segunda-feira, 25 de março de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

ARTE
POETICA

PARTE PRIMEIRA
(Continuação)

Bem sabeis quantas vezes insultado
Tenho sido em usar desta licença:
Esta desordem, que parece offensa
Menos provoca o estimulo, que o riso:
Se fosse desculpavel, ou preciso
Rebater este insulto, me bastava
Dizer o que eu treslado aqui de Horacio:
Ouvi do Mestre a voz: Licença dava
A mais severa Critica, que os nossos
Mais sublimes engenhos augmentassem
A patria lingua na dicçaõ estranha:
Com que causa, ou justiça se me estranha
Que eu me valha tambem do mesmo indulto,
Com modesta, com timida cautella,
Para haver de illustrá-la, e enriquecê-la.

Naõ concebais os frivolos empenhos
De dizer sempre bem, sempre elevado,
Sempre agudo, e engenhoso: fica inchado
Quem aspira talvez ao mais sublime:
Por muito que se esforce, e que se anime
Muitas vezes se arrasta o que pertende
Subir sempre mais alto: quem deseja
Tirar-se do comum, e do ordinario
tropeça no indecoro involuntario
De huma mal elevada estravagancia:
Na Terra os astros põem, na Esfera os brutos:
Estas as normas saõ, estes os frutos
De huma ideia viciada, como aquella,
Que levou ao Zodiaco o carneiro,
E deo assento nesta Zona de ouro
Ao Leaõ, ao Capricórnio, ao Cancro, ao Touro.

Naõ presumais tambem que tendes genio
Para todos os casos, que a Poesia
Abrange no seu vasto, e ardente lume:
Hum procura sobir ao alto cume
Com o Tragico, e Lyrico: pertende
Outro engenho empenhar o seu alento
No Epico, ou no Comico: se agrada
Do Pastoril, algum; e para tudo
Naõ ha força, ou vigor, por mais agudo
Que seja o humano impulso; deve o objecto
Ser aquelle mais prompto ao nosso affecto,
E procurar o pezo, com que possa
O nosso esforço na constancia nossa.

Convem muito o empregar grande cuidado
No que deve omittir-se; ou castigar-se,
E no que he mais preciso declarar-se:
Muitas cousas se dizem, sem motivo,
E se calaõ talvez as de mais porte:
Virgilio he deste ponto o melhor norte:
Ninguem melhor o inutil desprezava,
Nem disse alguem melhor o que importava.

Deve a Poesia religiosamente
Sustentar os costumes: a Deidade
Há sempre de mostrar-se, sem maldade,
Os Heróe com fama, o Sabio com doutrina,
Com valor o Soldado, com destreza
O Engenheiro, o Pastor com singeleza.
Ha de ser a donzella vergonhosa,
Terna a Mãi, a criada cubiçosa:
Há se de conhecer pelo desejo,
Ou pela propensaõ o China, o Indio,
O Tapuia, o Hotentot, o Troglodita,
O Tartaro, o Laponio; o Thrace, o Schyta.

