brasil.
E de Pedro Nunes, com a sua invenção do nónio, e as suas aulas universitárias, agora mudadas para Coimbra. Da "triste" chegada a Portugal do Santo Ofício, que logo inicia a censura (1540), através desse tribunal inquisitório, e se iniciam os primeiros autos de fé.
De como Paulo Dias de Novais chega ao rio Cuanza. Da regência de D. Catarina e, mais tarde, do Cardeal D. Henrique. De D. Sebastião feito rei quando atinge a maioridade. Do ano de 1570, em que Camões regressa a Lisboa, vindo do Oriente. Passados são cinco anos e é fundado S. Paulo de Luanda. D. Sebastião encontra-se com o seu primo, Filipe II de Espanha, para juntos se proporem tomar Alcácer-Quibir.
O grande desastre que podia ser visualizado através do recente filme de Manoel de Oliveira, «Non, ou a Vã Glória de Mandar", em que aparece a batalha de Alcácer-Quibir. A invasão de Portugal pelo exército espanhol; e a morte de Luís de Camões em 1580. Mas somente essas sequências fílmicas, para que se seguisse uma cronologia histórica através do cinema.
E, continuando quase linearmente essa História, eu escolheria «Frei Luís de Sousa» (de António Lopes Ribeiro), apesar de Alves da Costa considerar que o filme não passou de teatro filmado. No entanto, permitiria visualizar o drama que se viveu em Portugal com o regresso tardio de fidalgos que tinham participado na batalha ao lado do rei D. Sebastião. E como os portugueses sentiram o País ocupado por Filipe II de ESpanha, I e II de Portugal, visto e sentido na resposta do Romeiro que, à pergunta: "Quem és tu?" responderia: "Ninguém!". Era filipino e espanhol, Portugal dos fins do séc. XVI e meados do séc. XVII.
Com esta tragédia narraria o período que se seguiu, de domínio estrangeiro, que mais fácil tornaria de compreender a alegria da Restauração de 1640. Iria, em seguida às bobines cinematográficas e levaria para rodar «O Processo do Rei», de J. Mário Grilo.
Com ele, seria dado ver e narrar como D. Afonso VI sucedeu a D. João IV, através do golpe de Estado (1662) que fez terminar a regência de D. Luísa de Gusmão. Para logo, passados que eram cinco anos, o rei desafortunado ser desterrado para os Açores(1669), o qual viria a ficar definitivamente encarcerado (após o regresso) em Sintra, naquele quarto do Castelo, onde ainda hoje se pode ver o chão gasto de tanto o rei lá ter caminhado!. Viria a morrer em 1683, e D. Pedro II, seu irmão, ficaria com o trono e viria a casar com sua cunhada, Rainha D. Maria Francisca de Sabóia.
Chamaria a atenção para o discurso que Padre António Vieira faz no filme, quando no púlpito da igreja, durante uma cerimónia religiosa. Lembraria o papel desempenhado por este jesuíta como diplomata, ao serviço de Portugal, e a sua obra em favor dos Índios, no Brasil.
Nos inícios do séc. XVIII (1706) D. João V iria suceder a seu pai, D. Pedro II. Se não encontro, em cinema, uma fita que conte a vida deste rei esplendoroso, já em romance histórico temos o de Rebelo da Silva, «A Mocidade de D. João V», em dois volumes, datado de 1852. Júlio Dantas e Malheiro Dias também escreviam romances históricos, que vieram, alguns deles, a servir de guião cinematográfico, como por exemplo: «A Severa» e «A Ceia dos Cardeais» .
Mas o ambiente deste século "espectacular" poderia ser mostrado através do filme «Malmequer», de Leitão de Barros, que conta a história de amor entre "uma sécia e um peralta". Aí, segundo Félix Ribeiro, surge "o séc. XVIII com os seus ouropéis e as suas opulências, a sua frivolidade e o seu encanto, a elegância e a finura das gentes de qualidade (...) por entre renques de buxo e mármores patinados pelo tempo."
Seguidamente escolheria o filme «Bocage», de Leitão de Barros. Igualmente retratando uma época e os ambientes que este poeta sadino frequentou, baseado nos estudos rigorosos do historiador Gustavo de Matos Sequeira. Tendo nascido em 1765 e falecido em 1805, viveu no reinado de D. José, sob a governação de Sebastião José de Carvalho e Melo, de D. Maria I e de D. João VI.
Ora, efectivamente, este foi, para Portugal, um período iluminista que, para além do poeta Bocage, nos deu um Correia Garção, um Ribeiro Sanches (que escreveu «As Cartas Sobre a Educação da Mocidade», e o «Método para Aprender a Estudar Medicina», um Padre António Figueiredo, e ainda Luís António Verney (que escreveu «O Verdadeiro Método de Estudar»), Machado de Castro (que executou a estátua equestre de D. José I), ou Frei Manuel do Cenáculo e Tomás António Gonzaga, e tantos outros que fizeram o engrandecimento do País com a sua sabedoria e grandeza.
Porém, é curioso verificar que, apesar do desenvolvimento em todos os campos artísticos e literários, "o ensino passa a depender da Real Mesa Censória" em 1771. Faz-se a reforma da Universidade logo no ano seguinte, e promulgam-se leis sobre o ensino primário oficial. Quando se vive um alargar de horizontes a todos os níveis, que se pode constatar através da abolição das diferenças entre cristãos-novos e cristãos-velhos, e da concessão de "direitos iguais aos dos metropolitanos para os naturais da Índia portuguesa, também se vivem perseguições e desterros, que não só afectarão os poetas, como Bocage, mas o próprio Marquês de Pombal, assinado por D. Maria I.
Seria assim que eu continuaria a contar a História de Portugal através do cinema, e toda a problemática inerente aos períodos vividos por cada filme. Antes da prisão de Bocage também foi exilado Filinto Elísio, e Brotero. Em 1797 Bocage é transferido do Limoeiro para a Inquisição, e já poucos anos terá de vida. Assim como Camões morreu quando os espanhois ocupavam Portugal, também este poeta morre em 1805, um ano antes do bloqueio continental imposto por Napoleão.

(continua)

