sábado, 31 de dezembro de 2011

Naufrágio do Galeão S. João na Costa do Natal (Continuação)

Resolveram então, os homens fidalgos que em companhia de Manuel de Sousa se encontravam, que deviam ficar naquela praia até que os doentes ficassem melhor, pois ali tinham água. Permaneceram doze dias sem ter contacto com nenhum negro da região. No entanto, haviam visto alguns a observá-los por detrás de um outeiro. Quando procuraram, encontraram casas de palha despovoadas, com setas espetadas nas paredes, o que significava guerra. Certo é que haviam dali fugido.
Porém, passados três dias, apareceram sete ou oito cafres com uma vaca, que queriam trocar por ferro, o que, após difíceis entabulações, lá compreendeu o capitão. Mostrou-lhes pregos, e era o que eles queriam. E, apesar de precisar da carne para a mulher e os filhos, o capitão deu-lhes os pregos e não lhes ficou com a vaca.
Levantava-se de noite e fazia vigia, tal era a sua preocupação e cuidado. Quando os doentes estavam melhor, resolveu o capitão dar todas as graças ao Senhor, por estarem vivos e não terem perecido no mar ou nos destroços do galeão. Se os quizera vivos, logo os havia de ajudar a encontrar o melhor caminho. Todos juntos iriam procurar o rio descoberto por Lourenço Marques. Ao longo da praia, o caminho teria cento e oitenta léguas, por costa; mas eles andaram mais de trezentas, porque se desviaram do percurso devido aos rios e elevações que encontravam no caminho. Logo estavam perto do mar; mas, com todas estas andanças levavam cinco meses e meio de viagem.
Era o dia 7 de Julho de 1552. Manuel de Sousa caminhava com a sua mulher e filhos, oitenta portugueses e cem escravos. André Vaz, o piloto, ia caminhando na sua vanguarda com uma bandeira e um crucifixo erguido. Atrás, o mestre do galeão e as gentes do mar, com as escravas. Na rectaguarda caminhava Pantaleão de Sá, com o resto dos portugueses e escravos, que seriam umas duzentas pessoas. Ao todo seriam quinhentas, das quais cento e oitenta portugueses. Caminharam um mês, com muita fome e sede, pois só haviam conseguido guardar o arroz que escapara do galeão, e era isso que comiam, junto com frutos do mato, pois outros mantimentos não encontraram nesta terra, que se mostrava inóspita e árida, como não julgaram possível.
Num mês percorreram cem léguas, e já lhes tinham morrido dez ou doze pessoas, e ainda não tinham andado mais que trinta léguas de costa. Alguns ficavam para trás e ia-se-lhes perdendo o rasto. Os primeiros que ficaram fizeram sofrer muito o capitão, que ia perdendo o juízo, pois lá ficava um seu filho bastardo de onze anos. Prometeu Manuel de Sousa quinhentos cruzados a dois homens para que os fossem buscar, mas não quizeram aceitar, por ser tão perto da noite,porque os tigres e os leões comiam os homens perdidos.
Por esta altura, já tinham tido algumas lutas com negros, que lhes apareciam no caminho, e havia morrido Diogo Mendes Dourado que lutou até à morte, como um cavaleiro. Os trabalhos eram tais, que cada dia morria mais gente. Já não podiam caminhar, caíam de fadiga. Familiares e amigos tinham que continuar a caminhada, mesmo sofrendo grande dor. Dois meses e meio já tinham andado e surgiam conflitos, por causa da água. Pagavam para beber, para a ir buscar, e, mesmo assim, passavam sede e fome. Por peixe ou animal do monte davam muito dinheiro.
Três meses a caminhar e sem encontrar o rio que buscavam. Agora já só comiam frutas e ossos torrados. Quando iam junto à praia, comiam marisco ou peixe que o mar dava.
Encontraram, então, um velho negro "senhor de duas aldeias," que lhes pediu que ficassem junto de si e os trataria o melhor que pudesse. Os cafres pouco cultivavam, e comiam carne bravia de caça. Este rei precisava de ajuda para fazer guerra a outro seu rival, o que os portugueses não puderam negar, pois haviam sido muito bem recebidos. Durante cinco ou seis dias, vinte portugueses, com Pantaleão de Sá, lutaram ao lado de quinhentos cafres contra esse homem, e trouxeram-lhe todo o gado, como despojo de guerra.
Resolveram partir em busca do rio, sem saberem que estavam num dos seus afluentes, que são três, e aquele era um deles. Precisavam de pequenos barcos e conseguiram-nos. Passaram os primeiros trinta homens e só depois embarcou o capitão, a mulher, os filhos e os restantes grupos.

