quinta-feira, 19 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

"A sua figura,  um pouco extravagante, tornou-se conhecida. Quando ele passava, atirando para a frente as tíbias magras, mal resguardadas nas meias de algodão ordinárias e largueironas, calções puídos e apertados sob o joelho, pés a dançar dentro de enormes sapatos, que não eram dele, cache-nez cingido ao pescoço esgroveado, casaco suspenso dos ombros como de um cabide, chapéu às três pancadas, pupila azul a rebrilhar na ossuda e comprida face morena, havia sempre alguém que o reconhecia e murmurava: - ali vai Bocage..."(5)
Este era o seu retrato por aquele tempo, em que os jovens rapazes e raparigas, o desafiavam, e ele respondia com quadras maliciosas, obscenas, até raiar a impossibilidade de tradução. Mas ele afrontava, e dizia aquilo que não queriam, ou queriam, ouvir. Palavrões, dichotes improvisados na rua ou nos botequins, e então gritava orgulhoso: - "Isto é meu! Isto não morre!"
Corriam tempos e ventos de mudança e a sua pena isso reflecte. Maria Antonieta é guilhotinada a 16 de Outubro. A revolução Francesa é um facto. Os ideais de liberdade infiltravam-se por todas as frinchas, como fina areia de duna que se esvai. Espalhavam-se também por Portugal e a isso não era alheio Bocage. O progresso é por ele cantado, assim como os novos ideais, e Pina Manique começa a tê-lo sob observação. Era a sua ousadia que fazia recear àquele que detinha sobre a sociedade quase plenos poderes. A Rainha Dª Maria I os havia dado a esse intendente da polícia, que tudo controlava. Certamente que Bocage, tecendo louvores à liberdade, quando ainda reinava um espírito acanhado e absolutista, iria ser condenado.
Fora um tempo ameno, vivido durante os três anos em que a Nova Arcádia e os seus amigos o mantiveram ocupado. Agora surgiam amores para ocupar o seu ócio. Era Marília, que naquele Agosto de 1794 despertava novas âncias. Qual capitão Vicente Lunardi que, perante o olhar extasiado da multidão, subia no seu aerostato, Também Bocage descrevia essa subida e a sua, umas e outras que o empolgavam, para as delícias do fogo ardente de Eros. Algo havia que traçava contrário a si um destino adverso. Já junto ao amor desesperado, correspondido, vinha Thanatos e lhe levava Marília, seguida de Marfida. Seu canto era triste, dolente, de alma pisada, doente. Somava vinte e nove anos, mas sua mente, seu ser, era o de um homem maduro que na vida não havia conseguido o primordial - ser amado. Por isso prosseguia, e das cinzas tentava sempre fazer renascer uma nova Fenix para si. Seu coração era uma mina de ternura que sobrevivia num meio de intriga e calúnia, de vinganças e rancores. As suas Musas tudo suplantavam, e, por em si conservar esse dom de pureza e ternura, continuava em cada uma a amar a antiga, como se fio de água fresca da fonte se tratasse e lhe matasse a sede. Era Olina, que veraneia com ele em Pedrouços, mas logo o esquece. Vem Nise, que se rende ao seu amor, mas pela foice é ceifada e Bocage choroso entoa rezas cantando: 
"Já no calado monumento escuro
em cinzas se desfaz teu corpo brando
e pude eu ver, ó Nise, o doce, o puro
lume dos olhos teus ir-se apagando!..."  
Era de claridade que precisava aquela obscura, interior e profunda alma sofrida. Logo buscava fáceis mulheres para lhe desentediar os seus sentidos. É Feliza ou a de Sileu, para que não se confundam. Também surge Armânia que faz renascer os verdes campos ribatejanos, o rio Tejo, o céu azul. Musas suas são; vivem elas para nós na sua poesia. Era sua índole perseguir em busca de um amor sonhado, ideal. Agora é Jónia ou Elmira comparável às rosas, ou Arselina, Crinaura, Lília, Filena, Ulânia, Ritália, Urselina, Elfira, uma ou outra, que nas cavernas da himoptise também é enterrada. Elas são as "mil deidades (digo, mil moças) num só momento"... por ele amadas.
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(5) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp.230. 

(continua)

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