sábado, 21 de janeiro de 2012

A História de Portugal no Cinema

Em todos os actos criativos, quer eles sejam a pintura, a escultura, a dança, o teatro, o cinema, a música, a literatura, eu encontro e vejo história.
A História, para mim, é como o útero que nos envolve, o berço que nos recolhe. Este berço é a minha terra, onde nasci. A minha terra é o meu País. O meu País está inserido no mundo que nos rodeia, pertence a um cosmos, à Terra. Há como que um cordão umbilical que nos liga a vida inteira a essa mesma terra. Seiva que nos criou. A essa seiva dão os artistas toda a sua vida, o seu contributo. Senão vejamos atentamente qualquer literatura, seja grega, latina, francesa, inglesa, alemã, portuguesa ou outra. Ela é, muitas vezes, o retrato do passado mítico, lendário histórico. Dentro dessa história, cada acto criativo, cada ficção que se constrói, tem como que um compromisso para com ela. Creio mesmo que é instintivo. Serão os laços, ou raízes, que alimentam de seiva a criação. O mesmo se pode observar no cinema.
Para o cinema é transposta, através de um acto narrativo que se pode estruturar das mais diversas maneiras, a vida, inscrita num guião ou argumento. Logo, a vida é história, quer ela seja uma simples história de amor, passada entre duas personagens, que em nada tenham contribuído para mudar os rumos da História, quer sejam vidas em que isso efectivamente acontece, e que, através da prosa ou poesia, fizeram a ligação ao cinema, increvendo neste, tempos diferentes, passado que se projecta no nosso presente, que nos aponta o futuro.
Nesse passado histórico do cinema em Portugal, eu encontrei vários filmes através dos quais seria possível elaborar uma "construção" da nossa História, possibilitando visionar certos períodos. Senão, vejamos:
Poderíamos começar pela «Lenda de Miragaia» (1925), - de A. Cunhal e Raúl Faria da Fonseca -, desenhos animados em que se contam "as lutas do rei Ramiro contra o rei mouro", e que é baseado no «Romanceiro» de Garrett. Neste encadeamento poderíamos contar a formação de Portugal e as conquistas aos mouros, e as diversas batalhas que D. Afonso Henriques, D. Sancho I, D. Afonso II e D. Sancho II empreenderam, até possuírem as fronteiras que ainda hoje tem (mais ou menos) Portugal.
Seguidamente, escolheria o filme «Rainha Santa» (de 1946), com argumento histórico do Dr. Francisco Alves, e a planificação do realizador espanhol Rafael Gil, através do qual iria contar a história do reinado de D. Dinis, o rei "Lavrador", mas também o rei poeta, homem muito culto, que fundou a Universidade em Portugal em 1288. A influência que a Rainha Isabel de Aragão exerceu junto do rei nas suas lutas com o irmão D. Afonso, e, mais tarde, entre o seu próprio filho e herdeiro do trono de Portugal, D. Afonso IV. A fundação do hospital de Santarém para crianças, e, ainda, a lenda do milagre das rosas, motivada pela bondade que era atribuída a esta Rainha, que ficou apelidada de Santa Isabel. Em como foi neste reinado que se mandou plantar o pinhal de Leiria, que iria possibilitar a gesta dos descobrimentos. Mas não pararia aqui, porque logo teria à mão as fitas da história de Inês de Castro, que mais de uma vez foi narrada através do nosso cinema.
Escolheria a realização de Leitão de Barros, onde poderíamos visionar um D. Pedro I tão bem interpretado por António Vilar, que jamais se esqueceriam aqueles olhos de amor, e também de loucura, por aquela terrível desgraça a que foi submetido por seu pai, D. Afonso IV.
Inês de Castro chega a Lisboa em 1340, na comitiva de D. Constança, noiva do infante D. Pedro. Nesse mesmo ano, publicara D. Afonso IV várias leis, e, entre elas, havia uma contra o adultério. Mas as leis do coração são de ordem diversa, e aconteceu que o amor de Pedro e de Inês não foi aceite. A própria natureza parecia estar zangada e assolara Portugal com epedemias de peste. Mesmo D. Constança tendo morrido em 1345, após o nascimento do que viria a ser o IX rei de Portugal, D. Fernando, questões políticas, intrigas da Côrte, impossibilitaram D. Pedro de contrair matrimónio com Inês de Castro. Da sua união resultaram três filhos, que não alcançaram nenhum lugar de proeminência política.
Este tema seria o primeiro a ser escolhido como filme de reconstituição histórica pela empresa cinematográfica Ideal, em 1925. Deram-lhe o nome de «Rainha depois de Morta» (antecedia o filme de Leitão de Barros em vinte anos), o que o rei D. Pedro I anunciaria em Cantanhede, - casara com D. Inês de Castro -, corria o ano de 1360.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A Década de 30 e 40 (continuação)

Continuando o percurso destes anos 30, encontramos os reflexos da influência germânica no nosso cinema. Imagens claras e luminosas, fimagens no exterior. Artur Duarte regressa a Portugal, vindo da Alemanha, onde após a subida dos nazis ao poder, traz consigo uma equipa germânica de origem judaica. Estão no projecto de «Gado Bravo», assinado por António Lopes Ribeiro, onde encontramos já o trabalho dessa mesma equipa alemã, que se irá repercutir em vários filmes da década: «As Pupilas do Senhor Reitor», «A Revolução de Maio», «Maria Papoila», «A Rosa do Adro», «A Canção da Terra», «Os Fidalgos da Casa Mourisca» e «Feitiço do Império» são disso exemplo. Trabalho de operadores alemães, que viriam a influenciar os nossos principais operadores, como, por exemplo, Salazar Dinis que Leitão de Barros muito considerava. Este realizador continuava a dar mostras do seu trabalho inovador. Assim, surge «Bocage» que inicia um ciclo de filmes histórico-literários a que se irá dedicar.
Chianca Garcia estreia uma comédia, «O Trevo de Quatro Folhas», no S. Luís, em Junho de 1936. Já neste tempo os orçamentos eram elevados, pois este filme ficou em quatro mil contos, o mais caro da época. Em 1939, este realizador estreará o seu último e melhor filme em Portugal (pois irá radicar-se no Brasil), «A Aldeia da Roupa Branca», considerado hoje como um "clássico da comédia popular"; tinha a Beatriz Costa também na sua última representação no cinema.
Nos anos 40 vive-se, curiosamente, uma década de cinema de humor, de que «O Pai Tirano», de António Lopes Ribeiro, é exemplo. A comédia "assentava arraiais" e mostrava-se bem ao gosto popular, que até aí já cimentara no teatro de revista. «O Costa do Castelo», «A Vizinha do Lado», ou o «Leão da Estrela» eram textos dialogados (filmados, normalmente, em interiores, e de poucos cenários), que já tinham dado provas ao serem representados com sucesso.
Buscava-se, por isso, um cinema que fosse divertido e, ao mesmo tempo, garantia de bilheteira. Continuava-se com o «Pátio das Cantigas» (de Francisco Ribeiro, o 'Ribeirinho') e «A menina da Rádio» (de Artur Duarte), com a tradição de um cinema dos bairros lisboetas. Microcosmos que denuncia o próprio País. Ou seja, um país macrocéfalo, em que a capital, e um pouco o Porto, têm o monopólio da cinematografia.
Ao mesmo tempo, digo 'curiosamente', porque esta era uma época em que se vivia uma II Gerra Mundial, e foi precisamente neste tempo em que se realizaram as maiores comédias do nosso cinema! Veio, no entanto, um grande prémio da Bienal de Veneza (1942), pela primeira vez para Portugal, com o filme «Ala Arriba», de Leitão de Barros, que era no género de «Maria do Mar», agora decorrido na Póvoa do Varzim. Outros filmes se realizaram, dos quais não poderei falar detalhadamente, mas ainda queria referir «Aniki-Bobó», de Manoel de Oliveira e «Um Homem às Direitas», de Jorge Brum do Canto. Iniciar-se-iam, então, os filmes de cariz melodramático com raízes históricas, dadas por romances dos nossos escritores: «Amor de Perdição», «Inês de Castro», «Camões», «A Morgadinha dos Canaviais», «José do Telhado», «Sonho de Amor», (de Carlos Porfírio), 1948, e «Vendaval Maravilhoso», que dão a este período uma nota de apogeu cinematográfico. Este é conseguido através da filmagem de «Inês de Castro», sobre a qual nos diz Luís de Pina ser "mais sentimental do que real, mais próximo do sonho (...) essa fluência do cineasta Leitão de Barros, que (...) é acusado, como mais tarde Manoel de Oliveira, em nome do complexo do cinema puro. É um cinema plástico? Cenográfico? Melodramático? Com certeza; mas funciona, faz vibrar o sentimento, desperta a sensibilidade como mais nenhum realizador conseguiu em Portugal; é profundamente português no barroquismo, às vezes delirante da sua inspiração." Deste barroquismo também será acusado em «Camões».
Por esta altura surge em Portugal "o movimento cineclubista", que irá desempenhar o seu papel após a crise dos anos 50. Os cine-clubes foram críticos e prepararam uma nova geração, que continuará este amor pelo cinema. Amor esse que Leitão de Barros demonstrou pela cinematografia, apesar de todas as desventuras que sofreu com o «Vendaval Maravilhoso».
A propósito de «Camões», Luís de Pina diz não ter dúvidas de que Leitão de Barros concebeu a figura do poeta como uma imagem de Portugal, e é esse o sentimento mais profundo da visão histórica de «Os Lusíadas» na cena de António Vilar diante das tapeçarias de Pastrana, síntese da própria História de Portugal.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A Década de 30 e 40 (continuação)

