INTRODUÇÃO
José Augusto França diz-nos que no seu alvorecer, o retrato assume, em Portugal, um poder criativo ímpar, propondo, uma pintura votiva ou comemorativa, entre o sagrado e o laico, e, com magistrais tratamentos decorativos (...) e, um realismo psicológico, que é também, e necessariamente, um realismo social.. (1)
De facto, quando pensamos, falamos, ou observamos um retrato, a imagem que temos de imediato é a de uma moldura que encerra nos seus contornos, não só a figura do retratado, mas de todo um décor, um olhar, um estar. Por isso o retrato é um misto de falsificação e verdade. Aquilo que vemos é e não é. Como que traduz a impossibilidade de retratar. O mesmo se passará com a escrita. O que se apresenta é "um poder criativo", com "tratamentos decorativos" num realismo "psicológico e social", por isso, talvez, o ser e o não ser. Difícil é captar o ser.
Sabemos que o retrato no século XVIII é já fragmentado, tem qualidades e defeitos expressos. E a propósito disso diz-nos o mesmo autor que nos inícios de oitocentos (1805), Henrique José da Silva, retrata Bocage, gravado por Bartolozzi que lhe alterou a expressão de certa loucura, imprimindo-lhe o ar doloroso e amaneirado que o tornou famoso. (2) Logo, aquilo que nós conhecemos de Bocage não é Bocage. Ele é invenção. Primeiro Henrique José da Silva vê nele, e retrata, um certo ar de loucura, por sua vez Bartolozzi grava o "ar doloroso e amaneirado" que ficou para a posteridade.
Em 1805 o Poeta estava prestes a falecer, seria aquela a tradução do seu rosto, do seu espírito? É original ou cópia? O pintor deixou-nos aquilo que viu ou quis ver em Bocage, não, possivelmente, a realidade. Também esta palavra é embaraçosa porque não sabemos onde começa e acaba a realidade. Fica-nos a ideia de retrato, a ideia de real ou imaginário.
Parto para este trabalho consciente que é impossível retratar Bocage. Mesmo que eu o tivesse conhecido ia escrever sobre ele, sempre numa perspectiva "decorativa". Os meus olhos velo-iam com amor, respeito, veneração. Não seria por isso a minha escrita objectiva, mas subjectiva. Somos, como disse o poeta, ilhas no mar da vida; corre entre nós o mar que nos define e separa, e por mais que uma alma se esforce por saber o que é outra alma, não saberá senão o que lhe diga uma palavra. Sombra disforme no chão do seu entendimento. (3)
Por isso, o que eu vou dar é uma aproximação, já que se me revela difícil alcançar o ser. Esse ser será reinventado por mim e retratado principalmente pela objectiva dos autores que consultei, e de que dou conta em bibliografia.
Tentarei interrelacionar no meu trabalho a prosopografia e a etopeia, pois penso que, tal como dizia Fontanier só na união das duas se obterá o retrato. Na descrição, incluirei a cronografia e a topografia que se me assemelhar necessária à sua integração; assim como a expolição, para melhor exprimir o mesmo pensamento, tornando-o mais sensível ou mais interessante.
Estabelecerei o paralelo entre o pensar de Bocage juvenil e o de adulto assim como da sua figura. Em traços largos darei o quadro dos acontecimentos do tempo e espaço em que viveu.
Digamos que serão todas estas figuras de retórica que, confluindo nos conduzirão ao "décor" desse "realismo psicológico e social" que foi Bocage.
___________________________________
Notas.
(1), (2) - França, José Augusto, O RETRATO na Arte Portuguesa, Livros Horizonte, Col. Estudos de Arte, Lx., 1981, pp.20 e 53.
(3) - Pessoa, Fernando, Livro do Desassossego, por Bernardo Soares, Ática, Lx, 1982.
Sem comentários:
Enviar um comentário