CONCLUSÃO
Diante de mim tive páginas em branco. Elas me serviram de tela.Por pincel tive a caneta e por tintas coloridas as letras da minha língua. Com vinte e cinco cores trabalhei, sem esquecer os pontos, as vírgulas, a acentuação, para melhor "pintar" um retrato. O de Bocage.
Avancei para o traço. Daqui estava esbatido, dali tinha sombreado a mais; luz, precisava de luz, não só de nuvens cinzentas, mas de misturar-lhe ao azul do cenário, brancas. Quais flocos de algodão ou papéis com que se enchem as calças vazias, na urna de papelão, ou de castanho, ou pinho manso.
Agora murta, daquela rasteira que irrompe na Serra da Arrábida por entre as mimosas amarelas e o lilás do rosmaninho, ou o vermelho das papoilas, ponteadas a negro. Não exagere eu nas cores, que a vida não lhe deu! Precisei também do sol. Aquele que o aqueceu, e que lhe deu (por esparsos momentos) a ilusão de um amor eterno, possuído, nos melodiosos trinados de milhares de pássaros que ouviu. Sim, porque o seu coração possuíu quantas pautas de música há no universo. Escreveu nelas a emoção, a ilusão, a ternura, a intuição, a exaltação, a paixão, o amor, a ousadia, o temor, a solidão, mas o ódio creio que esse não pintou, porque não coube naquela mão nem na alma do sensível poeta.
A noite, como havia eu de a pintar no retrato, se para ele foi adversa, traiçoeira, caluniosa, mas também amistosa, salutar, amorosa. Tive que pensar, escolher bem os tons. Pôr os sinos a tocar, com tristes ditongos longos, a pedir um pouco de luar enamorado, se não de que lhe valeu a vida!
O pincel inscrevia a zoeira das moscas, vespas de todos os tamanhos e feitios que a vida lhe transformaram no inferno doloroso do Limoeiro. Essas mesquinhas, sequiosas de sangue nobre de poeta, e de à custa dele subirem os degraus da vida. Esbirros, zuídos que sempre estiveram pelas esquinas, pelas távolas, tabernas ou botequins, a entornar vasilhas atrás de vasilhas de fel e que daí corriam para os paços de Maniques, de fradiques e caciques, e lhe traziam por prenda um limoeiro. Em troca de versos arrojados, de sátiras traçadas e linhas cantadas por uma alma imbuída de Camões ou de Ovídio.
Prosseguir, era preciso continuar a pintar o retrato. Aqueles olhos azuis, de cinza mar, a transbordar de sonho e ilusão, que partiram para terras tão distantes e tudo observaram, para em milagre poético as suas mãos e mente transformarem em amor, cor e som pelas palavras; e regressar.
Para a pobreza e indigência que aqui viveu, para a morte, vou pintar no retrato, ruína, ruins, ravina que se mostrou inclinada, de rancores possuídos por repelentes, remelosos, roedores, ruidosos, rapinas, aves de agouro, a destruir-lhe sua cabeça formosa e seu olhar transformar em denúncia aos que - como o pintor - viram nele já olhos espantados de louco, num aneurisma a acabar.
Para me levar a concluir este retrato, contei com a ajuda do próprio poeta e dos que, como eu, se interessaram por Bocage e a sua poesia. Com todos eles aprendi algo mais, que me permitiu um traço seguro e uma melhor mistura das cores. Destas fontes um fio de água ficou para mim e permitiu este labor. Foi a ponte para o trabalho aqui expresso: o retrato de Bocage.
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Lisboa, 31 de Maio de 1993.
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Nota ao Leitor:
Este trabalho foi realizado para o Seminário de Literatura, no 4º ano da Faculdade, quando completei o Ramo Científico da minha Licenciatura. Os dois anos seguintes foram de profissionalização, com a pós-graduação no Ramo Educacional, com estágio integrado.
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Lisboa, 31 de Maio de 1993.
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BIBLIOGRAFIA
Cidade, Hernani, Bocage a Obra e o Homem, Arcádia, 4ª ed., Lx., 1980.
Coelho, Jacinto Prado, A Letra e o Leitor, 2ª ed., Morais Editores, Lx., 1977, in: «Bocage: A vocação do Obscuro»
Bocage, Poesias Inéditas, Livreiro Henrique Zeferino, Lx., 1896.
Bocage, Obras de Bocage, Lello e Irmão, Editores, Porto, 1968, "Prefácio de Teófilo Braga".
Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, Ed. Romano Torres, Lx., 1962.
Mourão-Ferreira, David, Hospital das Letras, 2ª ed. I. N. C. M., Lx., in: "O Drama de Bocage".
França, José-Augusto, O Retrato na Arte Portuguesa, Livros Horizonte, Lx., 1981
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Nota ao Leitor:
Este trabalho foi realizado para o Seminário de Literatura, no 4º ano da Faculdade, quando completei o Ramo Científico da minha Licenciatura. Os dois anos seguintes foram de profissionalização, com a pós-graduação no Ramo Educacional, com estágio integrado.
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