José Régio faz crítica de cinema na «Presença». É toda uma conjuntura que promove a iniciativa histórica do cinema português. "António Ferro publica páginas dedicadas ao cinema. Almada negreiros também se interessa pela sétima arte e irá escrever sugestivos comentários sobre ele". Neste contexto surge o cinema novo, que por excelência se alia a todos estes nomes. Um documentário de Leitão de Barros, "Nazaré, Praia de Pescadores", em que este cineasta tem por assistente Lopes Ribeiro, é estreado em 1929 no S. Luís. A propósito deste filme, Luís de Pina diz que o cineasta é influenciado pela vanguarda cinematográfica europeia, e que seguiu "uma concepção de 'cinema puro', onde a luminosidade e o recorte do preto e branco de Costa Macedo (câmara) acentuavam no plano plástico", e caracterizavam as próprias gentes da Nazaré: o preto(dos fatos, as sombras, as redes) e o branco (as casas, a areia, o céu), sombra e luz.
A este caminho traçado do documentarismo, Leitão de Barros vai juntar a ficção, e surge «Lisboa, Crónica Anedótica», visionando a cidade na sua actualidade e no passado. Num tom de graça anedótica, capta mesmo a expressão dura da realidade, "claramente influenciada pela escola soviética". Mistura actores com personagens da vida real e obtém "uma autêntica obra prima do cinema português, verdadeiramente inovadora". O facto é que, por esta altura, Abril de 1930, a equipa de homens valorosos do nosso cinema era muito jovem. "Leitão de Barros tinha trinta e quatro anos, Chianca Garcia trinta e dois, Jorge Brum do Canto vinte, Manoel de Oliveira vinte e dois, e António Lopes Ribeiro vinte e dois." É sobre os seus ombros que a tarefa de erguer o cinema português pesa. Porém, como tudo que é feito por gosto não cansa, estes nossos cineastas continuam no caminho da aventura.
Na verdade, eram experimentalistas na arte cinematográfica, pois escolas de cinema não existiam, onde se aprendessem todas as técnicas e toda a estética que o caracteriza, como seja: o plano, sequência, longos movimentos da câmara, planos fixos ou breves panorâmicas, câmara estática, movimentos verticais, ou laterais, toda uma sintaxe própria inerente à construção da narrativa, dos diálogos e seus enquadramentos, que permitam fazer a ligação do texto e a fita cinematográfica. Creio que terá sido Manoel de Oliveira o único a ter experiência como actor, assim como o único a ter uma breve passagem pela escola de Rino Lupo, aos dezasseis anos. Contudo, segundo Alves da Costa, "por ali não aprendeu nada. As lições ia-as recebendo de outro lado(...) nos écrans do cinema Trindade, do Olímpia, do Passos Manuel e do salão High-Life"...
Pudovkine, Dreyer, Eisenstein, Eric Von Stroheim, Stiller, eram os realizadores que, através dos seus filmes, formavam a 'escola' deste cineasta e, possivelmente, dos seus companheiros. Essa aprendizagem resultou em «Douro, Faina Fluvial», que Luís de Pina considera um verdadeiro clássico do nosso cinema. Viria a ser visto por Luigi Pirandello e outros congressistas presentes a 21 de Setembro no Salão Central, onde se projectava a «Severa» (complementada por este).
Manoel de Oliveira teria um elogio, feito por um crítico presente, no jornal parisiense "Temps". O engenho superou a falta de escola.
E o cinema continuou o seu plano ascendente.
«Maria do Mar» é "a grande fita de ficção dos novos cineastas (...) o primeiro filme de acção, (...) fortemente influenciado pelo cinema humano que a Rússia lançou no mundo". Este iria somar-se à "Severa" e dar folgo para um verdadeiro prosseguimento. O sucesso deste último junto do público, que assistia ao primeiro filme sonoro, e "que foi uma super produção que custou mil e oitocentos contos", permitiu criar asas para voar, e a Tobis Portuguesa nasce em Junho de 1932.
Assiste-se, então, a sucessivos filmes que retratam a vida nos bairros lisboetas. «A Canção de Lisboa» reune um elenco de artistas que, penso, quase se tornará mítico para a história do cinema. António Silva, Beatriz Costa, Vasco Santana, que darão o seu melhor em representação no cinema, apesar de serem artistas de teatro. Este filme tinha argumento e realização de Continelli Telmo (arquitecto que orientava a construção do estúdio do Lumiar), mas foi dinamizado e orientado tecnicamente por Eduardo Chianca Garcia, o qual tinha estado na "linha da frente" pela concretização da Tobis.
O poeta Gomes Ferreira também deu, na montagem deste filme, o seu contributo, e, sabendo o quanto esta é importante no resultado final (como conjunto), podemos avaliar do trabalho destes empenhados homens. Manoel de Oliveira tinha aqui um papel como actor. Como resultado final, ressalta o amor pelo cinema, e, como tudo o que é feito por amor resulta, eis que foi bem recebido, na sua alegria.

