segunda-feira, 9 de abril de 2012

As Sempre Vivas

Eis que aí tudo começara! Se não hoje os caminhos da memória não me levariam a recordar as Sempre Vivas e a viagem que me levou até elas. Sim. Novo Redondo era mesmo Novo, porque tinha o mar a beijar-lhe os contornos, numa praia imensa que o rodeava como se uma ilha fosse. Mas não era. Nem tinha o formato redondo dos pratos belos, que hábeis e ternas mãos de mulheres portuguesas pintam, no Redondo. Nessa altura nem eu sonhava onde ficava o Redondo e o Alentejo. Sonhava era com o rio Lima e os passeios de barco, com  o Largo da Freiria, de Além da Ponte, onde menina tanto brincara!
Mas ali estava essa nova terra para mim, a quem possivelmente as saudades de Portugal distante deram o nome de Novo Redondo (esse é um estudo a fazer, prometo). Que isto dos nomes das terras, localidades, rios e serras, tem algo de mágico. Talvez a magia do signo (louvores a Saussure), da palavra que se faz comunicação e, como tal, recordação. Mas avancemos. Em Novo Redondo havia muita lagosta. Viva, do mar, não dos viveiros: essas não são autênticas! De Novo Redondo parti para o Lobito. Este era, como hei-de dizer-vos? Talvez assim. Uma miniatura de Luanda. Bem, mas eu amava Luanda; por isso, apesar das belas praias, da sereia em pedra, no mar, perto da Restinga, do seu porto, era lindo, mas não tanto como Luanda. Faltava-lhe a Mutamba! Mas tinha, mesmo defronte ao hotel Belo Horizonte, mal abria as janelas da varanda, uma imagem inesquecível! Os caminhos de ferro e os comboios, que eram a minha atracção. No Lobito eu amei os comboios. Terminavam ali (ou começavam) os Caminhos de Ferro de Benguela. Andavam sempre, pois o porto de mar tinha bastante movimento. As máquinas daquelas antigas, recordavam-me as que vira no Porto quando, pela primeira vez, viajara de comboio para Lisboa. Talvez por isso eu tivesse aliado ao gosto dos comboios essa melancolia, a da partida, a que torna impossível o regresso. A vida nesse tom de permanente viagem, sem retorno, que esse só para as flores Sempre Vivas, malmequeres brancos e amarelos, rosas, essas também. Ofereço-lhe um ramos de rosas, leitor. Das de Benguela. Lá diz o provérbio chinês que "fica sempre um pouco de perfume nas mãos de quem oferece rosas". O perfume é, para mim, porque fui eu que o senti, na maresia da Praia morena e nos canteiros de rosas rubras que, misturadas a cristas de galos e fetos verdes, enfeitavam os canteiros do belo - único - cinema Kalunga, em Benguela. Ao ar livre, com um ecrã a lembrar uma lente côncava, aí estava esse cinema, tão estimado e com uma arquitectura tão fora do vulgar, que perdurou na memória. A sala de projecção era como um Pombal, assente em quatro fortes vigas. O seu recinto tinha vários arcos redondos, a lembrar o círculo da "lanterna mágica" dos irmãos Lumièrre, o cinematógrafo.
Mas o que, deveras, era incrível, nesse quadro, eram os flamingos que num dos muros laterais ao cinema se juntavam. Tantos, tantos, impossível de lhes saber o número! Cor-de-rosa misturado a branco, esguios e de porte soberbo! Estes eram autênticos, não vistos no cinema, nem lidos n'A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge. Não existia ainda esse romance. Vivia-se. Mas para além dos flamingos, também conhecia pela primeira vez, os grandes campos de cana-de-açúcar do alto Catumbela, ao vivo: eram diferentes dos livros da escola. Eis! Já sei o que me une a Machado de Assis! O conhecimento dos "engenhos" o cantar lamurioso dos trabalhadores do açúcar, das histórias das "escravas" de sinhá Velha (D. Paula). Encontrei no morro da Tijuca o monte da Senhora dos navegantes de Baía Farta. Vejo do seu miradouro as canoas e os mesmos pescadores que tinham sido levados séculos antes para o Brasil. Encontrei-os novamente nas Várias Histórias.  Mesmo a doceira de Itapagipe eu desejava trazer de regresso à sua terra de antepassados. Foi por isso que tanto me encontrei nas histórias! Eu vivi, conheci e conversei com essas personagens! Nos poemas de Alda Lara, naqueles que recitava, lá estavam as "escravas de sinhã velha". Conheci o tesouro da ternura do olhar, do dar sem nada esperar em troca. Rica era essa minha experiência, aqui fica para si leitor.
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(continua)             

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