(continua)

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Naufrágio do Galeão S. João na Costa do Natal (Continuação)

Era o dia 8 de Junho, e navegavam contra a tormenta, e os tormentos, desde há meses. Parecia-lhes já um milagre a nau ainda se encontrar a navegar. Como se visse tão perto de terra, Manuel de Sousa ouviu "o parecer dos seus oficiais" e resolveram aproximar-se até "dez braças", para encontrarem o fundo e então lançarem o batel, para se fazerem à praia. Alguns homens iriam observá-la, para ver onde poderiam desembarcar, com algum mantimento e armas. O resto da carga ficaria no galeão, pois poderiam os "cafres" vir a roubá-los.
Como fosse uma zona inóspita para um galeão aportar, resolveram ir para uma outra praia, entre penedias, que a manchua lhes havia indicado. Largaram a âncora e já só eram sete braças. Mal chegaram a terra, aí lançaram outra âncora para segurar bem o galeão daquele vento.Deram então "dois tiros de besta". O capitão ordenou ao mestre e ao piloto que a primeira coisa a fazer era pô-lo, a ele, mulher e filhos, e mais vinte homens, em terra, pois via perigar o galeão. Então, logo após isso, iriam retirar alguma roupa de cambraia, à qual juntariam outras mercadorias para trocar por mantimentos. Isto porque ali teriam que fazer acampamento, para então mandar recado a Sofala.
Mas parecia que tudo se mostrava adverso, e a tempestade não tardaria a surgir. Das três vezes que a manchua foi a terra transportar as pessoas, morreram alguns homens, porque o mar andava então muito bravo. Os que ficaram no galeão, passados que eram três dias, como vissem que só a âncora da terra os segurava, e a do mar se lhes havia partido, e receando ir ao fundo com a nau, resolveram - o mestre e o piloto - embarcar ao amanhecer para terra, e com eles levaram quem quizesse ir. O mestre era um homem já de idade e a esperança já lhe faltava, fraquejava no espírito a coragem. Foram num batel, que se fez todo em pedaços na praia, e dir-se-ia que foi por milagre que todos se salvassem.
O frio era grande, e o capitão havia um dia que ajudava a todos, conforme podia, aproximando-os do fogo, que tinha feito. Na nau haviam ficado mais de quinhentas pessoas. Duzentos portugueses, e o mais eram escravos. Duarte Fernandes era contra-mestre e guardião da nau. Como sentissem nela muitas pancadas, resolveram alargar a amarra da âncora, para a não cortar e tentaram chegar a terra. Mas não aconteceu assim, e a nau assentou e quebrou ao meio. No espaço de uma hora estava partida em quatro, e o mar era coberto de caixas e de toda a mercadoria. Tão grande era a tormenta, que a gente do galeão se lançou ao mar e se agarrava às caixas e madeiras, que flutuavam, para tentar alcançar terra. Mais de quarenta portugueses e setenta escravos morreram logo, e os que se deitaram à água estavam feridos pelos pregos da madeira. Em quatro horas o galeão estava desfeito, e o mar dava à costa os seus destroços em grande fúria tempestuosa.
Dizem que o carregamento que se perdeu valia um conto de ouro, e que, desde o descobrimento da Índia, nenhum galeão tinha trazido bens tão ricos. Uma parte pertencia ao rei e outra ao capitão.

