segunda-feira, 30 de abril de 2012

Ancestrais - O Berço Africano

A grande maioria dos ancestrais brasileiros vieram da "chamada África Ocidental e Centro-Ocidental," denominada, neste trabalho, como "Atlântica". Desde o Senegal até Angola, esta região revelou, através da sua história, a existência duma prática da agricultura e do trabalho do ferro, muito antiga. Pertenciam ao grupo de línguas nigero-congolês ou banto e tinham uma organização social que de longa data foi marcada pela luta constante contra a natureza hostil dos territórios que habitavam.
Desde a antiguidade que como forma de ampliar as sociedades e resistir ao inclemente clima, os colonos foram para as savanas, à procura de melhores condições de vida. A desertificação constante do Sara e decrescente florestação do sul do deserto, levou a que os grupos se estabelecessem, de forma dispersa, nas planícies com água abundante e de preferência com pequenas colinas onde formavam os povoados. Esta escolha tinha que ver com a necessidade de se protegerem das feras e dos ataques inimigos.
Por volta do século I, os grupos de aldeias neste território começaram a reunir-se em micro estados e a formar-se politicamente. Buscavam zonas em que houvesse caça abundante, rios com peixe e terras aráveis. Estabeleceram contactos com os pigmeus e trocavam os produtos que produziam mais abundantemente, como o inhame e a palma. A sua tradição migratória levou-os a instalar-se muito perto de povos com origens diferentes e com as línguas mais diversas. No entanto, esta diversidade permitiu-lhes uma certa mobilidade sempre que os recursos se mostravam insuficientes. Seguiam os cursos dos rios e por volta do ano 1000 já tinham penetrado em toda a região florestal que vai da Senegâmbia à Costa do Marfim. Muitos destes grupos somavam à agricultura a criação de bois, o que lhes permitia o abastecimento de carne e couro, assim como o estrume para a fertilização das suas terras, ao qual juntavam os restos de cozinha e a irrigação. Construíam socalcos nas encostas e praticavam a rotação das culturas. Verificavam quais eram as mais produtivas e plantavam os mais variáveis vegetais. Se qualquer cultura não vingasse, tinham outras que se mostravam proveitosas. Produziam as suas roupas e também compravam aos berberes fazendas de lã e algodão com formas geométricas.
Começava um tempo de sedentarização longe dos tempos nómadas. A escolha dos lugares não era aleatória, porque desde o século X, que se formavam áreas de intensiva produção agrícola e cultural que se multiplicavam por vales onde corriam rios e por terras onde fecundavam os solos com as enxadas de lâmina estreita ou os bastões com que cavavam as terras quotidianamente. "Foi assim que no século XI, um povo chamado por seus percursores de Tellem, se instalou nas falésias do Mali para cultivar as bordas do extenso planalto de Bandiagara. (...) A partir do século XV, tal gente," foi absorvida por um povo de origens diversas, os Dogons. Estes povos eram muito criativos e sabiam aproveitar a água que encontravam. Cultivavam o milhete ou painço e no curso do rio Niger plantavam arroz de sequeiro. A eles se devem, segundo os autores, as mais belas esculturas e máscaras de toda a África, destinadas a guardar as "almas dos ancestrais." As aldeias eram cercadas por espaços incultos e formavam-se em anéis concêntricos separadas entre si. Eram formadas por grupos de população irregular e desigual que iam alargando as suas terras conforme o poder da guerra, do número de habitantes, secas que sofriam ou dos poderes dos próprios feiticeiros que intimidavam os jovens, levando-os a estabelecer-se noutros locais vizinhos.
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(continua) 

quinta-feira, 26 de abril de 2012

ANCESTRAIS

Fazia parte da ordem do mundo, ordem essa que permitiu entre o século XVI e XIX a deportação de onze milhões de africanos para o Novo Mundo sendo que quatro milhões foram para o Brasil. A vontade de pôr a descoberto essa escondida realidade, levou a que historiadores penetrassem na "memória do que foi a terrível rota dos negreiros" e mostrar, sem medo, todas as "tragédias ocultas jamais explicadas e não assumidas." Fazia-se luz sobre o negro passado e distinguia-se entre a "casa da vida," o berço, a África, - e o "país da vida," o Brasil, terra onde se cumpriu o degredo.
Da "Ile Ayé para Ilú Ayé (da casa da vida para o país da vida) os africanos, mesmo no meio do inferno que sofreram, mostraram que a cultura é uma força viva que se enlaça como uma hera, ao próprio tronco do pelourinho, ou o tronco em que foram açoitados, mortos, para viverem eternamente. A nova civilização tinha o cunho da África "ad eternum", nas ideias, valores, saberes e tradições que estes homens, mulheres e crianças transportaram de "Ilé Ayé". Davam "à luz novas e plurais formas de culturas e de identidades." Daí a importância de "compreender como viviam estes ancestrais antes da diáspora, da travessia da "Calunda Grande", o temeroso e mortal Oceano Atlântico. Porque é importante, concluem os autores, que os brasileiros  conheçam e reconheçam o seu passado, uma vez que ocultá-lo, segundo "as palavras de Ibrahima Baba Kaké, é um crime - e dos maiores - contra a humanidade."
Ao finalizar esta introdução, queremos acrescentar que a sinopse que pretendemos fazer a este livro não será exaustiva e que privilegiaremos alguns capítulos, excertos, temas e países, como por exemplo o Congo e Angola.
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(continua)
  

Ancestrais (Introdução)

«Ancestrais - uma introdução à História da África Atlântica» é um trabalho apresentado no Seminário de HISTÓRIA DA ESCRAVATURA, no Mestrado em Estudos Portugueses - Época Moderna, no segundo semestre de 2003/2004. Consiste numa Sinopse da Edição de Mary del Priori e de Renato Pinto Venâncio, e foi realizado como opção, para além dos seminários obrigatórios. Devo dizer que neste Seminário aprendi muito sobre a História da Escravatura e que adquiri uma visão clarividente deste período da história da humanidade. Que bom seria que nunca tivesse acontecido, mas estes heróis, para mim, mudaram o mundo para todo o sempre.
Vamos ao trabalho.

ANCESTRAIS

Introdução

Mary del Priori e Renato Pinto Venâncio dizem ao leitor, logo na badana do seu livro "que a escravidão foi responsável por vários preconceitos a respeito da África" e que isto aconteceu a todos os níveis e nas diversas classes sociais. As sociedades africanas foram vistas como miseráveis e atrasadas. Por isso, o que os autores pretendem mostrar é que, de facto, não era essa a realidade, principalmente na África Atlântica, donde foram levados, para as diversas partes do Mundo Novo, cerca de 90% dos escravos. O que pretendem sublinhar é "a diversidade económica, social e cultural das civilizações" que estão na base da maioria do povo brasileiro, porque toda a complexidade da África Atlântica se revelou, na sua faceta magnânima e implacável, através duma "das mais fascinantes dimensões da aventura humana."
O Brasil tornou-se um país pluriétnico uma vez que, segundo os autores, quase todos, actualmente, são descendentes de afro-brasileiros. Durante a introdução a este tão proveitoso trabalho, salientam que hoje se conhece muito sobre a permanência dos europeus, mais alguma coisa sobre o povo indígena, mas que, para além do monótono e rotineiro trabalho escravo, pouco se sabe do seu verdadeiro contributo «enquanto "colonizadores", com tradições culturais rivais às dos europeus». Realçam o aspecto de que durante muito tempo foram os mitos e os mais diversos preconceitos que fizeram esquecer o continente africano, partindo do princípio que sendo um povo sem escrita não tinha história. Ora, assim sendo, não se ensina às crianças, nem mesmo nas universidades, a real história dos seus avoengos. Sabendo nós que tudo partiu de uma memória oral, desde o legado de Homero, de Sócrates, ou até do legado cristão, que foram escritos à posteriori, concluímos, tal como os autores, que de facto as memórias dos africanos não tiveram o devido valor e realce que hoje permitam estarem tão estudados como os europeus ou os dos próprios indígenas.
Aos pioneiros, como Léo Frobénios, no estudo dessa multifacetada e rica história cultural, não foram dados ouvidos. Por isso é que surgiu a necessidade de um estudo que abordasse a história dos antepassados, nos seus próprios países de origem, para dar a conhecer a multiplicidade de etnias que viveram diversas realidades, também elas mestiças, "resultantes da mistura de várias tradições em permanente recomposição."
Advogam os autores que escrever sobre a história da escravidão e sobre a África é também escrever sobre a história do racismo, do ódio e do desprezo; por isso, é fazer renascer a memória passada do Brasil e de uma época que de facto se quis ou quer esquecer. E esquecer porquê? Porque ela transporta em si mesmo a evidência de que os antepassados foram senhores e escravos. Mesmo que seja uma história que remonta há dez mil anos, com registos que identificam o aparecimento de sociedades esclavagistas nos vários continentes, muito antes de Colombo ter chegado à América,ela prova que "desde Platão e Aristóteles, ou ainda a Igreja Católica e o Islão, as grandes filosofias ocidentais, até ao século XVIII, jamais condenaram a escravidão de pagãos... incluindo nela a deportação de africanos para o trabalho forçado."
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(continua)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Outono

Era um corvo anunciador
do amor
Voava de árvore em ramo
e ramo doutra árvore
Indicava o caminho
da luz e do Zénite.
Éolo soprava e mil
folhas esvoaçavam
Ela seguia-o sem
saber o rumo desse Outono
Sabia que no Inverno
não mais sentiria frio.

Espiga

Lágrimas chorou o ano de 1949
Não havia água para regar os pés de milho!
E aquela espiga sem sorte,
Acreditou que era o seu destino.
Morrer de sede junto ao rio
Envolta pelo Sol abrasador
Quase nua na eira sem grãos, sem pão,
Morto o espírito por sete epístulas!