(continua)

A Década de 30 e 40

Esta década mostrou que os esforços pessoais de algumas individualidades do nosso país permitiram a existência de uma cinematografia própria, caracterizadora da nossa História e da nossa vivência única.
Passado o período em que o Porto foi "a capital do cinema", com a sua empresa Invicta Film, (primeira) e a segunda já com estúdios e laboratórios, e uma "equipa técnica responsável pelo arranque da produção" vinda de Paris, e que aproveitou "os nossos temas literários, os nossos artistas, as nossas paisagens, os nossos costumes, - como «Os Fidalgos da Casa Mourisca», de Júlio Dinis, e o «Amor de Perdição», de Camilo Castelo Branco, de G. Pallu -, ou ainda a «Rosa do Adro», de Manuel Maria Rodrigues, ou «Frei Bonifácio», de Júlio Dantas, também por G. Pallu, em que é revelado o profissionalismo deste realizador, começavam as dificuldades de distribuição, Mas, mesmo assim, após várias realizações, G. Pallu produz, pela primeira vez, Eça de Queirós e o seu «Primo Basílio», "com Amélia Rey Colaço no papel de Luísa, e Robles Monteiro no papel de primo Basílio". Este filme, e ainda segundo Luís de Pina, "acabava por sofrer (...) o predomínio do literário sobre o narrativo." Mas, neste fim da década de 20, o problema que se punha era muito semelhante ao que actualmente se põe: os nossos filmes eram preteridos aos estrangeiros, ou seja, a produção nacional não é tão divulgada como a que vem de fora, considerada lucro certo. O que origina a queda de mais uma empresa e do sonho de Nunes de Matos.
Era o ano de 1931 e morria Paz dos Reis. Outro cineasta, porém, surgia em Portugal, e "estreava o seu «Douro, Faina Fluvial»: era Manoel de Oliveira. A vida é como um encadear de sonhos; uns dissolvem-se, morrem, mas logo outros se alevantam e prosseguem a caminhada.
Na Quinta das Conchas, numa superfície de trinta mil metros quadrados, mais iniciativas iam prosseguir. O Lumiar iria tornar-se símbolo da localização do cinema português. Inicialmente Cadeville Film, a Tobis Portuguesa (1932). Realizava-se por essa altura "o último filme mudo de longa metragem," (...) «Campinos», realizado e protagonizado por António Luís Lopes, que era cavaleiro tauromáquico no auge da sua carreira nos toiros. Este, antecedia o êxito que viria a ter o filme «Severa», de Leitão de Barros, protagonizado pelo mesmo cavaleiro. Mas, para que esta realização se tornasse possível, algumas modificações se deram.
Em 1929 apareciam novas distribuidoras portuguesas, entre outras a firma Mello, de que Leitão de Barros é sócio e "que estavam ligadas também à produção de filmes portugueses". Não podia esquecer que, paralelamente ao estabelecimento destas distribuidoras, abriam ao público novas salas de cinema, "construídas expressamente ou modificadas: o Condes, o Politeama, o Royal, o São Luís e o Tivoli", e outros cinemas de bairro.
Isto provava que existia o gosto pelo cinema, mas o público, durante longos anos, não tinha tido uma produção regular de cinema português; por isso, é que realço estas décadas em que, efectivamente, começa a delinear-se a necessidade de um cinema rico de bases técnicas e organizado como indústria financeira, para poder competir com os melhores filmes estrangeiros. E é isso que irá suceder neste período áureo do cinema português, que surge ligado a Leitão de Barros, António Lopes Ribeiro, Chianca Garcia e outros valores, como Jorge Brum do Canto, António Lourenço e Alves Costa.

(continua)

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

O Cinema Português

Teria sido Aurélio da Paz dos Reis que, segundo A. Videira Santos, iniciou, no Porto "A História do Cinema Português", em 12 de Novembro de 1896. Esta data marca a primeira sessão comercial, "no Príncipe Real", com películas de motivos portugueses - foram eles o jogo do pau (Santo Tirso), saída do pessoal operário da fábrica Confiança, chegada de um combóio americano a Cadouços, o Zé Pereira na romaria de Santo Tirso, a feira de São Bento, A Rua do Ouro (Lisboa) e Marinha - filmados por este fotógrafo distinto, que possuía uma máquina de "projecções luminosas", a que chamou o Kinetógrafo português.
Porém, o cinema ter-se-ia iniciado em Portugal, com a amostra das primeiras imagens, em Março de 1895, (...) com o animatógrafo, de Edwin Rousby." Paz dos Reis ter-se-ia apaixonado pelo espectáculo quando este foi projectado no Porto. A propósito, diz o Dr. Félix Ribeiro: "...Não perdeu uma única sessão depois de ter assistido à estreia (...); a partir desse momento, a sua preocupação dominante (...) passou a ser o estar na posse e poder manejar um tal aparelho."
Manuel Maria da Costa Veiga terá sido o pioneiro do cinema em Lisboa; ele próprio "ajudou Edwin Rousby no espectáculo do Real Coliseu"; ..."no verão de 1899 (...) exibe o seu primeiro trabalho: Aspectos da Praia de Cascais", onde aparecia filmado o próprio rei D. Carlos e sua família, que ali se encontrava em veraneio. Teria sido um repórter das actualidades nacionais, com a sua câmara Urban, durante uma década.
João Freire Correia (também fotógrafo, como Aurélio dos Reis) foi um outro pioneiro de Lisboa, que obteve sucesso com o seu filme «Os Crimes de Diogo Alves», realizado de parceria com Manuel Cardoso, pois ambos tinham fundado a "Portugália Filme" (1909). Filmaram juntos "dezenas de documentários e reportagens". Planos, projectos, sonhos e mais sonhos ficaram sem concretização, mas o cinema português estava vivo e iria continuar. Júlio Costa é também um percursor e funda "em 1910 a Empresa Cinematográfica Ideal. Ele próprio era proprietário do mais antigo cinema de Lisboa, o Salão Ideal". Com este homem empreendedor, iniciou a sua carreira o actor mais querido, António Silva, com um pequeno papel no romance, transposto para a tela, de "D. Pedro e D. Inês de Castro". Este filme obteve grande êxito.
Antecedia este filme, a "Inês de Castro", de Leitão de Barros (1945); mas, efectivamente, será Leitão de Barros que, após sete anos do incêndio que vitimou os estúdios de Júlio Costa (1911), irá fundar a Lusitânia Filme, juntamente com Celestino Soares e Luís Reis Santos. Vivia-se já em plena primeira guerra mundial, e, em Portugal, o governo de Sidónio Pais. Esta proclamação do Presidente da República viria a ser filmada por Leitão de Barros em 5 de Maio de 1918. O Chefe de Estado é aclamado quando, na janela do edifício da Câmara Municipal, assim como é filmada também a sua revista às tropas da guarnição de Lisboa, na Praça dos Restauradores. Mas este não foi o seu primeiro filme, pois, mesmo antes de concluído o estúdio, Leitão de Barros filma no exterior duas curtas-metragens: «Malmequer» e «Mal de Espanha», que, segundo Luís de Pina, "logo a maledicência lisboeta aproveitou para criticar; (...) a produção da Lusitânia começa mal..." Sátira de costumes, este último filme é realizado na praia do Lagoal, em Caxias, para a qual ia a burguesia endinheirada da capital. A paixão "proíbida" pela artista espanhola, os ciúmes da esposa, ilustram esta comédia. «Malmequer», também de 1918, já antecipa "o seu gosto pelas evocações históricas, românticas e espectaculares, passado no palaciano e frívolo século XVIII lisboeta".
Aproveitando os jardins do Palácio de Queluz (como viria a fazer em «A Severa» e «Bocage»), Leitão de Barros fez um filme leve e elegante como o espírito da época, quase sem enredo, uma verdadeira sucessão de quadros, que daria razão a um dito seu, anos mais tarde: "faço filmes para pendurar..." Talvez a sua vocação para apintura se complementasse com o cinema. Neste filme surgem Robles Monteiro e Alda Aguiar, actores de teatro, que eram transpostos para o celulóide. É ainda Luís de Pina que conta: "as intrigas perversas e a frágil organização do nosso show business acabaram também com o sonho da Lusitânia Filme (...) o mais ambicioso projecto (...) 'O Homem dos Olhos Tortos' (...) não chegou a concretizar-se totalmente por insuperáveis dificuldades financeiras."
Efectivamente, este é um dilema do passado como do presente. verificámos ao longo de toda a nossa vida e história, quer seja do teatro, quer seja do cinema, ou em qualquer outro campo artístico (a música, a dança, a pintura, etc.), que, em Portugal, dinheiro para os empreendimentos culturais não abunda. Mecenas, talvez precisemos de mecenas. Mas, para isso, era necessário que os homens de dinheiro amassem as artes e, para as amar, é preciso conhecê-las, sentí-las, vibrar com paixão para acreditar e aceitar em investir. Para quando? Mas não é a esperança a última a desfalecer? Por isso, houve muitos mais pioneiros que acreditaram e tentaram o cinema, mesmo que soubessem que iam ficar pelo caminho. Porém, ousar era preciso. Norton de Matos criou, por esta altura, os Serviços Cinematográficos do Exército, aquando titular da pasta do Ministério da Guerra.
"Outros viriam, dez anos depois, renovar o cinema português." E é no encalço destes homens que eu continuo através da história do cinema e passo para a década de 30 e 40.