(continua)

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Naufrágio do Galeão S. João na Costa do Natal

Corria o ano de 1552 quando Manuel de Sousa Sepúlveda, "fidalgo mui nobre e bom cavaleiro", que na Índia tinha dado o melhor de si e destribuído os seus haveres e ajuda, partiu para uma viagem que o levaria a Portugal. Em 3 de Fevereiro já tinha feito o carregamento do galeão S. João em Coulão. Mas, como aí houvesse puca pimenta, resolveu ir a Cochim acabar de abastecer-se, apesar de muitos trabalhos, por causa da guerra que se travava em Malabar. No entanto, outras mercadorias preenchiam o lugar que não era ocupado pela pimenta, e a embarcação ia muito carregada.
A 13 de Abril viram a Costa do Cabo. Há muito tempo que haviam partido da Índia. Mas traziam umas velas muito fracas, que terão sido a causa da sua desgraça. O piloto André Vaz tencionava tomar o caminho do Cabo das Agulhas, mas, como o capitão Manual de Sousa lhe pedisse para ir ver a terra mais de perto, este fez-lhe a vontade. Aproximavam-se da terra do Natal, e, como o vento estivesse a favor, percorreram a costa até ao Cabo das Agulhas. Porém, os ventos não eram certos. Uns dias bonançosos, outros tormentosos. Consultados o mestre e o piloto, foram de opinião que o melhor era desviar o rumo. Resolveram assim, porque a nau era muito comprida e levava carga em excesso. Já se lhes havia rasgado, com o vento, um velame e só tinham de reserva outro. Havia que ter cuidado, porque as rotas não eram certas. Tudo isto ponderavam, no tempo que levavam a remendar as velas, no perigo de aportarem por causa dos baixios, e do vento de nordeste.
Aquilo que temiam aconteceu e, durante três dias, tiveram grande tempestade. O galeão parecia, então, uma casca de noz, levado pelas ondas do mar bravio que parecia querer metê-lo ao fundo. Acalmada a ventania, vindo a bonança, aqueles homens que já se viam perdidos,sentiram alívio, mas eis que o carpinteiro da nau dá conta que se haviam partido "três machos do leme." Foi em segredo dizer a Cristóvão Fernandes da Cunha, o 'Curto', e ele, "como bom oficial e bom homem", disse-lhe para nada dizer ao capitão, nem às pessoas para lhes "não causar terror e medo".
Mas pouco tempo durou a bonança e já o vento soprava a tempestade, e lhes levava a nau na sua direcção. Viram-se, sem parte da vela e apressaram-se a recolher a da proa, antes de ficarem sem nenhuma.
Mas eis que já a nau se atravessa, ainda não era acabado de retirar "o traquete de proa". Batendo-lhe o mar com tanta braveza, rebentou com os cabos de reforço das enxárcias, cordoalha, proleame, etc. Àquele vento, àquele mar tamanho, não havia homem que fizesse frente. Nem conseguiam manter-se em pé. Havia que cortar o mastro e esperar. Mas eis que não são precisos os machados, porque já os elementos em fúria arrebentam e levam, qual pluma pelo ar, "o mastro grande por cima das polés das coroas." como se a talhe de foice se fizesse, "e pela banda de estibordo o lançasse o vento ao mar".
Consertaram tudo, conforme o possível, mas tudo estava tão remendado que qualquer brando vento tudo tornaria a levar. E, porque o leme já fraco se encontrava, o vento partiu-o ao meio. Já a nau metia muita água e, para não irem a pique, "cortaram o mastro da proa que lhes fazia abrir a nau."
Estariam a quinze ou vinte léguas de ver terra, e não tinham mastro, nem leme, nem velas. Resolveram fazer das roupas, que traziam como mercadoria, umas velas para tentar chegar a Moçambique. Foram dez dias de penosos trabalhos, em que todos os que podiam colaboravam. Fizeram de uma árvore um novo leme, mas, sem molde que lhes servisse de medida, acabado este, não servia na nau. Quando já era grande o desespero, eis que avistaram terra.