Alva

Nasce a Alva, Mariana
e o Sol do Norte promete
castas uvas a Dionísio
para afogar suas penas.
Nasce a Alva clara,
a noite transfigura
nos risos de alegria,
do céu claro e
do azul rio Lethes.
Uns sussuros de Zéfiros
a Paz pronunciam.
Para ser Senhora, Rainha
do céu, o Sol levanta
esta jovem santa
à altura da luz d'Aurora.
Ela canta, ela chora
e o orvalho transforma
em pérolas brilhantes,
contas douradas
que apagam as penas
da noite de breu.
O Sol nasce e
a pura luz d'Alva,
Mariana protege, e,
os que ama, segura
da sua alva formosura.
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terça-feira, 24 de abril de 2012

O Sol

Queria ter sido Terra
Fértil, quente e húmida,
Gelada, translúcida e pura,
Amada e segura

Deus fez-me Sol

Ergeu-me para a luz
Iluminou-me com o Seu Ser

Responsabilizou-me:

Sê Aurora rosada
Sê Vénus pungente
Sê Marte incandescente
Sê a paz e a guarda

Sê inocente e boa-nova
Sê arco e Flecha
Sê Ocaso e Sol da Primavera
Sê tu e volta para Mim

Eu, Sou Tudo - Disse-me -
O Sol da tua Vida.
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Tesouro

São João da Cruz
e Santa Teresa de Jesus
Vós que o caminho,
tantas vezes, juntos
percorrestes, dizei-me:
-Qual é a estrada
certa, que leva à
descoberta do vosso
Tesouro!
Para mim não quero
nada...
de perseguições estou
cansada, dai-lhes
a Paz, para chegarem
"de todo a tudo" e,
então, quando tudo tiverem
e já nada quererem,
o Tesouro!
Porque a justiça
 a Deus pertence
não à vingança
Quero... a Paz...
O meu Senhor.
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Alegria!

Hoje é um dia de Paz,
quero acreditar
que o mundo vai melhorar!
Tantos, tantos, são os sofrimentos,
as angústias e a melancolia
que a alegria teima em não voltar!
Tenho saudades da alegria,
do tempo em que a ínfima
realização fazia transbordar
o coração e o sorriso franco
era a nossa companhia.
Tenho saudades da alegria,
volta para mim,
Vem em cada novo dia,
Alegria, vem melhorar a vida!
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01/01/06



segunda-feira, 23 de abril de 2012

Pérolas

Um coto de vela entre os dedos com uma chama maior que a cera, queima as mãos em prece e ilumina os milhares de gotículas de suor que lhe alagam o rosto. A ternura do olhar, o suplicar perdão por ter nascido mulher e Maria Madalena! Deus onde estás? Olhai estes lábios cerrados, este brilhante espetado na narina que mais parece de uma Vénus grego-latina que de uma indiana! Olhai as pérolas nas orelhas para Vos agradar, os lagos de dor por pecar! Vê-de a pureza deste olhar! Gita Das tem 27 anos e espera um milagre, Senhor! A fome de pão e de cultura obrigou-a a penar. A Sida é um castigo maior que as suas forças podem suportar! Acudei-lhe Senhor! Onde estais? São quarenta milhões de infectados!
Esta foto ficará como símbolo do sofrimento feminino universal. Estamos no século XXI e a mulher ainda é a primeira forma de escravatura, como dizia Edgar Morin.
Gita Das a culpa não é tua é de quem te explorou. No teu epitáfio mandai escrever. Perdoai-lhes Senhor, eu fui a virgem que quiseram imolar.
Uma gaivota esvoaça e lança gritos de dor, o mar está enraivecido, são cinco horas da manhã.
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Albufeira, 17/07/02
In: Revista do Expresso, pp.10/11,  de 13 de Junho de 2002. «Sida - um combate interminável»

Alfazema

Os plátanos ensombravam o meio-dia de nuvens branco-cinza. A chuva fazia aparições esparsas e o sol sorria tímido fazendo-se prometido.
Corria o dia, mais um dia de Julho outonal em verão de espera. As águas dormiam serenas, no Letes do esquecimento, por entre os arcos da ponte. Breves gorjeios galegos enfeitavam as ruas moribundas. Era a hora das graças pelo pão concedido. Os sinos badalavam na capela de Santo António. Toda a vila repousava no odor de alfazema e do louro altivo.
Os bancos dos jardins esperavam por carícias ternas e arrumavam-se em cantos inesperados. Os pardais e as andorinhas porfiavam os zéfiros que lhes levavam as sementes apetecidas.
Um copo de branco adamado dava-nos o sabor de Ponte de Lima e Baco brincava entre nós às escondidas.
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18/07/01

domingo, 22 de abril de 2012

Maria Callas

B.
Ainda tens tempo para visitar a exposição sobre Maria Callas?
Maria Callas - a voz divina que pagou o tributo de ser única - os eleitos de Deus são aqueles que à Terra fazem vislumbrar o Céu, e, aos quais, a terra retribui com o inferno em vida!
O dom da palavra, o dom da voz ergue-se por escolhos, supera as dunas e as planícies dos desertos, sulca os oceanos, possui o Universo e vive eternamente no Olimpo.
Captar o momento é um monumento! Agradeço-te a foto do "momento" exacto da fala. Nós morreremos ela permanecerá - a voz, a palavra. 
O S. ri. É a personificação do riso. Rir é o melhor remédio, porque "a vida é um palco" já dizia Calderon.
Não te esqueças: Central Tejo/Museu da Electricidade de 12 a 21 de Setembro.
05/09/08
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Entardecer

B.
Nascem os dias repletos de sol e agora que o temos, pródigo em abundância, desejamos a sombra acolhedora e terna dos beirais onde as andorinhas fizeram os ninhos.
Neste lento entardecer, nestes melancólicos dias de verão outonal, sentamo-nos e recordamos os dias quentes das praias da Figueirinha ou da Tróia, ou da quinta de São Paulo onde, todos juntos, vivíamos, rodeados de gorgeios, o nosso pleno verão.
Saudades de outros tempos que este tempo ampliou.
Desejamos o teu regresso desejado, porque se assim não for, não viverás a plenitude e a vida é tão curta, que só vale a pena quando é plena.
As maiores felicidades deste mundo.
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02/07/01

Casa de Pedro Álvares Cabral

B.
Deslumbrada com a visita guiada a Santarém, eu, no enlevo histórico deste "livro de pedra", não podia deixar de pensar em ti. Nós que conquistamos o Brasil, vemos agora os nossos filhos conquistados por ele!
Aqui encontrei a casa de Pedro Álvares Cabral, património precioso de Portugal, mesmo junto à secular igreja da Graça, vendida ao Brasil!
Espólio acarinhado por ternas palavras cantantes, irrepreensível no modo de receber, mas que deixou de ser nossa para ser do Brasil!
Estrangeiros nos nossos monumentos alienados por amor e com amor a um "enteado" que me parece querer possuir o que de melhor tivemos como filhos!
Não te deixes vencer por Circes que entoam cantos de encantar e logo que possas volta para nós que morremos de saudades.
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Recordação da viagem com as minhas turmas do 11º ano da Escola Frei Gonçalo de Azevedo. Percurso das Viagens na Minha Terra, de Garrett; em 18/04/01.

Fim do "Sonho"?

Com o Retrato de Bocage acabei de escrever, nesta minha pequena "biblioteca", que é o meu blogue, "antigos" textos que escrevi quando andava a fazer a minha licenciatura. Claro está que fiz dezenas e dezenas de testes que me atribuíram, para além dos trabalhos, a minha nota final de curso. Também não realizei trabalhos para todas as cadeiras, mas não foram só estes, porque nos dois anos que, posteriormente, vim a fazer no Ramo Educacional, elaborei trabalhos pedagógicos, didácticos e de psicologia educacional, próprios da minha profissionalização como professora. Esses trabalhos foram, por vezes, realizados em grupo, em co-autoria, e são muito específicos, por isso, não ficaria bem transcrevê-los. Aqui só escreverei textos que foram  e são fruto do meu labor. É o fim do "Sonho"? Não. Foi o fim de uma catarse, porque como não os publiquei, apesar de estarem registados, quis torná-los públicos de forma a que mais pessoas interessadas no conhecimento e na leitura da nossa história e da nossa literatura, os pudessem conhecer.
Porque lhe chamo catarse? Porque me purifiquei emocionalmente de mágoas antigas, e fiquei com a certeza que dei o melhor de mim naqueles quatro anos do Ramo Científico. Apesar de possuir memórias infinitamente felizes desse tempo, também sofri, posso dizê-lo, uma "recruta" dura e magoada. Ou não fosse um antigo quartel o edifício onde tínhamos aulas! Tudo somado a balança pende mais para a alegria e a felicidade de me sentir realizada.
Prometo que escreverei mais textos de outros seminários e que continuarei convosco ainda por muito tempo. Nem que seja com pequenas reflexões, com textos que escrevo ao correr da pena, com cartas espontâneas, poemas, recordações... Por isso, até já.    

sábado, 21 de abril de 2012

O Retrato de Bocage (Conclusão)

CONCLUSÃO

Diante de mim tive páginas em branco. Elas me serviram de tela.Por pincel tive a caneta e por tintas coloridas as letras da minha língua. Com vinte e cinco cores trabalhei, sem esquecer os pontos, as vírgulas, a acentuação, para melhor "pintar" um retrato. O de Bocage.
Avancei para o traço. Daqui estava esbatido, dali tinha sombreado a mais; luz, precisava de luz, não só de nuvens cinzentas, mas de misturar-lhe ao azul do cenário, brancas. Quais flocos de algodão ou papéis com que se enchem as calças vazias, na urna de papelão, ou de castanho, ou pinho manso.
Agora murta, daquela rasteira que irrompe na Serra da Arrábida por entre as mimosas amarelas e o lilás do rosmaninho, ou o vermelho das papoilas, ponteadas a negro. Não exagere eu nas cores, que a vida não lhe deu! Precisei também do sol. Aquele que o aqueceu, e que lhe deu (por esparsos momentos) a ilusão de um amor eterno, possuído, nos melodiosos trinados de milhares de pássaros que ouviu. Sim, porque o seu coração possuíu quantas pautas de música há no universo. Escreveu nelas a emoção, a ilusão, a ternura, a intuição, a exaltação, a paixão, o amor, a ousadia, o temor, a solidão, mas o ódio creio que esse não pintou, porque não coube naquela mão nem na alma do sensível poeta.
A noite, como havia eu de a pintar no retrato, se para ele foi adversa, traiçoeira, caluniosa, mas também amistosa, salutar, amorosa. Tive que pensar, escolher bem os tons. Pôr os sinos a tocar, com tristes ditongos longos, a pedir um pouco de luar enamorado, se não de que lhe valeu a vida!
O pincel inscrevia a zoeira das moscas, vespas de todos os tamanhos e feitios que a vida lhe transformaram no inferno doloroso do Limoeiro. Essas mesquinhas, sequiosas de sangue nobre de poeta, e de à custa dele subirem os degraus da vida. Esbirros, zuídos que sempre estiveram pelas esquinas, pelas távolas, tabernas ou botequins, a entornar vasilhas atrás de vasilhas de fel e que daí corriam para os paços de Maniques, de fradiques e caciques, e lhe traziam por prenda um limoeiro. Em troca de versos arrojados, de sátiras traçadas e linhas cantadas por uma alma imbuída de Camões ou de Ovídio.
Prosseguir, era preciso continuar a pintar o retrato. Aqueles olhos azuis, de cinza mar, a transbordar de sonho e ilusão, que partiram para terras tão distantes e tudo observaram, para em milagre poético as suas mãos e mente transformarem em amor, cor e som pelas palavras; e regressar.
Para a pobreza e indigência que aqui viveu, para a morte, vou pintar no retrato, ruína, ruins, ravina que se mostrou inclinada, de rancores possuídos por repelentes, remelosos, roedores, ruidosos, rapinas, aves de agouro, a destruir-lhe sua cabeça formosa e seu olhar transformar em denúncia aos que - como o pintor - viram nele já olhos espantados de louco, num aneurisma a acabar.
Para me levar a concluir este retrato, contei com a ajuda do próprio poeta e dos que, como eu, se interessaram por Bocage e a sua poesia. Com todos eles aprendi algo mais, que me permitiu um traço seguro e uma melhor mistura das cores. Destas fontes um fio de água ficou para mim e permitiu este labor. Foi a ponte para o trabalho aqui expresso: o retrato de Bocage.
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Lisboa, 31 de Maio de 1993.
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BIBLIOGRAFIA

Cidade, Hernani, Bocage a Obra e o Homem, Arcádia, 4ª ed., Lx., 1980.