(continua)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Do Sonho à Realidade

Teria sido em meados do séc. XVII que "o padre jesuíta Athanasius Kircher" (de origem alemã) inventou a lanterna mágica (ou óptica). Em 1643, "na sua obra ARS Magna Lucis et Umbrae," dava a conhecer "os princípios da projecção de imagens". Se já Leonardo da Vinci "dois séculos antes" tinha imaginado uma lanterna de lente convexa, que foi um passo importante na história da projecção de imagens, Ernest Coustet (in "Le Cinéma") afirma que o princípio da lanterna mágica havia sido descrito anteriormente por Roger Bacon.
O certo é que o sonho de todos estes homens foi prosseguido por outros, que o iam ampliando e aperfeiçoando, até que surgem os modelos familiares de lanternas mágicas de mesa, a que se deu o nome de Lampascope (construídas por Johannes Zahn). Estas são muito divulgadas no séc. XIX, quer como divertimento doméstico, quer como espectáculo. Mas às suas imagens não se aliava o movimento, e, por isso, havia a necessidade de se prosseguir, porque neste as imagens não são estáticas: sucedem-se umas às outras. É este movimento que os homens perseguem.
Então, Plateau, em 1832, inventou o Fenakistiscópio, e Simon Stampfer o Stroboscópio, ao qual Franz Von Uchatius (oficial austríaco) vai aliar as possibilidades "de projecção de imagens da lanterna mágica, numa primeira tentativa de reproduzir um movimento de uma figura projectada sobre um écran". Daqui, sem dúvida partiu um passo importante para a história do cinematógrafo.
E o sonho continua. Agora com Emile Reynaud, que, com o Praxinoscópio de projecção (1888), trazia para a rivalta os "desenhos animados". É "a partir do Zootropo que Reynaud contrói o Praxinoscópio". Este fabuloso artista "desenhava as fitas, uma a uma (...) historietas (...) com a duração de oito a quinze minutos". Ele próprio, para além de inventar e desenhar, manejava o seu projector de "pantonimas luminosas". A estas era preciso aliar a 'realidade'. Essa iria tornar-se possível através do "desenvolvimento da fotografia, descoberta por Nicéphore Niepce".
Entretanto, "desde a descoberta da câmara obscura, por Baptista della Porta, em 1553," e aliando-se os inventos no "campo da óptica, da mecânica e da fotografia", tinham-se percorrido mais de três séculos e meio de encadeados sonhos, que fizeram história e se iam tornando realidade, até à invenção do cinematógrafo de Lumière. Para que este fosse possível, tinham-se aliado trabalhos de diversos cientistas, como sejam: Dr. John Ayron (o Thaumatrope), Faraday, William-George Horner(o Daedalum, comerciado com o nome de Zootropo), Charles Wheatstone - "que dará um contributo para a fotografia em terceira dimensão, graças ao Estereoscópio"-, Brewster, Duboso,- que pretende obter "fotografias sucessivas de um movimento com o Bioscópio" - . "Sensação da vida" eis o que todos pretendiam obter com os seus inventos. "Colleman Sellers, com o seu Kinematoscópio (1861) consegue obter melhores resultados" que os anteriores sonhos concretizados.
Porém, será E. Muybridge, em 1880, que consegue com o seu Zoogyroscope, reconstituir o movimento. Faz sucesso, não só na América, mas também na Europa. Marey, fisiologista, inventa a espingarda fotográfica. Mas, não satisfeito com o projecto, leva por diante o seu sonho e obtém "outro tipo de aparelho fotográfico, o crono fotógrafo, para proceder à análise do movimento, (...) para os seus estudos de locomoção".
Outros homens estudaram proguessivamente estes fenómenos; por isso, poderão considerar-se como co-inventores do cinematógrafo: Birt Acres (construtor do Kineoptikon), G. Demeny (inventor do Fonoscópio), Dickson e Edison (inventores do Kinetoscópio, 1891). Então, será Eastman a lançar a invenção da película fotográfica, que permite ao Kinetoscópio funcionar "como uma slot-machine (introduzindo-lhe uma moeda)". Como síntese de todas estas pesquisas veio a resultar o "cinematógrafo dos irmãos Lumière", 'que encontraram a forma perfeita de filmar e projectar imagens em movimento (o seu princípio é o que ainda se mantém nas máquinas modernas).(...) O cinema de imagem real (...) iria tornar-se, de um dia para o outro, uma grande indústria'.
Entretanto, como era vivida essa realidade em Portugal? Acaso essas imagens "reais" não faziam sonhar os nossos homens com alma de artistas? Claro que sim. Desses sonhos nascerá o cinema português.

(continua)

domingo, 15 de janeiro de 2012

O Cinema Português - Problemático? (Introdução)