(continua)

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

História Tragico-Marítima (Introdução)

A folha de rosto deste trabalho representa a capa original do primeiro Tomo da «História Tragico-Marítima» com a dedicatória a D. João V e datada com numeração romana de 1735, "Lisboa Occidental. Na Officina da Congregação do Oratorio. Com todas as licenças necesarias."
A intenção deste 'resumo' era para dar uma aula, que não chegou a concretizar-se e o trabalho foi entregue à docente de História dos Descobrimentos tal como tinha sido preparado. É parte integrante do livro que registei com o nome: REVER O SONHO E FAZER HISTÓRIA. Continuamos a "Fazer História". Adiante...

Introdução

Como despertou em mim o gosto pela literatura de viagens, e a curiosidade em elaborar este trabalho?
Foi durante um seminário que tive o previlégio de fazer com Luciana Stegagno Picchio sobre: "O Método Filológico," no qual se dedicou uma aula à "Literatura de Viagens", na Faculdade de Letras de Lisboa, em 23/11/90. Nela participava um grupo de especialistas que se interessavam por este estudo, e que se encontravam regularmente, para trabalhar em conjunto. A liderar, a Professora Alzira Seixo.
Começou por se falar do assunto numa perspectiva da recepção, e acabou por se enveredar por diversos percursos ao sabor das próprias interrogativas e do interesse e curiosidade dos presentes.
Falou-se das «Viagens de Mandeville» e dos mitos que perpassam estas narrativas; das viagens de Vasco da Gama e de Cristovão Colombo; de Américo
Vespúcio e de Pero Vaz de Caminha. De como Montaigne fala dos canibais do Brasil. De Fernão Mendes Pinto e da sua invenção aliada à realidade. De como Colombo teria lido Mandeville e todos os clássicos da época, e, por isso, esperava encontrar e ver sereias, onde estavam Orcas. E em como o imaginário português é recheado de mar, - o conto do mar é português -, dizia L.S. Picchio.
À pergunta da professora Alzira Seixo se Portugal teria mais literatura de naufrágios do que os outros países, a resposta é não. Os holandeses e os ingleses têm igualmente muita literatura de viagens e naufrágios, mas que os portugueses coligiram na sua "História Trágica-Marítima", os muitos relatos de naufrágios, o que foi uma medida cultural e literária muito inteligente. Quem a tomou?
Foi Bernardo Gomes de Brito, bibliógrafo, que no século XVIII tomou a iniciativa de reunir em volume as "relações" dos naufrágios.
Estes relatos eram escritos normalmente por algum sobrevivente, e eram mandados publicar. Muitos deles são anónimos, como este do Galeão de S. João. O mérito de B. G. de Brito foi coligí-los nestes dois tomos, que vieram a ser impressos na Oficina da Congregação do Oratório em 1735 e 1736. Fala-se que haveria um terceiro volume preparado, mas disso não há a certeza. Certo é que a este homem de valor se deve a nossa «História Tragico- Marítima,» de que todos somos devedores e sobre a qual Ramalho Ortigão escreve: "é o mais admirável, o mais belo, o mais dramático, o mais comovedor, o mais eloquente livro de que se pode gloriar a literatura de uma nação" ( Farpas IV, 1888, pág. 245).
Pareceu-me que este epíteto dizia bem tudo aquilo que eu poderia ou queria dizer. Por isso, o escolhi para começar este trabalho.
Na impossibilidade de resumir para esta aula os doze relatos de que constam os dois volumes, vou falar-vos de um naufrágio que me tocou especialmente. Nele podemos encontrar uma dignidade e uma honra fidalga, que as pessoas defendem até ao limite supremo da vida. Nem o máximo sofrimento e o vil desrespeito destrói o pudor e a integridade que encontramos em D. Leonor e D. Manuel Sepúlveda, capitão do Galeão S. João.
Aqui podemos verificar que a união faz a força, mesmo na adversidade, pois só separados e desarmados os conseguiram vencer. Pela traição, porque a fome e a sede, a dor de perder os filhos e companheiros, os ferimentos sofridos, tudo foi suportado com estoicismo. Quase até ao raiar da loucura, o capitão protegeu e comandou os seus homens. Abandonou-se à morte na mata, já depois de ter perdido e enterrado a mulher e os dois filhos.
Mesmo na desgraça se encontra heroicidade nestes portugueses, e capacidade para sair das situações mais extremas e aflitivas. Vejamos o exemplo de Pantaleão de Sá, que se fez passar por médico e assim conseguiu salvar a vida. Vejamos o de D. Leonor que, sendo nobre de nascimento, ajuda a transportar os filhos das outras mulheres e dá animo na caminhada. Assim como a bondade de Manuel de Sousa Sepúlveda quando dá os pregos aos cafres sem lhes ficar com nada em troca. As suas vigílias nocturnas, e o sofrimento pela perda dos que iam ficando para trás. São vários os exemplos de perseverança, coragem e audácia que muita admiração causam.
Dir-se-ia que a fatalidade os perseguiu quando decidiram abandonar o acampamento do rei que bem os tinha recebido na sua aldeia. Ressaltemos aqui o sentido de obediência que subjaz neste relato.
A ideia que os animava não era errada; errado foi partir para uma viagem tão longa, só com dois pares de velas suplentes e sem peças para substituir quando as originais se quebravam. Partido o leme começa a perdição. Depois a ilusão de ver terra mais de perto é que os pôs no caminho da tempestade e dos ventos que, tornavam aquele galeão tão grande e com uma carga tão rica, numa frágil e desprotegida embarcação. Com os seus mais de quinhentos passageiros em joguetes, na fúria do mar, sem se poderem, por vezes, erguer, e, outras, por fim, a ele lançados e tragados, como gotas de espuma em onda a enrolar.
Tudo era tenebroso e, mesmo assim, continuavam na esperança que cada viagem somaria um sucesso. Mas eram mais os desenganos que os sucessos. Muitas vezes tinham que deitar a carga em excesso ao mar e quando numa situação extrema, tinham de escolher quem ia nos bateis e quem se deitava a afogar.
Foi, pois, com as suas vidas que adubaram e desbravaram o mar, para os seus herdeiros receberem um Império de suor e lágrimas.