Coelho, Jacinto Prado, A Letra e o Leitor, 2ª ed., Morais Editores, Lx., 1977, in: «Bocage: A vocação do Obscuro»
Bocage, Poesias Inéditas, Livreiro Henrique Zeferino, Lx., 1896.

Bocage, Obras de Bocage, Lello e Irmão, Editores, Porto, 1968, "Prefácio de Teófilo Braga".

Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, Ed. Romano Torres, Lx., 1962.

Mourão-Ferreira, David, Hospital das Letras, 2ª ed. I. N. C. M., Lx., in: "O Drama de Bocage".

França, José-Augusto, O Retrato na Arte Portuguesa, Livros Horizonte, Lx., 1981

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Nota ao Leitor:
Este trabalho foi realizado para o Seminário de Literatura, no 4º ano da Faculdade, quando completei o Ramo Científico da minha Licenciatura. Os dois anos seguintes  foram de profissionalização, com a pós-graduação no Ramo Educacional, com estágio integrado.
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sexta-feira, 20 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Agora o seu pensamento, o seu coração, voltavam-se para o teatro lírico. Ia assiduamente ao São Carlos e admirou Catalini, soprano italiana e imortalizou em versos Gafforini, cantora veneziana, de fartos e ruívos cabelos. Assistiu ao despertar de Marcos de Portugal e viu as suas composições, as suas óperas emparceirar com as melhores estrangeiras. Cantadas mesmo em italiano com sucesso. Era com isso que agora vibrava o poeta. A sua popularidade era feita de sincera admiração pelo talento e virtudes que manifestava.
Escreveu para o teatro, diálogos entre figuras alegóricas - o despotismo, o vício, a liberdade e a virtude. Os actores pediam-lhe este trabalho que ficou conhecido como Elogios Dramáticos, e que eram recitados em noites de benefício no Teatro do Salitre. Bocage também escreveu duas tragédias: Catástrofe, que ficou completa, mas que se perdeu, e Eulália, quase concluída. Pensa-se que terão sido subtraídas ao espólio do poeta.
Filinto Elísio, não será indiferente ao valor poético de Bocage e escreveu-lhe muito sinceramente de França: "Lendo os teus versos, numeroso Elmano, / e o não vulgar conceito e a feliz frase, / disse entre mim: - Depõe, Filinto, a lira, já velha, já cansada, / que este mancebo vem tomar-te os louros,/...
Foi imensa a sua alegria e mostrando-a, escreveu:
"Zoilos, estremecei, rugi, mordei-vos!
Filinto, o grão cantor, presou meus versos.
(...) fadou-me o grão Filinto um vate, um nume;
Zoilos, tremei! Posteridade! És minha!
Ele sabia, sentia que sobreviria muito para além das torpes invejas, e dos invejosos que lhe danificaram a saúde, a vida. Um poeta sabe que é poeta, sabe a sua valia, mas quando outro poeta tem, a lisura de reconhecer o mérito, os louros de um mais jovem nas letras, inegável é o orgulho sentido.
A estas alegrias somar-se-iam outras tristezas. Era agora uma nova denúncia ao tribunal do Santo Ofício sobre as suas ideias e modo de vida. Acusam-no de maçon. Mas o processo acabou por ser arquivado.
O que depois surge de pior, é o diagnóstico do médico - um aneurisma. Pouco tempo teria Bocage de vida. Corria o ano de 1804, e as artérias recusavam-se a deixar correr fluentemente a seiva que alimenta de cor a vida. Sofria. "A pouca cor que tivera desaparecera, transformando-se num moreno terroso, e seus olhos claros, de um cinzento azulado, pareciam cada vez maiores, a brilharem na face cavada." (8)
Aos poucos teve que ir ficando em casa. Já não ia ao Botequim das Parras, de parras adornado, agora era o senhor José Pedro da Silva, seu proprietário, que, numa amizade ímpar, o visitava todos os fins das tardes. Recolhia e mandava imprimir os seus últimos versos; vendia-os para fazer dinheiro e fazer face às despesas com o boticário, o médico. A sua irmã ainda guardará, após a sua morte, algum deste pecúlio angariado.
O seu espírito estava agora diferente, tudo havia perdoado e até os inimigos considerava bons amigos e lhes dizia louvores. Aos poucos Bocage regressava ao bem estar, à singeleza de vida que é em tudo acreditar. Ele é novamente religioso como na infância. Recebe a visita de Maria Vicência, aquela que por promessa  a sua mãe, não aceitara casar  com ele. Trocam olhares de ternura e resignação.
Ainda mais um golpe final tinha que sofrer; foi o ter visto morrer a sua sobrinha; sentiu esta morte como um presságio. Parecia que nada havia na vida que não tivesse sofrido. Completava quarenta anos e parecia muito mais velho. "Na face ossuda, coroada de longos cabelos, quase todos brancos, apenas reluzem os olhos azuis, luminosos, lá no fundo das órbitas profundas." (9)
Morria serenamente a 21 de Dezembro de 1805 "o homem sossegado, pacato, que afinal residia no fundo daquele boémio." (10)
Morreu, mas não morreu. Temo-lo presente na sua obra. Com todos os defeitos e qualidades do homem completo que foi. Poeta acima de tudo. Venceu o tempo, ao nosso lado, ou dentro do coração.
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Notas:
(8) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp. 366.
(9) - Idem, pp.368.
(10) - Idem, pp. 370.

(continua) 

O Retrato de Bocage

Quando o seu cativeiro acabou, Bocage tinha trinta e três anos , e sentiu-se novamente só e saudoso, perdido, pois os frades Nerys haviam sido verdadeiros e desinteressados amigos. Mas algo agora o iluminava e tornava diferente. Estava mais calmo.Interrogava-se filosoficamente sobre a vida, sobre Deus. Existe ou não existe? A política deixa de o interessar. O sofrimento havia sido uma escola.
Algo vai mudar o seu rumo, mas o que de fundamental havia na sua personalidade - a necessidade de ser amado - permanecia. A morte de seu pai fá-lo regressar a Setúbal. Já nada aí lhe fala da infância e da adolescência perdidas. Tinha um irmã , Maria Francisca, de trinta anos, que agora precisava da sua ajuda. Torna-se a sua confidente. Com ela, uma filha pequenina para alimentar e educar. Bocage vai providenciar para que nada lhes falte. Era o seu enorme coração que se abria, mostrava. Tornava-se num chefe de família. Trabalhava com afinco. Traduzia, publicava, fazia versos, e novas amizades. Vivia. A alegria da sobrinha ilumina aquela casa e a irmã era para ele cuidadosa. Aquilo que buscara, era possível. Obtinha agora o sossego de que carecia todo o seu ser.
Perdera a esperança de conseguir para sua esposa Maria Margarida; depois foi com Maria Vicência Bressane Leite, que também gostava dele, e cuja mãe lhe proibiu o casamento. Segue-se a irmã desta, Ana Perpétua, que o desilude e o deixa. São as Nárcia, Armia e Anália das suas poesias. Amores impossíveis, que o faziam cantar por fim, a desilusão do casamento:
"Quanto ao negrume tanque
presumo (aqui para nós) que é a prisão desses loucos
que dizem: - Recebo a vós."
Deixara, possivelmente, de acreditar no amor, e o trabalho preenche a sua vida. Recusou a oferta de um lugar para trabalhar na Biblioteca Pública de Lisboa, fundada em 1798, porque não queria ter a sua consciência "presa" ao Estado. Era livre o seu pensar e opinião. Mas aceitou o trabalho na Tipografia Caleográfica e Literária. Aí traduziu várias obras, com o vencimento de 24.600 mil reis. 
Agora era o teatro lírico, e os amigos, que num canto do Botequim das Parras, o esperavam pela noitinha. Aí se forma "o Agulheiro dos Sábios," uma segunda Nova-Arcádia. Um cantinho em que se falava de poesia, filosofia, do teatro que ia no São Carlos, no Salitre, na Rua dos Condes.
Encontrara o equilíbrio que desde os dezasseis anos não tinha. Uma família, uma casa, amigos, trabalho. Nesta altura é-lhe pintado o retrato que o mostra "elegante, à moda da época: labita escura de bom talhe, colete assertoado, gravata enrolada em torno do pescoço, como então se usava, rematada num grande nó, de pontas curtas, calção claro, beije ou cor de pérola, meia justa à perna magra, e lustroso sapato de fivela, reluzente como prata." (7)
Mas, para escurecer estes ares benfazejos que respirava, tinha Bocage a atormentá-lo o invejoso e satírico frade J.A.Macedo. Só porque o não referiu numa introdução que escreveu a um livro por ele traduzido, a sua língua viperina logo lança chispas satíricas: "tu és vadio, és magro, és pobre, és feio/ (...) tradutor de aluguel, quem são os teus zoilos?/(...) que vulto fazes tu? Quais são os teus versos?/(...) glosar e traduzir, isto é ser vate?" E passando por cima do facto de Bocage ter mudado de vida, diz-lhe: "grita, escouceia em público e nas praças,/cercado de aguadeiros e marujos..."
Em delírio, zangado, Bocage entrou num rompante no Botequim das Parras e, é mesmo o morgado de Assentiz que ali logo lhe escreveu aquilo que lhe saía do espírito alterado por desejo de vingança:
"Pões-me de inútil, de vadio a tacha,
tu, que vadio, errante, obeso, inútil
as praças de Ulisseia à toa oprimes,..."
Era a sátira que ficaria conhecida e famosa, por "Pena de Talião". J.A. Macedo volta a atacar Bocage com setas envenenadas, mas este não torna a responder. Põe de parte o veneno.
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Nota:
(7) Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp.360.   