Se a personagem for estranha, ou nova,
Depois de a dar a conhecer o Poeta
Deve sempre seguî-la no caracter, 
Em que a pôz ao principio: estes dictames
Que vos fiz, sem metter-me nos exames
Dos homens doutos, e onde a penna lança
Somente o que se encontra na lembrança,
Cuido que bastaraõ para instruir-vos:
No demais vos remetto ás sabias regras
Daquelles Mestres, que, com mais talento,
Tem dellas hum melhor conhecimento.
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Note-se que o poeta se lamenta de em Portugal a poesia ser considerada um "vício," ao contrário dos tempos da Antiguidade em que os poetas eram considerados como seres divinos, oráculos, portadores da mensagem dos deuses, estimados. Entre as nações mais sábias mas também entre os povos mais incultos a "chama" da poesia foi apreciada. "Só nas sombras fatais deste Ocidente,/ Onde a Pátria formou seu domicílio,/ Pode nunca alcançar um nobre auxilio/ Esta instância Celeste..."
Por isso, aconselha o seu interlocutor a que faça um "exame" sério da sua inclinação para a poesia, "infausto estudo", pois as regras, os ditames, não ensinam, o melhor mestre é o "génio", não "a doutrina".
"O nome augusto" de poeta não se alcança só com a rima, porque "o que mais resplandece é o "arrebatado alento" de uma alma sossegada, "que imprime um perturbado movimento", "uma elevação", que se exercita com um "génio feliz", "um dote celestial". Uma elegância temperada, abundantes imagens, frases originais, escolha de palavras invulgares, imaginação plena de labor e ardor igualado à "doçura", uma rara "loucura"...
A poesia imita a vasta natureza, o mundo percepcionado pelo intelecto, esse "teatro de maravilhas", que aliado à harmonia, da música, da pintura, da dança, descreve no verso, tal como a imagem o solicita, o comprazimento dessa imensidão.
A "medida das vozes", o "equilíbrio fonético", é "o instrumento, que faz a semelhança/ aos métricos retratos" e a "cadência" tudo imita, tudo em "desenho" põe a poesia, que ensina e encanta.
"O Poeta é só um Médico da alma/ Que adoça, ou doura o amargo do remédio" para que o "tédio" não invada o doente. E à poesia imprime mais que a imitação, porque o "treslado" é tão semelhante, que ao leitor parece "ter o objecto imitado" à vista.
A linguagem da poesia barroca está, talvez, bem visível nesta Arte Poética. "Elocutio" cultismo e conceptismo, que se enlaçam num amor perfeito e preconizam o pré-romantismo.
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(continua) pp. 16/17/18. 



sábado, 23 de março de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

ARTE
POETICA

PARTE PRIMEIRA
(Continuação)

O estylo, em que com vosco tantas vezes
Tenho fallado, e discutido, he parte
Da metrica doçura: pouco a arte
Poderá conseguir nesta ardua empreza
Se a ella naõ concorre a Natureza.

Tres generos de estylo distinguiraõ
Os antigos Rhetoricos, chamando
Asiático ao diffuso, Atico ao breve;
E ao que neste, e naquele hum meio teve,
Com o nome de Rhodio o conheceraõ:
Estas tres differenças procederaõ
Do génio das Naçoens: Amava a Ásia
Os adornos, e a pompa: conhecia
A Grecia huma discreta melodia
No impulso natural: participava
A eloquencia, que a Rhodes agradava
De huma, e de outra distancia: aquele gosto,
Que havia entre o singelo, entre o composto
Teve maior partido: mas a regra
Mais certa dos estylos vem do assumpto:
Quer hum grande argumento phrases grandes:
O nome de sublime a este estylo
Se tem dado: de infimo ao tranquillo,
Que só trata de cousas mais commuas
Nas practicas, ou cartas familiares:
Medriocre se chama o que no meio,
Com mais graça, elegancia, e mais asseio
De hum, e de outro igualmente participa:
Ao sublime pertence toda a pompa
Dos periphrases, tropos, e figuras,
Mas com a parcimónia mais discreta,
E huma animaçaõ, onde a trombeta
No estrondo dos tambores tosco, e rudo,
Naõ caia, ou naõ affecte hum falso estudo.

A clareza dos termos, e das vozes
Não deveis sujeitar á brevidade:
Confessa Horácio que na escuridade
Se despenha, se breve ser pertende:
Tudo claro ha de estar: sem evidencia,
Gosto naõ póde haver, nem eloquencia
Póde brilhar, com resplandor distinto,
Na opaca confusão de hum labyrinto.

Sobre a licença de palavras novas
Levantado se tem grande disputa:
Huns querem, com paixaõ bem absoluta,
Que huma voz estrangeira manche o idioma:
De outro modo este escrupulo nos toma
O Mestre Horacio, e o Mestre Quintiliano,
E inda o mesmo Aristoteles: profano,
Barbaro, rude, informe, atroz, grosseiro
O estylo se acharia, se o primeiro
Dialecto conservasse: á Grega fonte
Muitas novas dicçoens pedio o Lacio;
E este exemplo igualmente determina
Que tambem as peçamos á Latina.