Mas o facto é que ao cinema estão ligados, desde o seu início, homens que professavam ideias republicanas. Uns, mais tarde, colaborando com o Estado Novo; outros, vivendo a sua intervenção cívica, através desse amor pelo cinema. Foi-me dado verificar que foi sempre difícil a questão da cinematografia portuguesa, e aquilo que Chianca Garcia escrevia em 1946 a Augusto Fraga, sobre "se há, ou não há, cinema português..." continua na ordem do dia. A prova disso é que encontrei em título de manchete de "O Jornal Ilustrado" o seguinte: 'Cinema: um sonho português.' A polémica mantém-se e faz história. Isso verificou-se quando da realização dos "Estados Gerais do Cinema Português", a 7 de Dezembro de 1990, na Fundação Gulbenkian. O produtor Tino Navarro interrogava sobre que cinema queremos. E logo, no dia seguinte, no "Jornal de Sábado", perante todos os telespectadores, afirmava: "O cinema português não existe, não tem imagem."
A este episódio respondia, de imediato, Manoel de Oliveira, na mensagem que dele foi lida por Maria de Medeiros no mesmo encontro do Auditório 2: "Se o cinema português não existe, o que estão os senhores aqui a fazer?" Naturalmente que, apesar de ventos e tempestades, de polémicas a que é possível traçar uma cronologia histórica, o cinema português existe, quase há cem anos, e é preocupação fundamental daqueles que pugnam pelos ideais de liberdade de expressão.
Liberdade de expressão essa que permita levar o cinema português até às escolas e às universidades. De que forma? Através do ensino da leitura de um filme, da estética que lhe é inerente, e da própria simbologia que lhe está subjacente.
O que se verifica é que a maior parte dos filmes obedecem a guiões decalcados de obras literárias, ou de acontecimentos históricos que foram adaptados ao cinema. Perde, por vezes, a obra literária, e perde o filme porque essa adaptação é feita por uma pessoa que entende de literatura, - e não esqueçamos que houve sempre literatos a trabalhar no cinema. Os próprios formalistas russos, que trabalharam também para o cinema, como por exemplo, Tynianov, que escrevia argumentos -, mas não está dentro da problemática técnica e de montagem de um filme. Ou então, estão no domínio dos segredos da cinematografia, mas não têm conhecimentos literários para escrever o guião ou argumento, fazendo-o por intuição.
Para suprir essa dificuldade, o ideal seria levar o cinema às escolas.Isto não é novidade, pois, como me foi dado constatar, "em 1910 (...) um decreto introduzia o filme na escola como instrumento auxiliar de ensino." Mas acaso isso se terá verificado? Penso que não. O que terá, de certo modo, contribuído para o "apagamento" do cinema, pois não está suficientemente enraizado na nossa cultura para que se não possa prescindir da cinematografia portuguesa.
É visível a 'crise' neste sector, pois continuamos a ter uma percentagem muito superior de filmes americanos e de outras proveniências, em comparação com a divulgação do nosso cinema. A questão dos circuitos comerciais é, também, segundo parece, calamitosa, pois a Lusomundo quase que detém o monopólio da distribuição, o que leva a uma programação seleccionada para a maioria das salas de cinema que detém. Já "Georges Sadoul, na sua «História Geral do Cinema», aponta a distribuição como condicionante da produção. Isto é: só a eficiência da primeira pode garantir a continuidade da segunda." São, por isso, enormes os riscos que correm aqueles homens que ousam ousar, sem a garantia de uma boa distribuição, e vão conseguindo, mesmo assim, ao longo do tempo, deixar rasto na história do cinema português. É na peugada destes homens, realizadores, artistas, fotógrafos, e das suas dificuldades, que eu vou realizar este meu trabalho sobre o cinema português, antes e após a República, e será minha interrogação permanente: de que forma contribuiu o cinema português para divulgar a nossa História? A problemática política e social do País reflecte-se também no cinema?
Ontem, como hoje, parecem ser muito idênticos os problemas que se lhe colocam. Mas, antes que em Portugal se vivessem os anceios de uma cinematografia própria, muitos outros homens ousaram sonhar e, de um encadeado de sonhos, tornaram possível a realidade histórica que hoje se vive. Por isso falo neles, ao iniciar. Como se passou do sonho à realidade.

O Cinema Português - Problemático? (Introdução)

Introdução

Porquê fazer um trabalho para Problemática da História de Portugal, sobre o cinema português? Na verdade, foi-se-me deparando a ideia à medida que, cada dia na Cinamateca, ia descobrindo um mundo novo para mim. Aquela casa, as suas belas paredes e escadarias, o seu Museu, a sua biblioteca, estão repletas de História apaixonada por essa arte tão jovem, que é o cinema.
Mas, aos poucos, fui verificando que, ligados a essa paixão, estavam, de uma maneira geral, sentimentos e ideais de liberdade e uma grande perseverança, que levou todos esses homens a erguer do sonho o cinema português.
Como cheguei eu, este ano lectivo, até esse sonho? Através da descoberta do poeta Castro Alves. Aquele que escreveu o «Navio Negreiro» e as «Vozes de África», e que, segundo Manuel Bandeira, deu um enorme contributo para "a campanha contra a escravidão." Com toda a sua veia poética, ele escrevia "cantos (...) para serem declamados na praça pública em teatros ou grandes salas - verdadeiros discursos de poeta-tribuno."
Ora, na ânsia de querer saber mais sobre o poeta, venho a ter conhecimento de um filme, inspirado na sua vida, e no seu romance com Eugénia da Câmara, realizado por Leitão de Barros. Vou completar a investigação para a Cinemateca sobre aquilo que me levaria até mais próximo destas figuras.
Afinal, ele havia amado uma mulher portuguesa, que o próprio Camilo Castelo Branco considerava ser "educada e culta,(...)e que punha em todas as suas palavras o cunho da inteligência." Se assim era, a história de um poeta brasileiro ligava-se à história de uma artista portuguesa, que, ainda por palavras de Camilo, também era "poetisa de bonitos versos e tradutora."
Queria conhecer esse filme. Sofri, escusado será dizê-lo, um decepção. As críticas ao filme eram desfavoráveis, e este só tinha estado três semanas em exibição no cinema Tivoli. Pensei, então, como era difícil realizar um filme! Dois anos e meio de trabalho de actores, técnicos e orientadores, acabaram por estar no écran tão puco tempo? Qual teria sido a causa do seu "fracasso"? Uma co-produção implica dificuldades de linguagem, de culturas diferentes, de adaptação de uns artistas aos outros, da sua própria escolha? Penso que sim. Quando vi que a personagem de Eugénia era representada por Amália Rodrigues, pensei que não se coadunava, nem em parecenças físicas, - porque Eugénia não era uma 'bela' mulher, como surge Amália no filme -, nem psicológicas. Assim como Paulo Maurício não se parecia com o poeta. Para que essa 'essência' fosse transmitida, não teria que ser dada uma aparência semelhante? Segundo algumas críticas, Amália canta 'demoradamente' durante o filme. Sequências menos felizes, que levam o próprio realizador a confessar "que não era isto que eu queria mostrar a vocês."
O certo é que este drama despertou-me para um conhecimento mais aprofundado do cinema português. Outro pormenor que me atraíu, já mais tarde, quando iniciei o estudo e a leitura da história do cinema português, foi, de facto, verificar a mudança de Leitão de Barros para um tema tão delicado como a escravatura. Pois, segundo me foi dado analisar, apesar de os seus filmes serem documentais e numa perspectiva histórica portuguesa, em nenhum deles sobressai tanto o cariz político como neste. Ou seja, um filme que, apesar de não ter sido uma obra conseguida, é, em todo o caso, uma amostra dessa vivência que foi a escravatura no Brasil, e que também se verificou em Portugal e na Europa. Seria que este realizador também estava do lado desta causa? Ou seria só pelo aspecto histórico da vida dos três poetas, - Camões, Bocage, Castro Alves -, que este filme vinha completar? Para todas estas interrogações ainda não encontrei resposta.

(continua)

Continuar em frente...