(continua)

Voltar atrás no tempo...

Folhear trabalhos antigos que realizei quando frequentava a faculdade, é voltar ao tempo da inocência com que franqueei aqueles portões e ao gosto que eu tinha por aprender, por trabalhar e mostrar obra feita.
O meu gosto por pesquisar era imenso e o conhecimento ocupava-me todos os minutos do meu dia e todos os pensamentos. Dedicar-me à leitura e à aprendizagem foi, desde sempre, o meu maior prazer. Hoje, como ontem, continuo a amar os livros e a dedicar-lhes todas as minhas horas livres. Por isso gosto de partilhar a minha maior felicidade e vou continuar a fazer do meu blogue uma pequena "biblioteca" das dezenas de trabalhos datados no tempo, de poemas que preencheram páginas de cadernos, de variados escritos que o pó do tempo vai apagando, para os fazer renascer e dar a ler a quem partilhar deste mesmo gosto de aprender.
Hoje vou falar-vos da «História Trágico-Marítima», oferecida ao Rei D. João V, por Bernardo Gomes de Brito, em 1735, e de como despertou em mim o gosto pela literatura de viagens.
Até já.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Bibliografia

Abbagnano,N.,Visalberghi,A.,«História da Pedagogia», Livros Horizonte, Lx.,1981.

Cordon, Juan M.N., Martinez, Tomás, «História da Filosofia»,I e II Vol., ed. 70, Lx., 1983.

Ducassé, Pierre, «As Grandes Correntes da Filosofia», Col. Saber, Publ. Europa-América, Lx., 1972.

G. Gusdorf,«Les Origines des Sciences Humaines», Paris, 1967.

Oliveira Martins, «História de Portugal», Guimarães & Cª Editores,Lx.,1977.

