segunda-feira, 2 de abril de 2012

As Sempre Vivas

Quando escolhi o nome destas flores para enlaçar as Várias Histórias, de Machado de Assis numa só história, eu jogava com palavras e imagens que perduraram na memória. Essa é a história que hoje vos vou contar. Não tradicionalmente "Era uma vez...", mas questionando o próprio significado das palavras, vivendo por escrito a problemática do tempo e da memória. Da ternura que a beleza da natureza desperta em nós, e de como metaforicamente estamos sempre aliando, à escrita, mesmo involuntariamente, a tradicional "Mimesis" aristotélica. Será, porém, possível essa "Mimesis"? Não será a realidade irreal por impossibilidade de tradução, imitação ou cópia? Mas qual é a verdadeira realidade? E qual é a superior? A que observamos ou a que descrevemos? Será a escrita uma antecipação à realidade? Esta será, talvez, uma polémica milenar. Porém, se não fosse a escrita eu não poderia agora contar-vos como conheci as Sempre Vivas, em que quadro elas estavam inseridas, qual a realidade que se vivia. Este recurso à memória e este recuo no tempo é-me permitido porque eu posso trabalhar com palavras e convidar-vos a ler aquilo que vou descrever. E, sem demora, quero dizer-vos que as Sempre Vivas são aquelas flores pequeninas de corres garridas, muito variadas, que se mantêm anos e anos lindas, como se fossem frescas, apanhadas no próprio dia no jardim. Talvez por isso lhe pusessem o nome de Sempre Vivas.
Vendidas ali mesmo no Rossio, em vistosos buquês, embrulhadas em papel vegetal, prontinhas a ser colocadas em jarras ou cestinhos para alegrar a casa, a vida de cada um. São lufada de primavera eterna, que trazemos para o nosso convívio como parcela da natureza, dos campos floridos, da vida lá fora. Primavera eterna, vida, imortalidade. Eis a que nos leva o nome de Sempre Vivas. Se tudo perece, se o homem é mortal, se a sua primavera é tão efémera, o que permanece afinal? Algo será Sempre Vivo? As flores mantêm a sua beleza original, aquela beleza que observamos quando estão nos jardins? A aparência não é o mesmo que a essência. Esta será a realidade para as próprias flores. Porém, elas vivem em sua plena beleza, através das palavras que as descrevem, através do seu próprio nome, que por palavras nos transmitam a ideia de vida.
As Sempre vivas - vivas são na nossa memória, que as recorda - vivas porque são imutáveis, resistem ao tempo, sempre nas suas tonalidades próprias. Amarelas, vermelhas, azuis, rosadas, como se tivessem saído da paleta de um pintor. Mescladas, a lembrar que foram polinizadas por várias abelhas, ou por ventos que em brisas serenas ali colocaram pólen de várias cores.
Tal como a vida, viva em várias nuances, tal como as flores Sempre Vivas, que vivem na memória do tempo, vivas são as Várias Histórias de Machado de Assis, que através da palavra conseguiu essa imortalidade. Continua vivo nas suas histórias, porque nelas pulsa a vida extreme, eterna primavera, aquela que preside à nossa memória. Para mim vive nas personagens cónego Matias, na Maria Regina, em busca da perfeição, na personagem Quintília, no médico Garcia, em Maria Luísa, em Pilar, menino sonhador e poeta do Conto de Escola e em tantas , tantas outras. São as personagens por si criadas que nos dão a inteireza, a sua forma de encarar o mundo, a vida. Ele construiu com palavras muitas vidas e deixou-as como herança sua à intemporalidade. Nós seremos cinza, pó, nada, mas a palavra impressa, essa, pujante de vida, irá renascer em cada adolescente, em cada leitor que a irá descobrir geração após geração, tal como as flores que nos prados e nos jardins florescerão em cada primavera para outros jovens.
Também eu vivia a minha efémera mas plena primavera, quando conheci as Sempre Vivas, e tal foi o encanto que essas flores despertaram em mim, que não mais as esqueci, assim como o quadro em que estavam inseridas. Permaneceram na memória do tempo, e recebem a sua cota de ternura, sempre que me recordo e as recordo. Assim aconteceu com as Várias Histórias de Machado de Assis: senti ao lê-las que passariam a ocupar um lugar certo no meu coração. Uma ternura muito especial me ligava agora a este autor. Eis o que permanece: esta ternura, este amor dedicado a autores que para nós são imortais, pois pela  palavra, eles souberam fazer-nos aderir aos seus livros. Por isso, as suas histórias são As Sempre Vivas.
________________________________________
(continua)


Sem comentários:

Enviar um comentário