Fazer do meu blogue um caderno dos muitos trabalhos que realizei enquanto andava na Faculdade, é voltar a lembrar esses tempos maravilhosos em que eu acreditava que valia a pena trabalhar, porque o nosso trabalho seria reconhecido. Só a inocência com que eu entrei para lá é que me podia dar essa ideia. Nenhum destes trabalhos que tenho escrito foram comentados, nem sequer emendados. Na Faculdade não se aprende a escrever, por isso, todos os trabalhos são originais e saíram da minha forja e do meu gosto pelo conhecimento. Aqueles que, no seu direito, lhe quiserem apontar defeitos e críticas podem fazê-lo, mas sempre tendo presente que eu navegava num mar desconhecido, sem bússola ou carta de marear. Era sempre à descoberta. Todavia, o meu gosto pela investigação mantém-se e continua a ser o que eu mais gosto de fazer. Por isso vou continuar em frente e recordar o que há vinte e dois anos foi feito. Hoje vou falar-vos do Cinema Português.
Até já!

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

"A Nova História" (Bibliografia)

Bibliografia

Bloch, Marc, «Introdução à História», P. Europa-América, 3º ed., Lx.,1987.

Carvalho, Joaquim Barradas de, «Da História Crónica à História Ciência», Livros Horizonte, 6ª ed., 1985.

Le Goff, Jacques, e outros, «A Nova História»,ed.70,Lx., 1989.

Le Febvre, George, «O Nascimento da Moderna História», ed. Sá da Costa, Lx.

Le Goff, Jacques, Roger Chartier, Jaques Revel, e outros, «A Nova História»
Livraria Almedina, Coimbra, 1990

Glotz, Gustave, «História Económica da Grécia», desde o período Homérico até à conquista Romana, Col. A Marcha da Humanidade, Vol. I, Tradução, notas e prefácio de Vitorino Magalhães Godinho, Ed. Cosmos, Lx.

Mandrou, Robert, «Introdution à la France Moderne, 1500-1640, Albin Michel

Neves, Almiro Pedro, e outros, «Novos Temas da História», Vol. 1, 12º ano, Porto Editora.

Serrão, Joel, in «Dicionário da História de Portugal», art. A. Herculano de Carvalho.

Vários autores, «Introdução à História», ed. Sebenta, I - Temas de História

Vilar, Pierre, «Iniciação ao Vocabulário da Análise Histórica», ed. Sá da Costa.

Jornais: In: Expresso, de 7/12/1985, e de 26/01/91. In: JL (Jornal de Letras) de 12 a 25/05/81; de 25 a 31/12/ 84; de 3 a 9/12/85. In: DN (Diário de Notícias), 24/06/90; 2/09/90; 20/01/91. In: Público, 6/03/90; 11/03/90; 4/01/91; 27/01/91; 29/01/91.

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

"A Nova História" (Apêndice)

Eis o nosso, presentemente, Janeiro de 1991: "Tragédia de Chernobyl continua a matar!" Uma criança de 11 anos faleceu, vítima desta catástrofe nuclear. A criança que "foi quase tudo no ocidente (...) foi destronada (...) agora há uma certa distanciação em relação a ela". Eis que me interrogo. Que futuro? Não são as crianças tudo? O futuro? São estas próprias "incertezas (...) que atravessam o campo da produção historiográfica, porque o próprio homem está a deixar de lado valores éticos necessários à própria vivência e sobrevivência em sociedade." Índios guaranis suicidam-se. Possivelmente por falta de identificação própria, de um ideal. Tentam que seja recuperada a sua "religiosidade tradicional". Porém, a selva amazónica, em nome de interesses económicos e do progresso, continua a ser desvastada. E temos, então, "o ano mais quente desde há 140 anos"
Mas este quotidiano é revelador na utilização de máscaras, quer nas pessoas, quer nos animais. Hoje por receio de ataques bioquímicos, amanhã por falta de oxigénio respirável, porque os homens estão a "destruir" o planeta Terra que habitamos. Futuro incerto em Moçambique e em Angola. Pobreza, violência, "a desordem internacional num mundo cada vez mais interdependente."
"Mudam-se os tempos, mudam-se as ideias", e fala-se em que "nos finais da década dos anos 80 se fecharam 160 anos de História." Assim será? Contudo, há ainda quem julgue que (apesar das "ideologias que enformaram as últimas décadas" estarem esgotadas), "não são as ideologias deste tipo, mas os dinamismos criativos de pensamento, os universos éticos" (D. José Policarpo) que podem vir a influenciar a História. Esta é, de certa forma, a ideia fundamental que partilho, e que está presente em todo o meu trabalho. Do tempo sem tempo, em que os homens adoravam os astros, ao tempo em que (segundo Philippe Ariès) "o homem de hoje já não tem muito bem consciência do tempo", que tempo nos separa?
E voltamos à "escrita de outros astros", onde Eduardo Prado Coelho fala sobre "uma imagem do tempo que findou." Efectivamente, quando vivemos uma guerra que custa "mil milhões de dólares por dia" aos E.U.A., para a qual contribuem a Alemanha, a Arábia Saudita, o governo do Koweit e o Japão, "que já doou quatro mil milhões de dólares" e que considera uma contribuição de mais "dois mil milhões", verificamos que a História nova enfrenta uma "primeira cruzada da era tecnológica", que terá que estudar profundamente. Quando se morre no mundo de fome, eis que, assustadoramente, nos entram em casa números astronómicos de gastos com a guerra! O Vaticano não pode deixar de referir a presença "de Israel nos territórios ocupados, a anexação de Jerusalém".
E a esta, eu acrescento a de Timor, e a tomada do poder em Angola pela força e não pelo cumprimento dos acordos de Alvor; acaso encontrarei justificação para esta guerra? Terei que deixar a questão em aberto para que um novo historiador, quem sabe, Jacques Revel, "o inventor de um novo estilo", me responda.

Lisboa, Janeiro de 1991

"A Nova História" (Apêndice)

Para tudo isto ser levado a bom termo, reuniram-se equipas de vários historiadores especializados em áreas que dão o contributo do seu saber. Jorge Alarcão escreveu sobre a romanização, e refere nesta entrevista que "é muito mais aquilo que ignoramos deles (romanos) do que aquilo que sabemos". Era necessário conseguir que as universidades tivessem uma maior verba disponível para os arqueólogos prosseguirem as suas escavações. Senão, permanecerão as "incógnitas." Não só as da década, de que João Carlos Espada nos fala, mas também aquelas que se referem a "quase um milénio de História."
E este interesse revela-o também Philippe Ariès que, na sua entrevista, fala do que verdadeiramente lhe interessa aprender através das atitudes dos homens perante a morte, a família, a criança; "é um conjunto de fenómenos (...) que se situam numa zona relativamente extensa (onde se passam muitas coisas), entre o biológico e o cultural, entre a natureza e a cultura." Eram fenómenos dos quais os historiadores não se ocupavam porque "pertenciam às coisas imutáveis." Hoje, o interesse dos historiadores abrange, se possível, o que se passou no passado mais remoto e o que se vive no quotidiano.