Quental, Antero de, «Prosas Sócio-Políticas, Publicação e Apresentação por Joel Serrão, Col. Pensamento Português,I.N.C.M., Lx., 1982.

Rodrigues Lapa, «Quadros da Histórica Trágica-Marítima», Textos Literários, Seara Nova, Lx.,1972.

Rodrigues Lapa,«Historiadores Quinhentistas», Textos Literários, Seara Nova, Lx., 1972.

Silva Dias, J.S. da, «Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Séc.XVI», Editorial Presença, 3ª Ed., Lx., 1988.

Simões, Manuel, «A Literatura de Viagens nos séculos XVI e XVII», Textos Literários, Editorial Comunicação, Lx., 1985.

Vários Colaboradores, «História do Homem nos últimos dois milhões de anos», Selecções do Reader's Digest, Lx., 1975.
Vários anexos do livro acima citado, «História do Homem...»

Verbo, Departamento de Enciclopédias, «Enciclopédia Fundamental Verbo», Lx., S. Paulo, Ed. Verbo, 1982, artigo sobre o Renascimento, pp. 1331.

Lisboa, Maio de 1990

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O ANTROPOCENTRISMO RENASCENTISTA (O Contributo Português) - Conclusão

Ao terminar este trabalho, dou-me conta da imensidão de nomes de grandes homens que, ainda hoje, estão presentes através das suas obras como o melhor da nossa herança cultural universal. O período renascentista foi, sem dúvida, criativo no campo das artes, em que nos surgem pintores de nomeada, como Leonardo Da Vinci, Miguel Ângelo e Rafael. As suas obras dão-nos uma perspectiva nova que nos transmite a ideia de profundidade na pintura, assim como um realismo, patente principalmente na beleza feminina, que deixa de obedecer aos cânones religiosos para ser retratada fielmente, e já não como protótipo da Virgem.
Na música italiana sobressai também o nome de Benvenuto Cellini. Na arte da escrita surgem nomes inesquecíveis, como Francisco Rabelais (1490-1553)e Pierre Ronsard que, como escritores e poetas, criaram uma literatura nacional francesa.
No período isabelino, abandonado o latim nos actos religiosos, traduzida a Bíblia para inglês, inicia-se uma nova época de incentivo à instrução. Surgem nomes como o de Edmund Spencer, grande poeta; no campo da dramatugia, Shakespeare, Christopher Marlow e Ben Johnson, que nos deixaram obras imortais.
Contudo, por esta época, também a Península Ibérica tem dos seus maiores nomes: Lope de Vega, Cervantes («D. Quixote» é publicado em 1605); El Grego, Velasquez; sendo, por assim dizer, um período áureo no campo das artes.
Em Portugal temos Sá de Miranda, Bernardim Ribeiro, Camões, que, com «Os Lusíadas», nos dá mostras do homem cosmopolita e universal, apanágio do próprio Renascimento. Outros tantos artistas terão contribuído para o engrandecer da humanidade.
Mas este renascer foi possível graças ao empenhamento dos homens nas descobertas e aí estão, efectivamente, os Portugueses e os Espanhóes em primeiro plano. Cristovão Colombo, Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, fizeram com que a Europa tomasse consciência da existência do mundo ultramarino. Foram os descobrimentos 'uma explosão de vida', que se alia ao profundo humanismo e ao 'surto das belas artes'. Tiveram, realmente,
"os descobrimentos um papel importantíssimo na preparação dos espíritos para o acolhimento favorável da lenta teorização antropocêntrica dos humanistas."
Somado a este contributo surge não menos importante a criação da imprensa que divulgou ideias e pensamentos, antigos e novos, incutindo no homem uma confiança de condutor da natureza e do seu próprio destino. Verifica-se um intercâmbio de estudantes entre as principais universidades da época: Salamanca, Florença, Bordéus, Paris, Lovaina; mas, o que se poderá dizer é que nem sempre coincidiu este conhecer livresco humanístico com o dos homens que incentivaram as descobertas, porque a estes interessava-lhes conhecer o mar, abrir caminhos que lhes permitissem chegar às especiarias, sem o entreposto veneziano. Lisboa irá ser a grande capital do comércio renascentista. Terminava o 'império' veneziano, que detinha o monopólio do comércio.
