Imaginai-vos apressados para sair. Um encontro de amigos. Local o cinema Picoas. Cumprimentam-se, trocam beijos, sorrisos. Bem instalados? O filme vai começar. E hoje será Cyrano de Bergerac. Como num sonho, eis que vos sentis transportados para outra época, outro local que não Lisboa.
Era o séc. XVII. Em pleno Paris, numa noite de chuva, caleches a trote, pessoas que se abrigam, outros que abrem as sombrinhas. Todos apressados. Objectivo, chegar ao teatro, conseguir um bom lugar.
Camarotes, frisas, plateia. Diversos estratos sociais. Os membros da academia. Cavaleiros do Rei Sol. O mosqueteiro que não paga ingresso. Uma criança o acompanha. A sua curiosidade em tudo observar. Mistura-se o povo à nobreza. Ombreiam rendas, plumas, chapéus. Damas com belos vestidos de cetim, veludos; com trajes de estopa e linho, mãos sem luvas, chapéus sem adornos. Mas algo os une naquela noite: a paixão pelo teatro.
Sobem os candelabros, faz-se luz. A simulação, os efeitos do fumo são já visíveis no palco, que abriu o pano após a insistência do público ruidoso, em ouvir e ver Monfleury, aquele artista que Cyrano "ousara" proibir de actuar. Era trair a peça, a letra, a poesia; ele não tornaria a declamar! Além disso ousara cortejar Roxane!
No meio da multidão da plateia, mesas com frutas. O poeta Lignière, amigo de Cyrano, prova-as e comenta acerca das diversas personalidades. Virá Cyrano esta noite? Já pergunta Rapeneau a Le Bret. Não posso perder a aposta! Porque era também Lignière o ameaçado: ele ousara satirizar os ilustres cortesãos. Cem homens o esperavam. Isto confidenciou um espectador mais atrevido, que, ao meter a mão no bolso do barão Christian de Neuvillette, é apanhado. Tentava roubá-lo? Este estava enlevado a observar Magdeleine Robin, que após entrar no teatro com o rosto tapado por uma máscara preta, acompanhada por De Guiche, se encontrava no seu camarote e retribuia esses olhares.
Christian começava a gostar de Roxane. Seria impossível este amor? Roxane estava destinada a um nobre pretendente que De Guiche, seu tutor, escolhera para si. Mas eis que se inicia a peça «Clorise» de Baltasar Baro. No palco, o artista contestado por Cyrano declama, envolto em vestes luminosas, coloridas, de faces "bem" pintadas.
Eis que Cyrano irrompe entre a multidão, e, com falas em verso, ameaça: É preciso sair do palco já! Gera-se a confusão. De espada na mão, desafia quem com ele se quiser bater em duelo. Mas trair assim um texto é que não! Cai o cenário em cima dos artistas, que tentam em vão continuar no palco, apesar dos protestos. Acaba ali o espectáculo. Mas outro se iniciava. Cyrano vê a sua prima, amada do fundo do coração. De Guiche protege-a; descem as escadas, mas eis o desafio ao pretendente predestinado. Aceite o duelo, é já fora do teatro que este se realiza. A sua voz, numa entoação de enlevo, provoca aquele que ousa tirar-lhe Roxane! A sua espada, em lances perfeitos, deslumbra o povo, burgueses, nobres, que os rodeiam. A chuva parou. A força da natureza, ali, era Cyrano, para quem todos os olhos convergiam. Derrota brilhantemente o adversário, mas eis que logo se aproxima a guarda da noite, montada! Dispersa-se a multidão; Roxane parte de carruagem com De Guiche e olha-o ternamente. Admira-o!
Este afasta-se, e recebe o chapéu das mãos daquela criança que lho apanhara no meio da confusão. Seus olhos infantis, seu rosto, tem a expressão de quem viu um herói. Desenhá-lo`-á e colocará por cima de sua cama, folhas e folhas, onde traços de lápis lhe dão o seu herói que até todo o seu dinheiro deixou no palco.
Já Cyrano descansa, sentado, rodeado por alguns amigos, quando ao longe se vêem archotes, vultos que se aproximam. Que surpresa! Era a aia de Roxane que vinha marcar-lhe um encontro com a sua prima. Às sete horas, no fim da missa, Roxane queria falar-lhe. Onde seria? Ah, sim! Na pastelaria de seu amigo Rapeneau, que amava a poesia. Transborda de alegria, emocionado, por se saber procurado por sua prima. Precisava de comemorar aquela ventura.
Sabendo que Lignière não regressara a casa, porque cem homens o esperavam para o abater, eis que ousa desafiá-los. Vai, então, acordar o poeta que dormia nas arcadas, junto às docas, perto do rio, misturado com gente simples, e uma mulher que amorosamente o acolhia. Vamos todos, não receies, tu passarás a ponte e irás ficar a casa. Não são cem homens que me assustam! Dá-se, então, o desafio contra os que ousavam fazer-lhe a espera.
Amanhece. No ar, para além da brisa, esvoa-se o perfume daquela pastelaria. Afanosamente o pasteleiro e sua mulher e empregados durante a noite tinham trabalhado, para que manhãzinha houvesse doces dos mais variados, frangos e perús assados, para os seus fregueses. Mas este pasteleiro era um sonhador! Amava os versos e prodigamente abria suas portas aos esfomeados poetas. Sua mulher insurge-se contra a sua bondade, e dos seus livros, folha a folha, faz pacotes em forma de cone para embrulhar os bolos. Desespero do pasteleiro, que até com as receitas deseja fazer versos! Compara, então, a mulher à formiga e os poetas às cigarras. Um seu jovem empregado faz-lhe uma lira em pão doce; ele encantado, retibui-lhe o gesto com algumas moedas. Lira que alimenta um dos poetas, que comenta ... ser a primeira vez que esta lhe mata a fome.
A azáfama é grande, mas logo surgem os primeiros fregueses. São as duas crianças. Pedem os bolos empacotados - desespero do pasteleiro, ao ter que escolher um cartucho dos seus amados autores para lhes vender os bolos. Por fim são servidos pela mulher. Corre ele, porém, atrás deles e dá-lhes mais bolos em troca das folhas dos versos queridos. Feliz! Recuperou-os.
mas eis que, surpresa, surge Cyrano. Segreda-lhe que Roxane vem ali encontrar-se com ele. A esposa e o pasteleiro leva-o para as traseiras da pastelaria. Receoso, confuso, atormentado, vê-se ao espelho; falta-lhe a coragem de se encontrar com a prima, de lhe declarar o seu amor. Escreve-lhe, então, uma linda carta. Mas ei-la, chegou. Cyrano afasta a aia, enche-lhe um pacote de bolos e diz-lhe que só regresse quando os tiver terminado. Fica a sós com Roxane.
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