(continua)

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

"A Nova História" (Apêndice)

Na capa do trabalho: Lagoa Henriques que se me afigurou como possível retrato do historiador, aquele que "espreita" (qual útero materno), o presente, em busca de contribuir para um melhor futuro. Ele próprio, como escultor, tem contribuído para o nosso enriquecimento histórico. Diz-nos, nesta entrevista a Fernando Dacosta: "Procuro oferecer à escultura uma escala humana, as minhas peças têm características urbanas, tentam recuperar a escola grega...um monumento não é só uma estátua, é também um espaço de convívio."(4) Em Bagdad, o seu mais belo museu, foi destruído.
Era este espaço de convívio que desejaria fosse possível dar ao mundo inteiro, neste momento histórico tão ameaçador que vivemos. Lagoa Henriques diz ainda que "a nossa cultura é uma procura da alegria" e que acredita ter distribuído "algumas mãos cheias de alegria."
Acaso não contribuirá para a nova História este fazedor de esculturas, este mestre, poeta, pintor, quando nos diz que "a arte máxima é a arte de viver", porque "a vida é uma passagem muito breve, apenas nos dá a possibilidade de antevermos um universo fantástico?" Este universo está patente no reverso da capa: Raymond Aaron tornou-se, para além de historiador um espectador que viveu os acontecimentos da segunda grande guerra, e que se transformaram em crónicas coligidas em livro.
E eis que me surge novamente a referência a Tucídides, por Jean-Claude Casanova: "Ao iniciar o relato da guerra entre Esparta e Atenas, Tucídides justifica o seu papel de observador escrupuloso, cujo testemunho pode esclarecer os homens, porque, passado o tempo dos contemporâneos, apenas se forjarão lendas." Raymond Aaron defendia a tese da dificuldade de uma História do presente, "não por falta de objectividade, mas por ignorância das consequências que dão o seu significado aos acontecimentos." Eis que este seu livro "resolve esta contradição", Aaron testemunha e escreve, e verifica-se que "o sentido dos acontecimentos passados se constrói à medida que a História avança." Este avanço é flagrante, quando passo de imediato a colagens do jornal Expresso sobre a guerra no Golfo - da segunda para (possivelmente) a terceira guerra mundial, da qual nós estamos a ser espectadores.
O que verificamos? É que o comprometimento com esta guerra é total. Grandes manchetes em praticamente todos os jornais: todos armaram Saddam. Portugal vendeu 300 toneladas de urânio ao Iraque! Talvez! Acaso não haveria conhecimento da tragédia de Halabja? A 16 de Março de 1988(...) "cinco mil pessoas morriam em poucos minutos, vítimas das armas químicas iraquianas."! Acaso não seria de prever? A quem pedir responsabilidades por semelhante massacre? A comunidade internacional continuou a reconhecer o Iraque e, possivelmente, a vender-lhe armas! Esta guerra actual será, então, por uma questão de direitos humanos e direito internacional? Ou será caso que vigorarão predominantemente os interesses económicos do petróleo? Penso que todas estas interrogações levarão a profundos estudos por parte dos historiadores.
O contributo para tornar possível essas investigações partiu em parte de Fernand Braudel, que "decisivamente rigorizou os conceitos-chave do historiador," sobretudo o tempo, e que fundou cientificamente a História das civilizações, em especial, ao nível económico-social. Eis porque aqui junto as folhas dos jornais, que melhor me ajudaram a conhecê-lo.
Também o nosso historiador Vitorino Magalhães Godinho fez parte desse grupo da "Escola dos Annales" e ajudou-me a reflectir e a perspectivar um "nova História, que considera fundamental para definir o presente e, talvez, o futuro". Nesta sua entrevista diz que: "Portugal esteve, desde muito cedo, tão ligado a todo o mundo que a História dos portugueses é excelente miradouro sobre a História Universal." No entanto, alerta já para os mais diversos problemas: "o do cidadão lhe faltar acima de tudo um ideal"; para o excesso da técnica e de que "os problemas dos homens não se resolvem tecnicamente, (...) o excesso de objectos e excesso de informação". Para o perigo da informação controlada à escala mundial, o estarmos a viver "na sociedade do espectáculo." Por tudo isto, Vitorino Magalhães Godinho vê este fim de século com certa apreensão.
A esta entrevista com o historiador dos Annales, segue-se uma com o Professor Jorge Alarcão que deu o seu contributo para também em Portugal se empreender "uma História diferente com nova perspectiva". De facto, tudo o que li e estudei para escrever este breve ensaio, me marcava encontro com historiadores franceses. Será que só em França se faz uma nova História? Encontrei a resposta. Não. Em Portugal um grupo de historiadores meteu ombros a uma nova História de Portugal, sob a direcção de Joel Serrão e de A.H. Oliveira Marques. Esta nova História dá uma atenção muito grande aos problemas económicos, sociais e culturais, deixando de lado a história política, as guerras, batalhas, casamentos, dinastias.
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Nota:
(4) - In Público Magazine, pp.59/60, de 11/3/90.

(continua)

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

"A Nova História" (Apêndice)

Sou Homem e nada do que é humano me é alheio.
Terêncio

APÊNDICE

Marc Bloch morreu em 1944, fuzilado por alemães. Este historiador escrevia pouco tempo antes: "Sempre que as nossas sociedades estritas, em perpétua crise de consciência, se põem a duvidar de si mesmas, verificamos que se perguntam sobre se fizeram bem em interrogar o seu passado ou se o interrogaram bem." (1) Este "exame de consciência" leva-me precisamente a uma "inquietação" parecida com a que Marc Bloch descreve no seu livro, porque eu própria me interrogo: Quais as causas do desastre? Acaso a nova História terá sido bem interrogada? Eis porque completo o meu trabalho com fotocópias do passado recente, e do presente, patentes da minha atenta e sofrida vivência histórica.
Hoje que, pela primeira vez na História da humanidade, nos é dado viver em directo uma guerra, através da televisão; hoje que temos computadores, que permitem ao mesmo tempo facilitar a vida aos homens, aos historiadores, nas suas pesquisas de dados, mas que também programam os alvos dos bombardeamentos e a guerra das estrelas, eis que se continuam a sacrificar vidas humanas! Acaso morreu este historiador, e tantos milhões de pessoas, nas primeira e segunda guerras mundiais, e em tantas outras, em vão? Toda a ciência, toda a tecnologia terá que ser posta em questão. Dizer não a semelhantes catástrofes! Este folhear de páginas dos jornais diários é origem de uma angústia existêncial que nos faz questionar todas as teorias do conhecimento e se acaso não estaremos, efectivamente, a caminhar para um verdadeiro corte epistomológico, em que se passará de um século de progresso para um obscurantismo não condizente com seres dotados de razão.
Já "Tucídides relaciona as migrações e as revoluções dos tempos passados com as condições da agricultura, do comércio e da navegação, e com os conflitos das classes sociais."(2) Com que devemos nós, hoje, relacionar os acontecimentos que estamos a viver? Foi o que tentei, numa perspectiva da nova História, fazer através dos jornais e das notícias da televisão e da rádio. Quase que podemos dizer: "Estive lá".
Pierre Nora também nos diz, acerca do "acontecimento e do historiador do presente: "Não há acontecimento sem os media. Pense no desembarque na lua: (...) viver este acontecimento em directo é mudar totalmente a sua participação na História." muda a "própria percepção da História." E ainda o mesmo historiador diz: "É o jornalista o primeiro a joeirar (...) são os jornalistas os primeiros a transformar-se em historiadores do presente." (3) Aqui fica. Trabalho de jornalistas, fotógrafos; recolha minha.
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Notas:
(1)- In «Introdução à História», pp.12.
(2)- In «História Económica da Grécia», introdução por V. M. Godinho, pp.17.
(3)- In «Nova História», ed. 70,pp. 46,53.

(continua)