quinta-feira, 19 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Tinha trinta e três anos e vivera experiências em dez duplicadas. Eis que a liberdade o preocupava. Era a política que agora o extasiava. Ele suspirava também por um país diferente, no qual se pudesse ser gente de corpo inteiro. Eram ousados demais os seus versos, que vão agora para a esperança: Bonaparte. Já não é, ou é o nacionalista que em Goa cantava contra os infractores? Ou é porque quer bem ao seu país, e sofre por vê-lo na mediania, na mediocridade naufragar, vivendo num pântano como se fora um jardim florido? Oh tempo! Oh tempo! Ele era para Pina Manique um homem perigoso, que era preciso eliminar.
Vivia então em casa de um cadete seu amigo, André da Ponte do Quental (que viria a ser avô do poeta Antero de Quental), um açoreano da Ilha Terceira, que tinha ideias liberais, e muito apreciava  os versos de Bocage. Quando o poeta se sabe perseguido, refugia-se na corveta Aviso, que partia para o Brasil. Mas quem terá sido avisado foi o intendente da polícia, que logo o mandou buscar ao navio, não o deixando partir. Mandou-o prender. Eram ousados demais os seus versos. Chega o dia. Os sinos tocavam em pranto, Bocage vivia agora no Limoeiro. Em 10 de Agosto de 1797 o poeta escreveu:
"Do funesto limoeiro
já toco os trinta degraus,
por onde sobem e descem
igualmente bons e maus. (...)
Fecham-me, fico assombrado
na medonha solidão,
e, sem cama a que me encoste,
descanso os membros no chão. (...)
Há quase quarenta e três dias
que choro neste degredo.
Hei-de ser muito calado,
costumaram-me ao segredo."
Foram oitenta e nove dias que aí permaneceu às ordens do intendente, passando depois para o tribunal do Santo Ofício. São cartas escritas a todos os seus amigos e conhecidos a pedir para que o tirem dali. Ao Marquês de Ponte de Lima diz que nada fez que mereça tal castigo.
A sua vida era agora feita de silêncio, de sombras e também de sons longínquos das varinas, dos homens e das crianças que passavam a caminho da sua lida. Era um traço que na parede fazia dia a dia. Como único amigo, o carcereiro. Escrevia. Ouvia o silêncio. Fazia-se a ele, como companheiro amigo. Não mais voltaria a ser o mesmo. Tinha agora a solidão sentida, conseguido obter, aquilo que os botequins o não haviam. Dedica-se a ler. Conseguem que seja admitido no mosteiro de S. Bento. Aí ficou registado no Dietário: no "ano de 1798, mês de Fevereiro, aos dezassete do presente mês, foi mandado para este mosteiro pelo tribunal do Santo Ofício o célebre poeta Manuel Maria Barbosa du Bocage, bem conhecido nesta Côrte, pelas suas poesias, e não menos pela sua instrução.Tinha sido preso pela Intendência, e ele reclamara para o Santo Ofício, onde esteve até ser mandado para este mosteiro..." (6) Pouco mais de um mês ali esteve. Pina Manique consegue transferí-lo para o hospício de Nossa Senhora das Necessidades. Ali teve uma reclusão diferente. Havia uma biblioteca que podia consultar, e livros para estudar. Leu e traduziu episódios de Farsália, das Metamorfoses, da Jerusalém Libertada, da Henrídia e da Columbíada. Fez amizades com os frades de S. Filipe de Nery, que o estimavam e respeitavam. São o bálsamo para aquele corpo e alma doentes. Havia um frade muito inteligente, Frei J. Foios, que Bocage considerava seu grande amigo e com quem conversava e se confessava.
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Nota:
(6) Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época. pp.320. 

O Retrato de Bocage

"A sua figura,  um pouco extravagante, tornou-se conhecida. Quando ele passava, atirando para a frente as tíbias magras, mal resguardadas nas meias de algodão ordinárias e largueironas, calções puídos e apertados sob o joelho, pés a dançar dentro de enormes sapatos, que não eram dele, cache-nez cingido ao pescoço esgroveado, casaco suspenso dos ombros como de um cabide, chapéu às três pancadas, pupila azul a rebrilhar na ossuda e comprida face morena, havia sempre alguém que o reconhecia e murmurava: - ali vai Bocage..."(5)
Este era o seu retrato por aquele tempo, em que os jovens rapazes e raparigas, o desafiavam, e ele respondia com quadras maliciosas, obscenas, até raiar a impossibilidade de tradução. Mas ele afrontava, e dizia aquilo que não queriam, ou queriam, ouvir. Palavrões, dichotes improvisados na rua ou nos botequins, e então gritava orgulhoso: - "Isto é meu! Isto não morre!"
Corriam tempos e ventos de mudança e a sua pena isso reflecte. Maria Antonieta é guilhotinada a 16 de Outubro. A revolução Francesa é um facto. Os ideais de liberdade infiltravam-se por todas as frinchas, como fina areia de duna que se esvai. Espalhavam-se também por Portugal e a isso não era alheio Bocage. O progresso é por ele cantado, assim como os novos ideais, e Pina Manique começa a tê-lo sob observação. Era a sua ousadia que fazia recear àquele que detinha sobre a sociedade quase plenos poderes. A Rainha Dª Maria I os havia dado a esse intendente da polícia, que tudo controlava. Certamente que Bocage, tecendo louvores à liberdade, quando ainda reinava um espírito acanhado e absolutista, iria ser condenado.
Fora um tempo ameno, vivido durante os três anos em que a Nova Arcádia e os seus amigos o mantiveram ocupado. Agora surgiam amores para ocupar o seu ócio. Era Marília, que naquele Agosto de 1794 despertava novas âncias. Qual capitão Vicente Lunardi que, perante o olhar extasiado da multidão, subia no seu aerostato, Também Bocage descrevia essa subida e a sua, umas e outras que o empolgavam, para as delícias do fogo ardente de Eros. Algo havia que traçava contrário a si um destino adverso. Já junto ao amor desesperado, correspondido, vinha Thanatos e lhe levava Marília, seguida de Marfida. Seu canto era triste, dolente, de alma pisada, doente. Somava vinte e nove anos, mas sua mente, seu ser, era o de um homem maduro que na vida não havia conseguido o primordial - ser amado. Por isso prosseguia, e das cinzas tentava sempre fazer renascer uma nova Fenix para si. Seu coração era uma mina de ternura que sobrevivia num meio de intriga e calúnia, de vinganças e rancores. As suas Musas tudo suplantavam, e, por em si conservar esse dom de pureza e ternura, continuava em cada uma a amar a antiga, como se fio de água fresca da fonte se tratasse e lhe matasse a sede. Era Olina, que veraneia com ele em Pedrouços, mas logo o esquece. Vem Nise, que se rende ao seu amor, mas pela foice é ceifada e Bocage choroso entoa rezas cantando: 
"Já no calado monumento escuro
em cinzas se desfaz teu corpo brando
e pude eu ver, ó Nise, o doce, o puro
lume dos olhos teus ir-se apagando!..."  
Era de claridade que precisava aquela obscura, interior e profunda alma sofrida. Logo buscava fáceis mulheres para lhe desentediar os seus sentidos. É Feliza ou a de Sileu, para que não se confundam. Também surge Armânia que faz renascer os verdes campos ribatejanos, o rio Tejo, o céu azul. Musas suas são; vivem elas para nós na sua poesia. Era sua índole perseguir em busca de um amor sonhado, ideal. Agora é Jónia ou Elmira comparável às rosas, ou Arselina, Crinaura, Lília, Filena, Ulânia, Ritália, Urselina, Elfira, uma ou outra, que nas cavernas da himoptise também é enterrada. Elas são as "mil deidades (digo, mil moças) num só momento"... por ele amadas.
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(5) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp.230. 

(continua)

quarta-feira, 18 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Ansiava abraçar o seu pai. Mas a surpresa o aguardava. É recebido com frieza, e o seu pai não aceita as desculpas de uma deserção que em nada dignificava o bom nome de família. Encontrou o irmão, Gil Francisco,  marido de Gertrudes, aquela que havia sido o seu primeiro amor. As duas irmãs, também já casadas, mantêm-se distantes e a sua tremenda saudade é abafada na solidão. O mundo ruía para esta frágil criatura. Sentiu-se mais só que nunca. Parecia que a esperança se evolara também da caixa de Pandora e, para si, estava eternamente perdida. Aquele amor pelo qual fora para a Índia e quase morria, e que nunca lhe saíra do pensamento, era agora pertença do seu irmão. Restava-lhe a sombra do seu pobre coração. Ficava-lhe a única paixão que nunca o iria trair, a sua única amiga: - a poesia. Comprovava-se que triste era o seu destino.
Parte desiludido para Lisboa. A família morria para si. Era um abalo sísmico, moral e físico; tudo fora demasiado cruel. Faltava-lhe a vontade própria de reagir ao cataclismo.
Refugia-se em Óbidos, nos meses de Primavera e Verão. Aí, junto de amigos, aos poucos se irá reabilitar. Era a "estação das flores", aquela que a todos rejuvenesce. Do mais profundo dos desesperos, vê a luz ao fundo do túnel - uma nova paixão. Dir-se-ia que não podia viver sem amar. Necessitava de amor para criar, para viver. Surge Ismene, Inália, Tirsea, Filis, Anália. Todas ama e todas perde. Ficam os versos. Anália será uma das suas maiores paixões, correspondidas, mas a negra morte fazia a sua ceifa. Era a tuberculose, uma praga maldita que lhe levará aquelas que também a ele queriam. Má sorte sua. Sôfrego no amor, ciúmes loucos o faziam sofrer. A eles se juntava o inferno da esfíngica caveira.Chora, quando chegado o Outono, Anália parte. Era drama a sua ânsia de buscar o amor. Toda a vida o procurou e este lhe fugiu. Quer por frágeis enredos, quer pela morte, sua inimiga. Faltou-lhe uma companheira compreensiva e fiel. A riqueza do seu temperamento fogoso e apaixonado nunca era apreciada. Por isso perdia o rumo e precisava de ter tido um braço condutor que à falta de vontade própria, lhe emprestasse o amor sincero, lhe mostrasse o calor da luz do sol.
Deixou-se arrastar pela libertinagem, dormia onde encontrava abrigo. Nos conventos, onde os frades amigos o recolhiam, nos albergues para mendigos; comia o caldo dos pobres. Durante o dia, no Parra ou no Nicola, improvisava e com os seus versos sempre arranjava quem lhe desse a subsistência. Vivia misturado com a devassidão, plebeus e fidalgos desejosos de se divertir. Tinha vinte e seis anos e era um autêntico boémio lisboeta. Noites de Bairro Alto, vielas tortuosas, meretrizes, versos satíricos, libidinosos, eróticos, ao desafio.
Apesar de não gostar de frades, fez-se amigo de um frade de talento, José Agostinho de Macedo. Acreditou nele com "ingénua confiança de autêntico e genial poeta." Mais tarde virá a ser seu inimigo e, um contra o outro, escreverão fel e vinagre. Só já perto da sua morte se irão reconciliar.
Em 1791 foi impresso o seu livro de Rimas, que lhe rende algum dinheiro e sucesso. A Nova Arcádia havia tempos que reunia gente apreciadora de poesia e de arte em geral. Eram às quarta-feiras as reuniões, conhecidas como as de "Lereno". Aí Bocage será Elmano Sadino e irá beneficiar do ambiente.Talvez as suas Rimas tivessem sido publicadas por influência dessa frequência. Ali tomavam chá, uma lauta ou frugal refeição. O conde de Pombeiro era o amável anfitrião que no seu palácio reunia estas pessoas educadas pelo gosto, e todos amantes de poesia. Contudo, depressa esse seu prazer se torna em infortúnio, pois surge um soneto anónimo que muito afecta o seu sentido de poeta. Seria J.A. Macedo? Não se sabe ao certo, mas Bocage inadvertidamente ataca a Academia, e a figura do seu presidente, o brasileiro Caldas Barbosa. Atingia a sua cor de mulato ofensivamente. O padre não lhe respondeu, mas até à morte nunca mais lhe falou. Tinham-se acabado as quarta-feiras de Lereno. Para ele e para os seus amigos. Já não ouvia ler Goethe ou Schiller, ou, mais vezes Voltaire, Diderot, Rousseau - os enciclopedistas.
Todo este ocorrido cai nas bocas do mundo. A fama, ligeira corre os botequins. Bocage torna-se numa voz satírica, apreciada do povo, mas nunca do povo, era poeta, era fidalgo.      