Com tudo, nem a todos se concede
Que possaõ merecer o que se pede:
Hum sabio de huma Critica profunda,
E onde o novo vocabulo se funda
Na razaõ, no decoro, e na pobreza
Dos termos, com que intenta declarar-se,
He que licença tem de aventurar-se
A deixar, com a voz introduzida,
A lingua mais copiosa, ou mais polida.

A nossa lingua fora sepultada
Inda no torpe horror do seu principio,
Se hum Barros, se hum Camoens, Vieyra, e Freire
Naõ empreendessem, com valor illustre,
Com sabia presumpçaõ, nobre ousadia,
O tirá-la da cinza, em que dormia.
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(Continua) pp.15 




quarta-feira, 20 de março de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

ARTE
POETICA

PARTE PRIMEIRA
(Continuação)

Obrigaçaõ precisa he da Poesia,
O melhorar a inércia, e a cobardia
Das causas naturaes, dando mais força
A' sua decadencia: a Natureza
Deve vir para o metro mais brilhante,
Mais bella, mais subtil, mais elegante:
Sem este novo encanto, e illustre empenho
Naõ se mostra o artificio, nem o engenho.

Este engenho, e artificio nas imagens,
Que chamamos phantasticas se alcança:
Com discreta ousadia he que dizemos
Que a doce madrugada, a bella aurora
Quando na espfera ri, no campo chora:
Diz-se igualmente que murmura a fonte,
Que as ondas roncaõ, que suspira o vento,
Que he fina a dor, veloz o pensamento.

Nestes, e noutros termos atrevidos
Com juízo, e cautella repartidos
Se propõem as figuras, com o que o engenho
Felizmente arrojado nos aviva
Dos objectos a muda perspectiva.

Por esta mesma causa se concede
Que se busque a piedade nos penhascos,
E a lastima nos troncos, dando impulso,
Dando affectos ás cousas insensíveis:
Estes representados impossiveis
Não se permittem, quando se dilataõ
As agoas de Hypocrenne em mansa veia;
Porèm saõ concedidos, quando a ideia
De huma paixaõ ardente commovida
Finge no seu affago, que tem vida
O que he inanimado; e o ardor vehemente
Daquele mesmo incendio, que o arrebata,
Lhe faz crer que há de achar nas toscas brenhas
Com alma os Cedros, com ternura as penhas.

A'lèm destas imagens se introduzem
O similes tambem, representando
Hum objecto por outro, e comparando
As cousas, onde se acha a analogia:
Eu presumo que o simile seria
Mais illustre, e exquisito, se o buscasse
A invençaõ nos aspectos mais remotos:
Os esquadroens depois de serem rotos,
E por terra cahidos, os compara
O grande Homero aos molhos de huma seara
Prostrados pelo campo, com a fouce
Dos rudos segadores: bem distantes
São colheita, e batalha; e semelhantes,
Com este nobre, e singular desenho
As fez applicaçaõ, e as pôz o engenho.
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(continua) p.14

sábado, 16 de março de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

ARTE
POETICA

PARTE PRIMEIRA
(Continuação)

Na copia suave das paixoens sensíveis
Não tem lugar o impulso da agudeza:
He contra a propriedade, e a natureza
Que hum anima phrenetico, e empenhado
Possa ser em concurso taõ inquieto
Menos apaixonado, que discreto:
Este defeito se acusou ao Tasso
No pranto de Tancredo, e no de Armida:
Commovei-vos primeiro, se a outra gente
Quereis ver alterada, ou commovida
Haveis de prenotar attentamente
Quanto fazem os homens exhortados
Das violentas paixoens: representados
Poreis estes affectos nos lugares
De que mais occasiaõ vos contentares.

Se quereis ser amado, amai primeiro,
E isto mesmo acontece assim em todas
As modificaçoens, que faz a alma:
Para triunfar, para levar a palma
No amor, na compaixaõ, na dor, no alento
Deve mostrar-se o vosso pensamento
Com o impulso mais forte, e mais activo,
Valente, afflito, amante, compassivo.

