Em chegando à outra margem caminharam durante cinco dias e percorreram vinte léguas. Chegaram ao rio do meio, ao pôr do sol, e aí dormiram essa noite. Como o rio fosse de água salgada, todos sofriam muita sede à qual se juntava a fome, e viviam com muitas dificuldades. No dia seguinte apareceram alguns negros, que se propuseram a ajudá-los a atravessar o rio nas suas quatro embarcações, em troca de alguns pregos.
Por essa altura, Manuel de Sousa já se queixava muito da cabeça, e tinha, por vezes, atitudes que faziam perigar a segurança das pessoas. Certa vez, puxou da espada para os negros que com eles faziam a travessia, e estes deitaram-se à água com medo dele. As preocupações toldaram-lhe o espírito, porque até ao deflagrar desta desgraça o seu temperamento era calmo e discreto.
Do outro lado do rio encontraram muitos negros, que lhes perguntaram de onde vinham. Contaram, então, o que lhes havia acontecido e que se encaminhavam para um grande rio que ficava mais adiante. Pediram-lhes que, se tivessem mantimentos, lhos vendessem. Nessa altura seriam umas cento e vinte pessoas. "Por uma cafra que era de Sofala" lhes disseram que o seu rei os receberia com gosto.
Todos caminhavam agora. Até D. Leonor, que era fidalga, dava o exemplo alentando aqueles que fraquejavam e ajudando a levar ao colo alguma criança. Como tinham muita fome, não tinham outra alternativa se não aceitar ir em sua companhia. Andaram uma légua e agasalharam-se nas árvores. Então receberam alguns mantimentos, em troca de pregos. Manuel de Sousa pediu uma casa ao rei para a sua família. Este concordou, mas, para os restantes, queria que se dispersassem e que logo lhes mandaria de comer e lhes daria casa, para aguardarem a chegada de algum navio. O capitão concordou em que se separassem por várias aldeias. Logo a seguir o rei cafre disse-lhe que entregassem as armas para guardar em sua casa. Quando partissem, logo lhas entregaria. Assim desarmados, começaram a ser roubados, despidos e espancados e postos fora das aldeias.
O capitão e a família, André Vaz e umas vinte pessoas, ficaram com o rei, porque traziam jóias e dinheiro, num total de mais de cem mil cruzados. Também foram todos roubados, logo que separados da sua gente, apesar de não os terem despido. Mandaram-nos embora sem lhes fazerem mal. Manuel de Sousa viu que a sua mulher tinha razão em não querer que ele entregasse as armas. As outras noventa pessoas, maltratadas, tristes, sem armas e sem roupa ou dinheiro, começaram a caminhar, para se juntarem uns aos outros, mas, como já não tinham chefe que os guiasse, acabaram por se perder uns dos outros cada um fazendo o que achava melhor para melhor preservar a vida junto dos cafres ou dos mouros.
Quanto a Manuel de Sousa, mulher e filhos, apesar de já estar um pouco doente da cabeça, sentiu muito esta afronta, pois custava-lhe ver a sua mulher assim tratada. Porém, começaram a caminhar pelo mato, sem destino certo. Com eles estavam o piloto André Vaz e o contra mestre, duas portuguesas e escravas. D. Leonor ia já muito fraca, e pior ficou quando apareceram novamente os cafres e os despiram e lhes bateram.
Vendo-se assim, perante os filhos de tenra idade, D. Leonor reagiu e defendia-se, lutando corajosamente, preferindo que a matassem a pô-la nua diante da sua gente. Foi o marido que invocou a sua vinda ao mundo nus; por isso, que não resistisse ou, então, eles a matariam. D. Leonor ao ver-se nua, cobriu-se logo com os seus longos cabelos e lançou-se ao chão, onde fez uma cova na areia e se meteu até à cintura; e mais não quis sair dali. Manuel de Sousa ainda pediu a uma ama que lhe desse uma velha mantilha, mas ela negou-se a aceitar.
Era tal a situação de vergonha, para o capitão e esposa, que as pessoas que os acompanhavam se afastaram um pouco deles. Então, D. Leonor disse ao piloto André Vaz que se fossem embora, pois ela, marido e filhos já não podiam sair mais dali; que fizessem por salvar-se e que fossem à Índia, ou para Portugal e contassem como os deixaram. Com eles ficaram Duarte Fernandes, contra mestre do galeão, e algumas escravas, das quais se salvaram três, que foram para Goa, e contaram como viram morrer D. Leonor.
Manuel de Sousa apesar de já não estar bem da saúde mental, apercebia-se da fome que os filhos e a mulher passavam. Mesmo estando coxo de uma perna, por causa de uma ferida que os cafres lhe fizeram, foi ao mato buscar frutas para lhes dar de comer. Mas quando chegou, encontrou um filho morto e D. Leonor muito fraca de fome e de tanto chorar. Ele próprio enterrou o filho por suas mãos.
No dia seguinte a situação mantinha-se: D. Leonor não mais saíra da sua cova. O capitão foi novamente buscar fruta ao mato e, quando regressou, encontrou a sua mulher e o outro filho mortos. Cinco escravas debruçadas sobre ela choravam em grandes gritos. Ele afastou-as e ficou durante meia hora a olhar para a esposa. Não chorava, mas profunda era a sua dor. Quase não olhava para o filho; só para a mulher. Então, com a ajuda das escravas, fez uma cova e enterrou-os aos dois. Sem mais nada dizer, foi-se embora para o mato, como quando ia à fruta, e nunca mais foi visto. Talvez tenha sido comido pelos tigres, serpentes ou leões. Assim acabaram a vida, após seis meses de caminhada "por terras de cafres com tantos trabalhos".
Os homens que escaparam de toda esta tragédia foram oito portugueses, quatorze escravos e três escravas, das que estavam com D. Leonor quando faleceu. Entre eles, Pantaleão de Sá, Tristão de Sousa, o piloto Antré Vaz, Baltazar de Sequeira, Manuel de Castro e Álvaro Fernandes.
Estavam já sem esperança quando chegou àquele rio um navio, que vinha buscar marfim. Nele viajava um parente de Diogo Mesquita, e, sabendo que havia portugueses perdidos, mandou-os procurar e resgatou-os a troco de contas. Dois vinténs de contas por cada um. Se Manuel de Sousa Sepúlveda fosse vivo, também tinha sido resgatado. Chegaram a Moçambique a 25 de Maio de 1553.
Pantaleão de Sá, andando vagabundo, nu e cheio de fome pelas terras dos cafres e, como lhe negassem ajuda, sabendo que o rei estava doente, fez-se passar por médico. Tratou-lhe a ferida e este curou-se. Então, levantaram-lhe um altar e encheram-no de ouro e pedrarias, prometendo-lhe metade do reino; mas Pantaleão de Sá disse-lhe que queria voltar para os seus e o rei mandou-o para Moçambique.
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