ARTE
POETICA
PARTE PRIMEIRA
(Continuação)
Bem sabeis quantas vezes insultado
Tenho sido em usar desta licença:
Esta desordem, que parece offensa
Menos provoca o estimulo, que o riso:
Se fosse desculpavel, ou preciso
Rebater este insulto, me bastava
Dizer o que eu treslado aqui de Horacio:
Ouvi do Mestre a voz: Licença dava
A mais severa Critica, que os nossos
Mais sublimes engenhos augmentassem
A patria lingua na dicçaõ estranha:
Com que causa, ou justiça se me estranha
Que eu me valha tambem do mesmo indulto,
Com modesta, com timida cautella,
Para haver de illustrá-la, e enriquecê-la.
Naõ concebais os frivolos empenhos
De dizer sempre bem, sempre elevado,
Sempre agudo, e engenhoso: fica inchado
Quem aspira talvez ao mais sublime:
Por muito que se esforce, e que se anime
Muitas vezes se arrasta o que pertende
Subir sempre mais alto: quem deseja
Tirar-se do comum, e do ordinario
tropeça no indecoro involuntario
De huma mal elevada estravagancia:
Na Terra os astros põem, na Esfera os brutos:
Estas as normas saõ, estes os frutos
De huma ideia viciada, como aquella,
Que levou ao Zodiaco o carneiro,
E deo assento nesta Zona de ouro
Ao Leaõ, ao Capricórnio, ao Cancro, ao Touro.
Naõ presumais tambem que tendes genio
Para todos os casos, que a Poesia
Abrange no seu vasto, e ardente lume:
Hum procura sobir ao alto cume
Com o Tragico, e Lyrico: pertende
Outro engenho empenhar o seu alento
No Epico, ou no Comico: se agrada
Do Pastoril, algum; e para tudo
Naõ ha força, ou vigor, por mais agudo
Que seja o humano impulso; deve o objecto
Ser aquelle mais prompto ao nosso affecto,
E procurar o pezo, com que possa
O nosso esforço na constancia nossa.
Convem muito o empregar grande cuidado
No que deve omittir-se; ou castigar-se,
E no que he mais preciso declarar-se:
Muitas cousas se dizem, sem motivo,
E se calaõ talvez as de mais porte:
Virgilio he deste ponto o melhor norte:
Ninguem melhor o inutil desprezava,
Nem disse alguem melhor o que importava.
Deve a Poesia religiosamente
Sustentar os costumes: a Deidade
Há sempre de mostrar-se, sem maldade,
Os Heróe com fama, o Sabio com doutrina,
Com valor o Soldado, com destreza
O Engenheiro, o Pastor com singeleza.
Ha de ser a donzella vergonhosa,
Terna a Mãi, a criada cubiçosa:
Há se de conhecer pelo desejo,
Ou pela propensaõ o China, o Indio,
O Tapuia, o Hotentot, o Troglodita,
O Tartaro, o Laponio; o Thrace, o Schyta.
Se a personagem for estranha, ou nova,
Depois de a dar a conhecer o Poeta
Deve sempre seguî-la no caracter,
Em que a pôz ao principio: estes dictames
Que vos fiz, sem metter-me nos exames
Dos homens doutos, e onde a penna lança
Somente o que se encontra na lembrança,
Cuido que bastaraõ para instruir-vos:
No demais vos remetto ás sabias regras
Daquelles Mestres, que, com mais talento,
Tem dellas hum melhor conhecimento.
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Note-se que o poeta se lamenta de em Portugal a poesia ser considerada um "vício," ao contrário dos tempos da Antiguidade em que os poetas eram considerados como seres divinos, oráculos, portadores da mensagem dos deuses, estimados. Entre as nações mais sábias mas também entre os povos mais incultos a "chama" da poesia foi apreciada. "Só nas sombras fatais deste Ocidente,/ Onde a Pátria formou seu domicílio,/ Pode nunca alcançar um nobre auxilio/ Esta instância Celeste..."
Por isso, aconselha o seu interlocutor a que faça um "exame" sério da sua inclinação para a poesia, "infausto estudo", pois as regras, os ditames, não ensinam, o melhor mestre é o "génio", não "a doutrina".
"O nome augusto" de poeta não se alcança só com a rima, porque "o que mais resplandece é o "arrebatado alento" de uma alma sossegada, "que imprime um perturbado movimento", "uma elevação", que se exercita com um "génio feliz", "um dote celestial". Uma elegância temperada, abundantes imagens, frases originais, escolha de palavras invulgares, imaginação plena de labor e ardor igualado à "doçura", uma rara "loucura"...
A poesia imita a vasta natureza, o mundo percepcionado pelo intelecto, esse "teatro de maravilhas", que aliado à harmonia, da música, da pintura, da dança, descreve no verso, tal como a imagem o solicita, o comprazimento dessa imensidão.
A "medida das vozes", o "equilíbrio fonético", é "o instrumento, que faz a semelhança/ aos métricos retratos" e a "cadência" tudo imita, tudo em "desenho" põe a poesia, que ensina e encanta.
"O Poeta é só um Médico da alma/ Que adoça, ou doura o amargo do remédio" para que o "tédio" não invada o doente. E à poesia imprime mais que a imitação, porque o "treslado" é tão semelhante, que ao leitor parece "ter o objecto imitado" à vista.
A linguagem da poesia barroca está, talvez, bem visível nesta Arte Poética. "Elocutio" cultismo e conceptismo, que se enlaçam num amor perfeito e preconizam o pré-romantismo.
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(continua) pp. 16/17/18.