Alguns homens grosseiros, que não sabem
Distinguir os sentidos das potencias,
A Poesia desprezaõ, pois lhe chamaõ
Hum compendio infeliz de falsidade:
Esta gente que a tanto se persuade
Nunca teve de falso, e verdadeiro
A devida noçaõ: He só mentira
O falar contra o mesmo, que se inspira:
E a verdade se expõem, onde se alcança
O provavel, o certo, o verísimil
Muitos objectos certos, ou prováveis
Se encontraõ muitas vezes na Poesia
Como a Jurisprudência, a Geographia, 
A Physica, a Moral, e outras sciencias,
Que o Poeta lhe aproveita, para o ornato,
Ou para as instrucçoens dos seus leitores:
Porém deixemos aos Historiadores
O provavel, e o certo, pois só toca
A verisemelhança ao nosso assumpto:
A Poesia da Historia se distingue
Narrando esta o que foi, dizendo aquella
O que devia ser: útil, e bella
Se faz mais a Poesia desta sorte:
Quem póde duvidar que melhor norte,
E melhor exemplar aqui se offrece?
Se toda a acçaõ humana naõ carece
Das sombras mais grosseiras, estas sombras
Apartadas na ideia, e no conceito,
Nos propõem hum objecto mais perfeito,
Para ser imitado, quando incrivel
Se naõ mostre no excesso, e na desordem:
Não se precisa pois de ser constante,
Basta que seja verisemelhante.

Porém o verisimil necessita
De ser maravilhoso, pois sem elle
Não póde haver Poesia deleitavel:
Sendo esta huma perpetua imitadora
Da vasta Natureza, naõ melhora
Muitas vezes as suas entidades,
Revestindo as diversas qualidades
Do vulgar, e commum: deve escolher-se
O mais raro, e exquisito, para assumpto
Do métrico exercicio, e se he preciso
Que no metro o vulgar se represente,
Deve o engenho fazê-lo preeminente,
Admiravel, e novo, com as luzes
Mais claras, e brilhantes do artificio,
De tal sorte que sempre lhe aconteça
Que a admiraçaõ no Verso resplandeça.

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(continua)p.13

    

sábado, 9 de março de 2013

«O Tempo, protagonista da Poesia Barroca»

ARTE
POETICA

PARTE PRIMEIRA
(Continuação)

Em fim outras Lambentes se apelidaõ,
Porque os toques da língua as constituem
He o L a melhor: o N he docil:
He expressivo o T: o D flexível:
He o R indomável, e terrivel:
O S sibilante, e o Z formado
De hum tinido mais brando, e delicado.

Das vogais a mais clara, e mais aberta
He o A, e com ella a nossa Infância
Articûla a primeira consonância:
He o O varonil, e sonoroso,
Muito menos o E, o I confuso,
E o U, com hum estrondo mais molesto,
He sempre triste, insípido, e funesto.

Depois que conheçais a differença
De humas a outras letras, empenhai-vos
Em formar a eloquencia das mais doces,
Mais claras, mais harmónicas, e o effeito
Alcançareis bem cedo no proveito,
Que esta escolha vos da: Inda que o metro
He todo numeroso, se lhe observa 
Hum numero tão fino, que se sente
Melhor, do que se explica, e mais luzente
Com esta escolha, e ordem das palavras
Se nos mostra: já Aristoteles dizia
Hum pedante, que nunca percebia
O numero do Verso, nem da Prosa:
Usai só (respondeo o Sábio Mestre)
De hum corpo taõ immovel, e taõ rudo,
Que inculca neste inerte desalento,
Que não tem eleição nem sentimento.

A belleza do Verso acompanhada
Ha de ser da doçura, e das imagens,
Que se chamaõ patheticas, notando
Os affectos humanos, e exprimi-los
Com tão forte calor, como se ouvî-los
Pudesse o coração: o espanto, e o susto,
A alegria, a tristeza, a dor, e a anciã
Tão vivas se haõ de pôr na consonância,
Que os ouvintes recebaõ nos affectos
A mesma commoção destes objectos.

Talvez direis que hum caso lastimoso
Nunca póde ser doce, ou deleitoso;
Assim he se o exemplar se offrece à vista;
Porém quando se finge na cadencia,
Alcança commummente o nosso agrado
A destreza de o vermos imitado.
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(continua) p. 12