terça-feira, 17 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Era um ambiente de mediocridade no qual dificilmente o seu orgulho de poeta, viria a ser reconhecido. Espraia então a sua dor, escrevendo para a amada Gertrudes que no reino ficara, passeando junto ao Tejo em Sacavem.
Mas, para tormento seu, doença física e moral, Gertrudes depressa esquece as promessas, e parte para um novo amor. Ele receava e escrevia:
"Eu deliro, Gertrúria, eu desespero
No inferno de suspeitas e temores."
E estavam certas as suas suspeitas, Bocage recebeu a notícia que confirmava a perda da sua amada. A juntar a esse desgosto, a sua não adaptação às terras e gentes do Oriente. Enfurecia-se, então, e era aos goeses que satirizava e nada perdoava. Considerava-os propensos à "senhoria", vaidosos e repletos de defeitos. Seria, talvez, a sua inadaptação, e o desdém de se ver preterido, que quase o levara à loucura, ao suicídio. Fora para ganhar Gertrudes e não perdê-la que, cheio de coragem, empreendera a viagem. Perdeu o ano lectivo, adoeceu de amor. Seria para sempre um estilete no seu coração magoado. A memória da mãe o terá salvo.
O desembargador da Relação tornou-se seu amigo. Também fazia versos, compreendia Bocage.
A esse tempo vive-se a "Conjuração dos Pintos," (à qual esteve ligado, como organizador, o Padre José Custódio de Faria, aquele que Alexandre Dumas viria a inscrever no seu romance O Conde de Monte Cristo). Bocage reage com um vivo sentir nacionalista. Era território de Portugal que estava em perigo e o patriotismo do jovem manifesta-se em diversas poesias. Mostra um duro sentir, perante o castigo a ministrar aos processados por alta traição. Escreve:
"Eis que pérfida mão cabal ruína
uma alma infame, um bárbaro inimigo
que amaldiçoa o jugo Lusitano."
Era o sentir dos antigos feitos, que em Bocage se reviviam. Ele considerava o seu fado idêntico ao de Camões. Também ele vai entrar em combate e mais uma vez abandonou os estudos. Dessa batalha naval escreve o poema:
"Topamos há três dias o inimigo
na altura de Chaul; travamos guerra
sentia do português, o esforço antigo..."
Este seria o seu corolário de glória na Índia, pois os seus amigos moveram influências para que fosse promovido. Em Fevereiro de 1789 era colocado em Damão com o posto de tenente de infantaria. Partiu em Março na fragata Santa Ana, e chegou a 6 de Abril. No mesmo dia em que chegou de viagem tomou posse do seu lugar. Logo escreve esmorecido: "Damão era a morte (...) o quartel um presídio".
Acabou por não resistir ao apelo de fugir para longe, com um companheiro aliciador, do quebrar das grilhetas da disciplina militar. O seu temperamento ardente, sequioso de amor e de ternura, precisava de viver aventuras. Parecia amar o amor pelo amor, e no seu coração os sentimentos nada tinham de moderação. Surgem na sua poesia muitos amores reais ou ideais: Nereida, Lenia, ou Ana de Monteigui, com a qual se empolgou quando a conheceu. Natural de Damão, filha de uma mestiça e de um francês, era Monteigui uma mulher que pertencia a quem lhe podia ofertar luxo e dinheiro. Talvez tenha admirado a poesia de Bocage e por ele se enterneceu. O poeta viveu uma paixão intensa, que o levou a realçar comportamentos menos dignos, e a rebaixar a virtude . Mas foi sol de pouca dura, já que ela tinha por amante um hercúleo negro do qual Bocage sofreu amargos ciúmes. Escreve terríveis sátiras obscenas, pelo repúdio que sofreu, em contraste com as que inicialmente lhe dedicou.
Parte desgostoso de Surrate, com destino a Macau, onde chega muito pobre em Julho de 1789. Andara à deriva por mares de bravias ondas, e sentimentos alteados, sentia-se o mais mísero dos mortais e tinha que mendigar para comer.
Imagine-se o que sofreu aquele orgulho, que seria em si, toda a vida o esteio! Egocentrista, canta louvores ao governador de Macau por ter sido bem acolhido. Um movimento de ternura e simpatia por parte dos portugueses de maior destaque gera-se em seu redor e Bocage que havia andado durante quase três meses semi-nu, andrajoso e com fome, sente-se reconhecido. As pessoas pareciam-lhe agora bondosas e inteligentes, porque o admiravam, lhe davam abrigo e tratavam do seu regresso a Portugal.
Sentia-se diferente, e como tal gostava de ser tratado.
Corria, então, o ano de 1790, quando regressou a Portugal, e imediatamente se encaminhou para Setúbal. 

segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Nestes três anos que residiu em Lisboa antes de partir para a Índia, nunca deixou de ser o poeta, e aqui compôs muitos dos seus poemas. Entregava então a sua mocidade aos divertimentos descontraídos, pelos outeiros, recitais comparáveis aos dos palácios ou da corte, e que se formavam nos pátios de certos conventos. Mas, apesar de a sua atenção se virar apaixonadamente para estes encontros, em que havia um maior público feminino que vivamente aplaudia, o poeta não descurava o estudo das matérias do curso que lhe ocupou três anos lectivos. Era, porém, um amoroso por temperamento e a frequência de alguns outeiros permitiram-lhe aperfeiçoar a sua fácil capacidade de improvisar, e que foi uma das suas mais notáveis facetas de génio. Mas aliada a essa qualidade tinha a manifesta atitude de pensar alto. Ou seja dizia abertamente que era contra os hipócritas e os frades. Só gostava deles no altar. Já em relação às freiras terá sempre uma atitude gentil, como o era com as outras mulheres a quem tudo perdoava. Apesar da sua ascendência francesa e holandesa por parte da mãe, era um homem bem português, com todas as qualidades e defeitos. Por isso, fogoso, viveu sempre em busca do amor, numa obsessão da aventura.
Nessa busca, aconteceu-lhe apaixonar-se por Gertrudes, irmã de um colega da Academia. Entregou-se com toda a imaginação, sonho e paixão àquele primeiro amor. Era pureza, era a candura, de uma juventude a desabrochar. E foram uns amores felizes, correspondidos, que na luz dos seus olhos azuis, e no som mavioso dos seus versos, com plena harmonia musical se completavam.
Digamos que o amor lhe transformou a vida. Ele era agora um aluno mais aplicado para vir a obter uma boa situação. Desejava casar com a mulher da sua vida. Para isso precisava de ganhar bem a vida. Pensou em ir para a Índia. Tudo seria mais fácil, para vir a ter uma situação brilhante da qual viesse a orgulhar-se. Decidido, abandona a Academia em 1786 e começam os preparativos para partir. Apesar das dificuldades, seu pai obteve o requerimento diferido. Era 14 de Abril de 1786 quando partiu para a viajem que iria determinar a sua vida.
Escreve então um poema de de saudade, da terra, da família, dos amigos, que é um dos mais profundamente sentidos, e onde se vê o quanto ambicionava um futuro glorioso. Desejava aquilo a que tinha direito como vate de pergaminhos, intelectual aristocrata, fidalgo por mérito.William Beckeford, quando o conheceu em sua casa, descreveu o poeta como: um moço pálido, franzino e de aspecto singular, o mais estravagante e talvez o mais original dos poetas que Deus tem criado. E mais escreveu a seu propósito:
Aconteceu estar ele numa dessas excêntricas e exaltadas disposições de espírito, que, como o sol no rigor de inverno, aparecem quando menos se esperam. Mil agudos conceitos, mil alegres e estouvados repentes, mil dardos satíricos saíam da sua boca, e nós estávamos em convulsões de riso; mas, quando ele começou a recitar algumas das suas composições, em que a grande profundidade do pensamento se alia aos mais patéticos lances, senti-me comovido e agitado deste estranho e volúvel carácter, do qual se pode dizer que possui o condão mágico com que, segundo lhe apraz, ora nos anima ora nos petrifica! (3) Tal foi a profunda impressão que Bocage causou em Lord Beckeford.
Este era o seu perfil, quando decide pôr o amor, e por isso a Índia, em primeiro lugar. Era um grande poeta a desabrochar.
Finalmente a partida. Fazem uma paragem no Rio de Janeiro e, daí, guardou Bocage a melhor recordação. Foi recebido pela alta sociedade, e muito acarinhado. O luxo e a ostentação do palácio do governador, irá contrastar com todo o caudal de misérias que conhecerá na Índia. Dali já não lhe apetece partir, bom seria ficar. Porém, há o dever a cumprir.
Ao dobrar o Cabo da Boa Esperança, três ou quatro meses após ter partido, sente-se inspirado por Camões e escreve um poema sobre o decorrer da viagem. A 2 de Setembro de 1786 chegam à ilha de Moçambique e a 29 de Outubro desembarca em Goa. A relação dos passageiros do Estado regista o seu nome e idade - 21 anos. Em nota à margem lê-se: "Despachado em Guarda Marinha para o Estado da Índia, por decreto 4/2 do presente ano, registado no dito livro (Mercês do Ultramar), fl. 5".  (4)
Assim é "despachado" aquele que logo se sentiu degredado e que escreve, exprimindo da poética alma a sua desilusão:
"A próspera derrota assim prossigo
Até vejo e piso a sepultura
Dos tristes que não têm na pátria abrigo."
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Notas:
(3), (4) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp.88 e 93.
(continua)
     

