INTRODUÇÃO
A Palavra escrita ensinou-me a escutar a voz humana, assim como as grandes atitudes imóveis das estátuas me ensinaram a apreciar os gestos. Em contrapartida, e posteriormente, a vida fez-me compreender os livros.
Marguerite Yourcenar, in «Memórias de Adriano».
Ao iniciar este trabalho para Cultura Portuguesa II, queria referir aquilo que Kayserling dizia: a cultura é sempre filha do espírito em núpcias com a terra (...) o homem não é ainda filho legítimo de uma terra de que não pode conquistar as matérias espirituais senão em escala extremamente reduzida.(1)Essa 'conquista' é feita paulatinamente ao longo da vida, porque, tal como R. Barthes definia a cultura: ela é tudo em nós, excepto o presente. (2)
Ora o passado geracional representa, então, essa 'caminhada' na recolha de 'matérias espirituais' que nos permitem sentirmo-nos 'filhos legítimos' da nossa terra. Assim sendo, a infância e a adolescência são fundamentais para conhecer e viver por dentro a nossa cultura, a do mundo que nos rodeia. T.S. Eliot já referia no seu ensaio "Notas para a definição de Cultura", que o principal canal de transmissão de cultura é a família. Penso que assim é. A escola, os professores completam-na. O gosto pela leitura, o teatro, o cinema, a música, a pintura, a dança, e todas as artes, vem desses tempos longínquos e vai-se "sedimentando" no nosso imaginário, mesmo sem disso nos apercebermos.
Sem pretenções autobiográficas ou confessionais, que poderão parecer "construções na areia", mas sim como testemunho, eu recordo que, ainda antes de saber ler, já via apaixonadamente cinema. Trepava a uma robusta árvore de maçãs da Índia, enlaçava-me nos seus ramos, e eis que eles me transpunham do meu quintal para o recinto da Igreja do Carmo. Aí vi as primeiras sessões de cinema. Eram os vários filmes de Charlot e os do Bucha e Estica. Assim como as 'famosas' matinés infantis "Primor", no cinema Restauração, quando a publicidade a estes produtos lácteos se fazia através da oferta de filmes para crianças.
Mais tarde tive a sorte de ter um professor (Mário Pereira) que nos levou a amar o teatro e a participar activamente. Durante vários anos fiz teatro infantil. Do cinema para o teatro, representei (no Colégio S. José de Cluny) um quadro do filme «O Rei e Eu», que era interpretado, no principal papel, por Yul Brynner. Éramos um grupo de crianças, 'filhos' do rei da Pérsia, que brincava, dançava e representava com uma perceptora. As canções eram cantadas em inglês. O colorido dos vários fatos de cetim, o feitio das calças e das blusas, as pulseiras nas pernas e braços, a forma como nos sentávamos (como se a fazer Yoga) são bem visíveis na minha memória. Era uma experiência de outras culturas. Guardo a alegria dos momentos de ensaio e a espectativa da estreia.
Esta vivência, aliada aos diversos comentários àcerca dos filmes mais variados, pelo conjunto de irmãos (em que um era crítico de cinema) levou a que se formassem hábitos de frequência assídua ao cinema, ao teatro, num profundo apreço pela arte de representar. Sebentas recolhiam colecções de fotos de artistas, e completava-se esse gosto com a leitura da revista "Flama", e de outras, como o "Cinéfalo", onde se aprendiam como eram simulados os cenários e os mais pequenos truques dessa arte nova, o cinema, que "combina e incorpora outras, servindo-se de códigos e modos de expressão diversos".(3) Aprendemos a reconhecer a importância da 'montagem' (como conjunto) e da estética, que caracteriza o cinema e o teatro.
Efectivamente, vivi um tempo em que a educação e o acto de ensinar era um acto de amor e dedicação, por parte dos pais e professores. Hoje verifico, inclusivé pelas notícias mais recentes, que junto, um regresso à preocupação de que a "frente de batalha do futuro passe por escolas capazes de produzir estudantes de 'classe mundial,'" para "que não deixem desperdiçar nenhum talento, por maiores que sejam os obstáculos sociais ou financeiros". Esta é a aposta do presidente americano Bush, que se propõe passar à História como o "presidente da educação". Tese que reforça as palavras de Kayserling e a minha própria preocupação: a educação e o criar de bases sólidas culturais, que fomentem o gosto pelo saber.
É com a ajuda desta "experiência" vivida, possivelmente "formada em partes iguais de instinto e cultura",(4) que eu vou abordar a peça de teatro «Tanto Barulho por Nada» e o fime «Cyrano de Bergerac», pois caracterizam uma época própria, o 'Barroco', matéria de estudo nesta cadeira.
Consciente que "qualquer crítica depende necessáriamente de se saber o que quer dizer um texto, de ser-se capaz de o ler", e que, para isso, talvez seja necessário possuir bases teóricas de semiologia, como uma "área de estudo vital para a estética do filme", eu vou, sem pretenções críticas, dizer como os vi. O trabalho será uma "montagem como princípio dialéctico" como conflito. Integrarei a comparação de um espectáculo e outro, no período barroco vivido em Portugal, para que possa considerar-me um pouco mais "filha legítima".
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Notas:
(1) Autores vários «Jornalismo e Literatura», Actas do II Encontro Afro-Luso-Brasileiro, Editora Vega, Clecção Trimédia, Lx., pp.82.
(2) Barthes, Roland, «O Prazer do Texto», Edições 70, Col. Signos, Lx., 1988, in Prefácio, pp. 22.
(3)Wollen, Peter, «Signos e Significação no Cinema», Horizonte Cinema, Livros Horizonte, 1979.
(4) Yourcenar, Marguerite, «Memórias de Adriano», Editora Ulisseia, 6ªed. 1988, pp.26.
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