sexta-feira, 20 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Quando o seu cativeiro acabou, Bocage tinha trinta e três anos , e sentiu-se novamente só e saudoso, perdido, pois os frades Nerys haviam sido verdadeiros e desinteressados amigos. Mas algo agora o iluminava e tornava diferente. Estava mais calmo.Interrogava-se filosoficamente sobre a vida, sobre Deus. Existe ou não existe? A política deixa de o interessar. O sofrimento havia sido uma escola.
Algo vai mudar o seu rumo, mas o que de fundamental havia na sua personalidade - a necessidade de ser amado - permanecia. A morte de seu pai fá-lo regressar a Setúbal. Já nada aí lhe fala da infância e da adolescência perdidas. Tinha um irmã , Maria Francisca, de trinta anos, que agora precisava da sua ajuda. Torna-se a sua confidente. Com ela, uma filha pequenina para alimentar e educar. Bocage vai providenciar para que nada lhes falte. Era o seu enorme coração que se abria, mostrava. Tornava-se num chefe de família. Trabalhava com afinco. Traduzia, publicava, fazia versos, e novas amizades. Vivia. A alegria da sobrinha ilumina aquela casa e a irmã era para ele cuidadosa. Aquilo que buscara, era possível. Obtinha agora o sossego de que carecia todo o seu ser.
Perdera a esperança de conseguir para sua esposa Maria Margarida; depois foi com Maria Vicência Bressane Leite, que também gostava dele, e cuja mãe lhe proibiu o casamento. Segue-se a irmã desta, Ana Perpétua, que o desilude e o deixa. São as Nárcia, Armia e Anália das suas poesias. Amores impossíveis, que o faziam cantar por fim, a desilusão do casamento:
"Quanto ao negrume tanque
presumo (aqui para nós) que é a prisão desses loucos
que dizem: - Recebo a vós."
Deixara, possivelmente, de acreditar no amor, e o trabalho preenche a sua vida. Recusou a oferta de um lugar para trabalhar na Biblioteca Pública de Lisboa, fundada em 1798, porque não queria ter a sua consciência "presa" ao Estado. Era livre o seu pensar e opinião. Mas aceitou o trabalho na Tipografia Caleográfica e Literária. Aí traduziu várias obras, com o vencimento de 24.600 mil reis. 
Agora era o teatro lírico, e os amigos, que num canto do Botequim das Parras, o esperavam pela noitinha. Aí se forma "o Agulheiro dos Sábios," uma segunda Nova-Arcádia. Um cantinho em que se falava de poesia, filosofia, do teatro que ia no São Carlos, no Salitre, na Rua dos Condes.
Encontrara o equilíbrio que desde os dezasseis anos não tinha. Uma família, uma casa, amigos, trabalho. Nesta altura é-lhe pintado o retrato que o mostra "elegante, à moda da época: labita escura de bom talhe, colete assertoado, gravata enrolada em torno do pescoço, como então se usava, rematada num grande nó, de pontas curtas, calção claro, beije ou cor de pérola, meia justa à perna magra, e lustroso sapato de fivela, reluzente como prata." (7)
Mas, para escurecer estes ares benfazejos que respirava, tinha Bocage a atormentá-lo o invejoso e satírico frade J.A.Macedo. Só porque o não referiu numa introdução que escreveu a um livro por ele traduzido, a sua língua viperina logo lança chispas satíricas: "tu és vadio, és magro, és pobre, és feio/ (...) tradutor de aluguel, quem são os teus zoilos?/(...) que vulto fazes tu? Quais são os teus versos?/(...) glosar e traduzir, isto é ser vate?" E passando por cima do facto de Bocage ter mudado de vida, diz-lhe: "grita, escouceia em público e nas praças,/cercado de aguadeiros e marujos..."
Em delírio, zangado, Bocage entrou num rompante no Botequim das Parras e, é mesmo o morgado de Assentiz que ali logo lhe escreveu aquilo que lhe saía do espírito alterado por desejo de vingança:
"Pões-me de inútil, de vadio a tacha,
tu, que vadio, errante, obeso, inútil
as praças de Ulisseia à toa oprimes,..."
Era a sátira que ficaria conhecida e famosa, por "Pena de Talião". J.A. Macedo volta a atacar Bocage com setas envenenadas, mas este não torna a responder. Põe de parte o veneno.
______________________________________
Nota:
(7) Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp.360.   

Sem comentários:

Enviar um comentário