domingo, 15 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Manuel Maria Barbosa Hedois du Bocage.
Nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765.
Filho de José Luís Soares de Barbosa, "bacharel em Cânones, antigo juiz de fora de Castanheira e de Povos, Ouvidor em Beja, e Advogado com banca montada em Setúbal."
Era sua mãe: D. Mariana Joaquina Xavier Lestof du Bocage, dona de casa e sua primeira educadora.
Quarto filho, e segundo varão, teve cinco irmãos.
Ficou solteiro, e não teve filhos.
Faleceu a 21 de Dezembro de 1805 em Lisboa.
Foi em Setúbal que Bocage passou os seus primeiros anos de infância e adolescência, junto ao rio Sado, de sereno e poético porte, reflectindo nas suas águas o azul do céu. Esta cidade tinha no seu tempo, e isso mantém até hoje, uma tradicional atmosfera cultural, que lhe havia ficado dos históricos tempos das descobertas.
Aliado a esse sentir do meio circundante, estava o ambiente de sua casa paterna, onde se cultivava o gosto pela poesia. Seu pai misturava aos livros de leis, os dos versos; e ele próprio versejava com gosto. Havia também tradições poéticas por parte de uma tia francesa, da família de sua mãe, de quem ouvia falar com orgulho.
Bocage foi ensinado a ler e a escrever por sua mãe, e o pai ensinou-lhe a falar e a escrever suficientemente o francês. Junto das suas irmãs começou a declamar os seus poemas, para logo ser admirado como um prodígio.
Em 1775, apenas com dez anos, perde a sua mãe. O seu sensível coração dificilmente se recuperará deste desgosto.
Seu pai, após o falecimento da mãe, faz com que seja admitido nas aulas régias do padre espanhol Don João de Medina. Aí aprendeu a traduzir latim com perfeição e se apaixonou pelas letras. Começava aí o seu espírito a ser moldado pelas humanidades clássicas. Era então um jovem tímido, habituado a viver entre as suas irmãs. Viu por esta altura partir o irmão para Coimbra a fim de estudar direito, como seu pai. Resolve que o seu destino irá ser a vida militar, como era tradição da família. Seu avô materno, Gil le Doux du Bocage havia sido vice-almirante na armada portuguesa. Bocage quer seguir esse caminho. Tornar-se soldado e poeta, tal como os antepassados lusos, e o seu poeta Camões, herói predilecto. Parte de casa para o Regimento de Infantaria de Setúbal. Era um soldado voluntário e teria uns dezasseis anos. Ficou com o número 86, e pertencia à 6ª companhia. Foi no dia 22 de Setembro do ano de 1781, e nos seus registos de matrícula consta que: "tinha cabelos castanhos, olhos pardos e altura de cinco pés e quatro polegadas." Como cada pé medisse trinta centímetros, teria cerca de 1,66/7 m de altura. "Os cabelos que, na infância, seriam louros, tendiam a escurecer. Os seus olhos de um azul-cinzento, e as suas pupilas grandes e luminosas, irradiavam por todo o rosto moreno, pálido e oblongo, em que avultava o grande nariz, e onde a claridade espiritual" (1) era patente. "Boca breve, mas de lábios espessos, bem recortados, a denunciarem sensualidade, a face quase desprovida de barba completavam este retrato juvenil. Mais baixo que alto, muito magro, marchando a passo largo e movimentos desajeitados." (2)
Tinha, então, dezoito anos, quando pediu licença para vir a casa. Com o pai iria resolver ingressar na Academia dos Guardas Marinhas, fundada por decreto de 14 de Agosto de 1782. Estava decidido a seguir a carreira da marinha como o avô que se havia gloriado na batalha de Matapan. A sua imaginação fértil sonhava com feitos gloriosos também para si.Vibrava de aspirações, anseios e sonhos. Mas, a sua mentalidade era clássica, quer pela literatura, quer por influência paterna, e a sua vocação poética moldara-se na atmosfera novo-arcade da época. Tinha agora que estudar trigonometria, cálculo, mecânica e náutica. Matérias que lhe eram difíceis, mas que seguia com gosto; e destes estudos científicos falou nos seus versos. Eram conhecimentos náuticos que faziam dele um bom marinheiro. "Diligente na manobra, dos melhores a deitar o prumo."
Se era ou não um bom aluno não sabemos, mas o que é certo é que à carreira militar irá sobrepor a sua predilecção pela poesia. Esse seu talento iria revelar-se entre os companheiros da Academia, e os aplausos não terão fim. Bocage era muito sensível a estes elogios. Todos juntos começaram a frequentar os botequins, dessa Lisboa que os fascina. Aí se cria o ambiente para improvisar as suas sátiras, e a sua escrita reflecte essa vivência. Causa assombro com as suas críticas irónicas, caricaturas sociais, epigramas espirituosos. Tornava-se popular e da Academia para os botequins, afirmava-se em fama pelo País.
No Martinho da Arcada, no Marcos Filipe Campodonico, no Casaca, Neutral, ou no Nicola e no Parra, "cafés" do Rossio, entretém Bocage o seu tempo em tertúlias literárias da época.
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Notas:
(1),(2) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, Ed. Romano Torres, Lx., 1962, pp.28,29,30. 

sábado, 14 de abril de 2012

O RETRATO DE BOCAGE

INTRODUÇÃO

José Augusto França diz-nos que no seu alvorecer, o retrato assume, em Portugal, um poder criativo ímpar, propondo, uma pintura votiva ou comemorativa, entre o sagrado e o laico, e, com magistrais tratamentos decorativos (...) e, um realismo psicológico, que é também, e necessariamente, um realismo social.. (1)
De facto, quando pensamos, falamos, ou observamos um retrato, a imagem que temos de imediato é a de uma moldura que encerra nos seus contornos, não só a figura do retratado, mas de todo um décor, um olhar, um estar. Por isso o retrato é um misto de falsificação e verdade. Aquilo que vemos é e não é. Como que traduz a impossibilidade de retratar. O mesmo se passará com a escrita. O que se apresenta é "um poder criativo", com "tratamentos decorativos" num realismo "psicológico e social", por isso, talvez, o ser e o não ser. Difícil é captar o ser.
Sabemos que o retrato no século XVIII é já fragmentado, tem qualidades e defeitos expressos. E a propósito disso diz-nos o mesmo autor que nos inícios de oitocentos (1805), Henrique José da Silva, retrata Bocage, gravado por Bartolozzi que lhe alterou a expressão de certa loucura, imprimindo-lhe o ar doloroso e amaneirado que o tornou famoso. (2) Logo, aquilo que nós conhecemos de Bocage não é Bocage. Ele é invenção. Primeiro Henrique José da Silva vê nele, e retrata, um certo ar de loucura, por sua vez Bartolozzi grava o "ar doloroso e amaneirado" que ficou para a posteridade.
Em 1805 o Poeta estava prestes a falecer, seria aquela a tradução do seu rosto, do seu espírito? É original ou cópia? O pintor deixou-nos aquilo que viu ou quis ver em Bocage, não, possivelmente, a realidade. Também esta palavra é embaraçosa porque não sabemos onde começa e acaba a realidade. Fica-nos a ideia de retrato, a ideia de real ou imaginário.
Parto para este trabalho consciente que é impossível retratar Bocage. Mesmo que eu o tivesse conhecido ia escrever sobre ele, sempre numa perspectiva "decorativa". Os meus olhos velo-iam com amor, respeito, veneração. Não seria por isso a minha escrita objectiva, mas subjectiva. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa, e por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra. Sombra disforme no chão do seu entendimento. (3)
Por isso, o que eu vou dar é uma aproximação, já que se me revela difícil alcançar o ser. Esse ser será reinventado por mim e retratado principalmente pela objectiva dos autores que consultei, e de que dou conta em bibliografia.
Tentarei interrelacionar no meu trabalho a prosopografia e a etopeia, pois penso que, tal como dizia Fontanier só na união das duas se obterá o retrato. Na descrição, incluirei a cronografia e a topografia que se me assemelhar necessária à sua integração; assim como a expolição, para melhor exprimir o mesmo pensamento, tornando-o mais sensível ou mais interessante.
Estabelecerei o paralelo entre o pensar de Bocage juvenil e o de adulto assim como da sua figura. Em traços largos darei o quadro dos acontecimentos do tempo e espaço em que viveu.
Digamos que serão todas estas figuras de retórica que, confluindo nos conduzirão ao "décor" desse "realismo psicológico e social" que foi Bocage.
___________________________________
Notas.
(1), (2) - França, José Augusto, O RETRATO na Arte Portuguesa, Livros Horizonte, Col. Estudos de Arte, Lx., 1981, pp.20 e 53.
(3) - Pessoa, Fernando, Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Ática, Lx, 1982.    

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Elegia a Inês de Castro

No centro do palco reflexos de luzes dão a ideia de labaredas, línguas de fogo. Ao fundo, e contornando a "fogueira", efeitos de fumo branco, cinza, que contrasta com as cores das chamas.
Eis que surge Inês. Não se lhe notam sinais de vir do fundo do inferno. É linda! Possui aquela beleza que só é dada ao rosto por um coração cheio de perdão, de amor e de ternura.
Um narrador (Garcia de Resende), vestido à época, antecipa-se e fala como se estivesse nos fins do século XX:

"Senhoras", se algum rei e senhor
Vos amar e jurar fidelidade
se aceitardes retribuir e acreditar
eu vos quero prevenir
a paga que tereis desse amor
para que senhoras, saibais
o que deveis fazer.
Vêde o que aconteceu a esta senhora
Ela vos dará conhecimento,
se a quiserdes ouvir contar.

