Agora o seu pensamento, o seu coração, voltavam-se para o teatro lírico. Ia assiduamente ao São Carlos e admirou Catalini, soprano italiana e imortalizou em versos Gafforini, cantora veneziana, de fartos e ruívos cabelos. Assistiu ao despertar de Marcos de Portugal e viu as suas composições, as suas óperas emparceirar com as melhores estrangeiras. Cantadas mesmo em italiano com sucesso. Era com isso que agora vibrava o poeta. A sua popularidade era feita de sincera admiração pelo talento e virtudes que manifestava.
Escreveu para o teatro, diálogos entre figuras alegóricas - o despotismo, o vício, a liberdade e a virtude. Os actores pediam-lhe este trabalho que ficou conhecido como Elogios Dramáticos, e que eram recitados em noites de benefício no Teatro do Salitre. Bocage também escreveu duas tragédias: Catástrofe, que ficou completa, mas que se perdeu, e Eulália, quase concluída. Pensa-se que terão sido subtraídas ao espólio do poeta.
Filinto Elísio, não será indiferente ao valor poético de Bocage e escreveu-lhe muito sinceramente de França: "Lendo os teus versos, numeroso Elmano, / e o não vulgar conceito e a feliz frase, / disse entre mim: - Depõe, Filinto, a lira, já velha, já cansada, / que este mancebo vem tomar-te os louros,/...
Foi imensa a sua alegria e mostrando-a, escreveu:
"Zoilos, estremecei, rugi, mordei-vos!
Filinto, o grão cantor, presou meus versos.
(...) fadou-me o grão Filinto um vate, um nume;
Zoilos, tremei! Posteridade! És minha!
Ele sabia, sentia que sobreviria muito para além das torpes invejas, e dos invejosos que lhe danificaram a saúde, a vida. Um poeta sabe que é poeta, sabe a sua valia, mas quando outro poeta tem, a lisura de reconhecer o mérito, os louros de um mais jovem nas letras, inegável é o orgulho sentido.
A estas alegrias somar-se-iam outras tristezas. Era agora uma nova denúncia ao tribunal do Santo Ofício sobre as suas ideias e modo de vida. Acusam-no de maçon. Mas o processo acabou por ser arquivado.
O que depois surge de pior, é o diagnóstico do médico - um aneurisma. Pouco tempo teria Bocage de vida. Corria o ano de 1804, e as artérias recusavam-se a deixar correr fluentemente a seiva que alimenta de cor a vida. Sofria. "A pouca cor que tivera desaparecera, transformando-se num moreno terroso, e seus olhos claros, de um cinzento azulado, pareciam cada vez maiores, a brilharem na face cavada." (8)
Aos poucos teve que ir ficando em casa. Já não ia ao Botequim das Parras, de parras adornado, agora era o senhor José Pedro da Silva, seu proprietário, que, numa amizade ímpar, o visitava todos os fins das tardes. Recolhia e mandava imprimir os seus últimos versos; vendia-os para fazer dinheiro e fazer face às despesas com o boticário, o médico. A sua irmã ainda guardará, após a sua morte, algum deste pecúlio angariado.
O seu espírito estava agora diferente, tudo havia perdoado e até os inimigos considerava bons amigos e lhes dizia louvores. Aos poucos Bocage regressava ao bem estar, à singeleza de vida que é em tudo acreditar. Ele é novamente religioso como na infância. Recebe a visita de Maria Vicência, aquela que por promessa a sua mãe, não aceitara casar com ele. Trocam olhares de ternura e resignação.
Ainda mais um golpe final tinha que sofrer; foi o ter visto morrer a sua sobrinha; sentiu esta morte como um presságio. Parecia que nada havia na vida que não tivesse sofrido. Completava quarenta anos e parecia muito mais velho. "Na face ossuda, coroada de longos cabelos, quase todos brancos, apenas reluzem os olhos azuis, luminosos, lá no fundo das órbitas profundas." (9)
Morria serenamente a 21 de Dezembro de 1805 "o homem sossegado, pacato, que afinal residia no fundo daquele boémio." (10)
Morreu, mas não morreu. Temo-lo presente na sua obra. Com todos os defeitos e qualidades do homem completo que foi. Poeta acima de tudo. Venceu o tempo, ao nosso lado, ou dentro do coração.
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Notas:
(8) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp. 366.
(9) - Idem, pp.368.
(10) - Idem, pp. 370.
(continua)
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