Inês avança e num longo monólogo fala para o público, entre a penumbra e a luz. E interroga-o:

"Qual será o coração" que sem piedade
e com grande crueldade,
dá a morte sem razão?
Era eu "triste" inocente.

Meu único pecado foi amar e dedicar lealdade
ao príncipe meu senhor.
Quisera o meu destino que por amor
fosse elevada à mais alta condição.

Primeira dama de meu príncipe.
Mas de tão alto subir
houve quem o não permitisse
e o mais baixo me fez cair.
Antes não tivesse conhecido tal ardor,
pai, filhos, hoje por mim não chorariam.

Um arrebatado e puro amor nos uniu
"conheceu-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele",
perdeu-me, também o perdi.

Meu amor era tão grande
que lhe dei "minha liberdade"
e nele totalmente acreditei
não me importando a "perda da fama"
sendo eu uma formosa mulher.
Porém, meu senhor comigo não podia casar.
D. Afonso "aconselhado" viu-se forçado
a ter que me mandar matar.

Assim vos conto, que estando eu sossegada,
vivendo como uma princesa "muito honrada"
e de tudo rodeada
por meu senhor muito amada, 
vi chegar cavaleiros pelos campos do Mondego.
Coimbra do meu enlevo
iria presenciar a dor de meu coração.
Comecei a entristecer
e para mim própria falei:
ao que virão estes homens?

Soube então que era el-Rei,
pai de meu amado D. Pedro.
Meu coração estremeceu e perdi logo a voz.
Pressentia que algo de ruim iria acontecer.

Logo o Rei se apeou
e prontamente "saí à porta da sala" para o receber.
Aí se iniciaram minhas lágrimas
Que as não pude conter,
pois sabia, meu coração mo dizia
o que vinham ali fazer. 
Quinta das lágrimas, assim hoje lhe chamais
àquela que fora a dos risos.
Aí se iniciou. Caíam formando um rio.

Meus filhos cheguei ao redor de mim
e com grande humildade e cortesia
num choro muito sentido, implorei:
-"Havei, senhor, desta triste piedade!"

Porque matar uma indefesa mulher?
Isso não é acção de elevado coração.
"Quanto mais a mim" que me culpam sem razão,
e mãe de vossos netos sou.
Ei-los na vossa presença, "têm tão pouca idade",
que irá ser o seu destino se sem mãe forem criados,
"morrerão desamparados!"
E depois, senhor, vós sois pai,
vêde que aflição ireis dar a vosso filho.
"Não lhe deis tanta tristeza."

Sabeis o quanto ele me ama
e tanto que me quer bem.
Se eu morrer irá sofrer grande dor.
E qual foi o meu pecado, senhor?
Se algum cometi, seria justo morrer.
"Mas, pois eu nunca errei", por isso se morro,
ireis quebrar vosso ideal de justiça!
"Não me deis tão triste fim,
pois que nunca fiz maldade!"

Vendo el-Rei o quanto eu era sincera,
que nunca houvera traição,
teve de mim compaixão.
Era a mais pura verdade aquele amor tão sentido
que por seu filho tivera.
Como poderia ser considerado desobediência?
Eram leis do coração.
"Quando se disto lembrou foi-se pela porta fora.
Ele próprio já chorava"
como Rei mui piedoso, mui cristão e dedicado.

Mas um dos cavaleiros que consigo trazia,
vendo que el-Rei quebrantava,
foi atrás dele e disse-lhe:
- "Senhor, vossa piedade é digna de repreender"...
"mudaram vossa vontade as lágrimas d'uma mulher?
Se vós não a matais
não sereis nunca temido."
Pensai na querela que com vosso filho tereis,
pois por causa dela ele não quer casar
e isso nos irá dar "muita guerra com Castela."

Morra ela, para evitar muitas mortes
e teremos "paz por duzentos anos".
Vosso filho vos dará netos
de um casamento abençoado,
fora do pecado, 
e mesmo que hoje fique revoltado, 
"amanhã esquecerá".

Tudo isto o Rei ouviu de seus "leais conselheiros"
e ficou sem saber aquilo "que havia de fazer."
Porém, certa estou e vos digo:
ele "desejava dar-me a vida"
sentia um pesar imenso ao ver
que a morte eu não merecia.
Porque lhe teria o destino "feito tal partida?"

Afinal seria sobre ele
que recairia "toda esta culpa,"
que tanto lhe apertava o coração.
Disse então:
- Não vejo porque esta coitada "deva morrer."
Daí lavo as minhas mãos, 
tal como Pilatos fez com Jesus.
"Se o vós quereis fazer, 
fazei-o sem me dizer,
que eu nisso não mando nada."

E assim chegou ao fim
a intervenção do real senhor.
Mas não a dos seus "leais" vassalos,
que quando o viram afastar, sobre mim se viraram.
Eu vos conto espectadores
quão grande foi a tragédia
de um amor não consentido.

"Com as espadas na mão"
me atravessaram o coração,
a confissão me tolheram:
"Este é o galardão"
que meus amores me deram.

Após vos haver contado, eis que regresso ao "fogo" eterno daqueles que ousaram amar e quebrar as leis impostas pelos homens, não por Deus, que o não consentiria. Que vos sirva, senhoras,  esta lição; vivei comigo esta catarse.
Ficai com ela e estudai Trovas de Garcia de Resende, feitas em elegia ao amor de D. Pedro e D. Inês de Castro, que constam do Cancioneiro Geral,  o I de Portugal.

Fim
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Notas:
Estas trovas contam 219 versos que se distribuem da seguinte maneira: uma glosa de dez versos em que o narrador introduz a fala de D. Inês, dezoito glosas de dez versos, uma de nove, outra de sete, duas de três versos, uma de quatro e outra de seis versos. A seguir à palavra fim, há uma glosa que remata, com dez versos.
"Contrariamente a Camões, que só no fim explica a sua história, Garcia de Resende, de uma forma moderna, que ainda hoje se usa, põe D. Inês a reflectir sobre as suas qualidades, e dá logo no início o desfecho da história." (1)

[(1)- Notas das aulas]
  
Lisboa, Junho de 1991









Elegia a Inês de Castro - Preâmbulo

A este período de tempo, lírico de raiz, sucede um tempo em que Reis e príncipes (os prosadores da Casa de Avis) se ocupam com uma escrita mais prosaica, prática e didáctica, de acordo com uma nova época, que se anunciava. Eram as descobertas.
Contudo, à semelhança do que se fazia nas côrtes europeias, D. Afonso V organizava os serões no Paço e reflorescia novamente uma poesia palaciana e aristocrática. Os trovadores declamavam agora em português e castelhano. Garcia de Resende, que viveu no tempo de D. João II e D. Manuel I, e assistiu à emoção das descobertas da Índia, do Brasil e da Terra Nova, meteu ombros à recolha de "Cousas de folgor e gentilizas" para "preparar o gosto literário" que iria receber a epopeia. Também essa de raiz lírica. "Entre nós a poesia lírica precede tudo e está na raiz de tudo". Inscreviam-se os séculos XIV e XV que, apesar de líricos, não deixavam de nos dar  "as primeiras impressões da crise que se viveu". Encontramo-la entre as mais de um milhar de composições e mais ou menos trezentos autores.Sátiras que representam a presunção, a ignorância das boas maneiras, as "desgraças" da côrte, as mulheres mal casadas, velhas que querem parecer jovens, etc. Praticava-se a ironia e a ambiguidade da linguagem.
Este Cancioneiro vive assim a dualidade na unidade. Por um lado, a Idade Média, poética e moralizadora; por outro, o Renascimento, influenciado por Dante e Petrarca, pelo regresso aos clássicos, pelos descobrimentos. Mas esse regresso não impede a existência destas ironias e sátiras, que se revestem já, poderá dizer-se, de características maneiristas e barrocas, quer na forma, quer no conteúdo, porque a visão do mundo era diversa. Uns lamentavam o tempo passado e poetavam sobre a moral, a religião, o louvor histórico; outros reflectiam sobre o amor e as regras de conduta. Devia ou não o poeta encobrir o nome da sua amada? Podia desejar, através das palavras, concretizar esse amor, ou devia continuar a escrever sobre uma mulher ideal, platónica, objecto de inspiração? Estas contradições são visíveis numa forma "rebuscada e perfeita", em que a arte da palavra é engenhosa, com perífrases, metáforas, antíteses, etc.
Era um anunciar de Camões. O amor fonte de desengano, a tristeza ligada à morte. A mesura, versus desejo sensual. O olhar institui-se como causador de sofrimento, uma presença desejada que se transforma em ausência, um amor idealizado. O tempo como mudança, a dicotomia da vida e da morte, da alegria e da tristeza, a ela se alia a natureza que traduz o estado de alma do poeta. Estado esse que, possivelmente, se ressentiria, por um lado, com as saudades dos mil e duzentos portugueses que, por ano, se espalhavam pelo Oriente, pelos surtos de epidemia, ou o anti-semitismo, que viria a acabar nas três mil pessoas mortas num levantamento anti-judaico em Lisboa (1506); por outro lado, as alegrias da embaixada, nunca vista, enviada por D. Manuel I a Roma, ao Papa Leão X, e vivida por Garcia de Resende. A vinda para Lisboa de Jorge Hervart, agente dos Fuggers, os maiores banqueiros da época, ou, para os literatos, a publicação da Crónica de D. Duarte e Crónica de D. Afonso III, de Rui de Pina, e a Crónica de D. João II, de Garcia de Resende.
Todos estes acontecimentos antecederam a publicação do Cancioneiro Geral e patenteiam a dualidade que se vivia naquele tempo. O que aconteceu foi que surgiram novas formas de expressão, com certa modernidade. Disso são exemplo as "Trovas que Garcia de Resende fez à morte de D. Inês de Castro," que iriam servir de modelo, segundo parece, a Camões, "de um modo superior e genial, para o seu episódio de Os Lusíadas".
Essa renovação já é notória na Divina Comédia, de Dante Alighieri, que, da sua descida aos "reinos ultramundanos", regressa vivo e torna manifesta a sua visão a este mundo. A intenção era a de que todos os homens poderiam refazer com ele a sua viagem e com ele renovar-se. O renascimento do mundo contemporâneo era o que pretendia a sua obra de poeta.
Acaso também o não seria esta obra de Garcia de Resende? Finalizavam-se os Jerónimos...
É através da elegia à morte de Inês de Castro que o poeta traduz esse desejo de mudança. Como modelo "não um ser mitológico (...) mas um exemplo nacional (...) do puro e ardente amor: Inês de Castro."
Tal como "os heróis das poesias alegóricas", esta personagem, através de um vocativo dirigido às senhoras, vem, após uma descida aos infernos (catábase), à terra (função necromântica) contar a sua história. Entre o lírico e o dramático, estas trovas prestam-se a ser representadas em palco, atingindo-se a catarse (da tragédia), que leva a que os espectadores vibrem intensamente.
Que crueldade tão desumana permitiu semelhante morte? Imaginemo-nos não já a ler estas trovas, mas numa sala de teatro.

_______________________________
(Continua)  

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Elegia a Inês de Castro - Preâmbulo

Naquele tempo "entre o finito e o infinito não havia proporção (...), o máximo absoluto e o mínimo absoluto coincidiam." Este era o pensar liberto de Nicolau de Cusa, que, na Douta Ignorância, queria precisar a  ideia de unidade. "Tudo está em tudo", dizia. A liberdade definia o homem e prenunciava um mundo novo. Vivia-se então de forma muito diversa. Os horizontes tornavam-se amplos, e quanto mais eles se alargavam, mais o homem sentia a necessidade de um retorno às suas antigas origens históricas, àquele tempo em que realizara a melhor forma de si próprio.
Voltam-se para os clássicos. Vêem-nos agora a uma nova luz. Platão, Aristóteles, Pitágoras e Arquimedes são revisitados. Dá-se um verdadeiro renascer. Já não são vistos através do "filtro" escolástico, mas sim na plenitude de uma leitura directa, que permitia o conhecimento das línguas grega e latina. Petrarca, no aspecto humanista, é um predecessor. Vive, após o conhecimento desse "manancial" antigo, o dilema do seu amor por Laura, espiritualizado, e o desejo das glorificações terrenas. Glorificações essas que atingiam, sem sombra de dúvida, toda a riqueza e esplendor.
A Itália havia sido  berço de um comércio fluorescente com o Oriente. Veneza imperava no poder do ouro. Os banqueiros do mundo conhecido aí tinham as suas sucursais. Os Médicis tornam-se mecenas de artistas. Outros o fazem. A cultura refloresce, vive igualmente um período de ouro.
Essa vivência vai tornar-se plena quando ao saber adquirido nos clássicos se alia o saber de experiência feito. Eram as descobertas.
Portugal brilhava, então, como estrela. Daqui partiram as armadas que permitiram mais facilmente o acesso às riquezas do Oriente. O ouro de Veneza, o tráfego dos seus portos transferia-se para Lisboa. No tempo de D. João II, Lisboa era como que o "centro do universo". D. Manuel I irá prosseguir o empreendimento.
O luxo era de forma a originar pragmáticas proibindo as sedas e os bordados. Imperavam os sentidos! Os olhos viam o nunca visto. Eram "janelas" que ousavam ultrapassar o horizonte dos mares. O olfacto sentia a maresia, o adocicado cheiro das especiarias, o perfume do sândalo. A boca era a "porta" dos sabores, proibidos ou não. A noz moscada, a pimenta, ao sal eram aliadas. Prazer dos prazeres, o provar dos frutos até aí desconhecidos! Era o Zaire, S. Tomé, a América de Cristóvão Colombo, a Índia de Vasco da Gama e de Afonso de Albuquerque. Os ouvidos escutavam outros sons, bem diversos dos europeus. Melodias de vozes diversas ecoavam e apaixonavam. As mãos tacteavam entre breu e luz resplandecente. As palavras não chegavam para descrever aquilo que os sentidos palpavam, num deslumbramento total! Era necessário fazer crescer esse corpus. A Língua. A nossa língua estava dia a dia a enriquecer também com essas experiências. Descobria-se. Era o Mundo Novo. Portugal negociava a partilha dos mares.
Tudo isso ficava escrito e ia à tipografia para ficar impresso. Era o ano  de 1494. Fazia seis anos que o primeiro livro se imprimira em Lisboa.
Todos estes feitos heróicos pediam uma epopeia. Não baseada em mitologia, em lenda, como a Ilíada de Homero, ou a Eneida de Virgílio, mas numa experiência vivida, essa sim, uma autêntica Epopeia. À Grécia, a Roma irá juntar-se Portugal. Homero, Virgílio e Camões.
Isto prediz já, no seu prefácio ao Cancioneiro Geral, Garcia de Resende, quando realça o facto de a grande gesta dos portugueses se encontrar sem divulgação. Já era "preocupação dos escritores do tempo o surgimento de uma epopeia que eternizasse os feitos dos portugueses". A esse feito antecede-se a recolha da poesia portuguesa dos séculos XIV e XV.
Nos séculos XII e XIII houvera um grande desenvolvimento da lírica. Reis e príncipes exercitavam-se nessas cantigas de amigo, de amor, ou de escárnio e maldizer, aos quais se juntavam os trovadores, que cantavam, e as jograleiras, que dançavam. "Bailias" que reuniam jovens no adro das igrejas, nas peregrinações a Santiago de Compostela, ou, simplesmente, na fonte. Era a poesia lírica galego-portuguesa.

____________________________________
(continua)
     

Elegia a Inês de Castro

Este trabalho foi realizado para a cadeira de Literatura III, em Junho de 1991, e, tal como As Sempre Vivas - Uma História das Várias Histórias, de Machado de Assis - também não foi avaliado. Fiquei com as notas dos testes realizados ao longo do ano lectivo.Não satisfeita, desiludida, no ano seguinte matriculei-me novamente a Literatura III e, com outra professora da cadeira, Catedrática, melhorei a minha nota em dois valores. Foi  com esta literatura que viria a ser convidada para fazer o Mestrado, pela mesma Professora Catedrática, regente da Cadeira. Pela Assistente nunca me foi dada nenhuma opinião sobre este trabalho. Ainda hoje não sei porque não foi cotado. No entanto, continuei em frente. As acções ficam com quem as pratica. Por esse motivo o trabalho ficou no capítulo a que chamei "O Sonho". Ele concretizou-se porque continuei e continuo a escrever. Adiante.

segunda-feira, 9 de abril de 2012

As Sempre Vivas

Viajava agora do Lobito para Sá da Bandeira: essa Huíla de que tanto já ouvira falar. Aí, diziam, o clima era como na metrópole e que tinha uma fruta deliciosa. Todos gabavam a cidade, onde existia um Cristo-Rei que, em ponto mais pequeno imitava muito bem o de Almada. Assim, rumei a Nova Lisboa e passando pela Caala (vila Robert Williams) continuei para a Huíla. Mil e duzentos quilómetros nos separavam de Luanda a Sá da Bandeira, porém as suas belezas tornavam a jornada breve e leve. Aí existia a Faculdade de Letras, única nesse tempo em Angola. Os alunos que não podiam deslocar-se para a metrópole podiam nesta faculdade fazer o curso de românicas e outros.. Até isso tinha de belo! Era também uma cidade de estudantes!
Não vou falar-vos de Nova Lisboa nem da Cela, uma vez que só lá parei no regresso a Luanda, já após o meu encontro com as Sempre Vivas. Ficará para outra história, quando vos falar das quedas do Ruacaná e do Hotel do mesmo nome.
Tenho pressa, porém, em vos contar como era linda a Pousada da Senhora do Monte, em como era grandiosa a famosa Tundavala! Aí, perante essa fenda nas rochas, sentia-me pequenina que nem formiga! Daí, bem lá do alto, avistava-se a estrada para a região da Humpata e Moçamedes. Pela estrada, encontrava, ao vivo, aquelas mulheres mucubais de uma beleza difícil de descrever! Andavam nuas de cintura para cima e os seus bustos eram cobertos de missangas coloridas, como se envergassem a mais sumptuosa blusa. Bordada, quem sabe, pelos dedos esguios que nem galgos da costureira da baronesa de Um Apólogo. Elas sim. O seu porte era de baronesa, agora vejo! Os seus cabelos eram entrançados, curtos ou longos, em finíssimas estradinhas que demonstram bem a sua perseverança e personalidade. E eu revia a História de Angola. Ao vivo eu própria escrevia história. Eis, leitor, vêde como as emoções eram tão vivas, se possível imaginai-vos no meu lugar! Também vós iríeis amar aquela Huíla tão linda! Os seus jardins, as suas piscinas, a cidade parecia tirada, para mim, de um conto de fadas de Andersen. Do alto do Cristo-Rei saudei aquela cidade inesquecível. O seu clima permitia, então, o cultivo dessas flores que originaram a breve história desta viagem. As Sempre Vivas eram "rainhas" em Sá da Bandeira. Essa beleza era reforçada, à medida que caminhava para o deserto de Namibe. Aí conheci a famosa Welvitschia Mirabilis, que engolia insectos, diziam-nos na escola.
Após ter conhecido, num dia muito cinzento, a baía de Moçâmedes, e voltar a encontrar-me, sob outro ponto de vista, com o Oceano Atlântico, desejei regressar a Sá da Bandeira. Aí, sim, o céu era mais azul, a terra era ponteada de cheirosas flores, jardins e canteiros, cedros em formato de cestas onde podia meter o braço, ou tão altos, apontando para o céu, fazendo-me sentir qual anãozinho da história da Branca de Neve. Sim, tudo era vivido como num sonho, do qual não apetece despertar. O aroma e o sabor das suas maçãs, autênticas, não daquelas pequeninas maçãs da Índia, douradinhas que eu tinha no quintal, que pareciam a maçã de ouro de outro conto.
Não mais lá voltei. Despertei e quando tornei a encontrar as Sempre Vivas já elas estavam feitas em buquês, a ser vendidas ali ao fundo da Rua do Carmo, no início da Rua Augusta, nas floristas do Rossio, ainda de hastes verdes essas. Porque, tal como no filme com António Silva, O Pátio das Cantigas, estas floristas resistem ao tempo e renovam-se todas as primaveras de avós para mães e filhas, ali estão prontas a vender flores, que serão um presente para, quem sabe, um novo amor. Para mim, as Sempre Vivas serão aquelas que prenderam o meu coração, dividido, no jardim do Grande Hotel da Huíla.
Em Lisboa iria ficar surpreendida com o seu encontro. Afinal poderia, de tão longe, trazer para casa um pedacinho de terra, de céu, do aroma dos perfumes das flores de Sá de Bandeira, porque descobri, leitor, que a Huíla viverá sempre no meu coração, tal como o encontro com Machado de Assis e as suas Várias Histórias. Eis as minhas Sempre Vivas. Partilho-as consigo leitor.
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Nota ao leitor:
Este trabalho que serviu como que um epílogo às Várias Histórias, não foi transcrito na totalidade, pois retirei a narração de uma viagem a Malange que realizei na infância com outros alunos da escola. Retirei outros excertos que considerei sem interesse para os leitores. Esta ida à Huíla concretizou-se por ocasião da minha viagem de núpcias é, por isso, uma situação verídica.