Entretanto, é-me dado verificar que entre nós a Renascença corresponde também à entrega do Colégio das Artes à Companhia de Jesus, o que irá provocar um divórcio entre a filosofia natural, humanista aristotélica, e enveredar o ensino pela escolástica italiana e francesa, mesmo que dentro de uma corrente humanística.
Das 'lutas' religiosas surge o protestantismo de Lutero e Calvino. Inácio de Loyola havia formado a Companhia de Jesus em 1540, apoiando a Igreja de Roma. O catolicismo inicia, assim, uma verdadeira contra reforma. A acção destes missionários na empresa das descobertas foi de realce.
O conhecimento de novos produtos, como o pau Brasil, o tabaco, o acúcar, o cacau, o café, as batatas, o milho e o tomate, criaram novas necessidades e implementaram o comércio, que já não se fazia só de especiarias e de escravos, mas também dos frutos e ervas exóticas.
No campo da medicina natural também houve progressos pelo contacto com outros povos. Patente está a obra de Amato Lusitano. Da escola médica, e com influência dos naturalistas europeus do Renascimento, seria Luís Nunes de Santarém que, estudando as plantas, as daria a conhecer a André Laguna e a Amato Lusitano, que lhe ficaram a dever esse inovador trabalho de pesquisa. Conhecimentos estes que se alargaram através das notícias sobre a fauna e a flora das novas nações, e que nos transmitiram escritos como o "«Manuscrito», de Valentim Fernandes, «O Esmeraldo de Situ Orbis», de Duarte Pacheco Pereira, «A Carta de Achamento», de Pero Vaz de Caminha, o «Mundus Novus, de Américo Vespúcio, «Os Roteiros» de Vasco da Gama e de D. João de Castro; a «Notícia do Brasil», de Gabriel Soares de Sousa; «A Etiópia Oriental» de Frei João dos Santos; «A História da Província de Santa Cruz» (1576), de Pêro de Magalhães Gândavo, e de tantas outras do mesmo género,"(22) que engrandeceram a história natural e a cultura portuguesa, assim como todo o continente europeu que se ia pondo a par das descobertas.
Talvez sejam quase inumeráveis os benefícios trazidos ao conhecimento humano pelas descobertas. Porém, este período de antropocentrismo renascentista, aliado ao surto humanístico, científico e reformador de ideias religiosas, não deixou de ter também os seus lados negativos:
o aspecto da incrementação da guerra entre os povos, que o uso da pólvora e das armas mais modernas permitiu.
A escravização, que se torna legitimada, e que vai originar o protesto de teojuristas, como Victória e Las Casas, que irão legislar sobre o direito natural das gentes (base do direito moderno).
A formação da Inquisição, que leva ao primeiro Index de livros, em 1559, e que põe em perigo a ideia, que tinha sido a grande motivação da criação do Renascimento, da exaltação da liberdade do homem como ser questionador.
As grandes 'batalhas' travadas no campo das ideias e da verdade científica, iniciada por Roger Bacon dois séculos antes, que na "luta pelo direito de persistir na formulação de perguntas embaraçosas foi outro S. João Baptista que abriu, num deserto, o caminho para a Renascença,"(23) estavam a ser objecto de novas perseguições por parte do clero inquiridor.
Efectivamente, o próprio Descartes receou publicar, sabendo do processo movido contra Galileu.
Porém, o homem conseguiu que os aspectos negativos fossem suplantados pelos positivos e o resultado ficou para a posteridade como um dos maiores momentos vividos, no campo da História das Ideias, que a mente humana pode produzir.
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Notas:
(22) Silva Dias, J. S. da, «Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Séc. XVI», Editorial Presença, Lx, 1988.
(23)De vários colaboradores, «História do Homem nos últimos dois milhões de anos», Selecções do Reader's Digest, Lx, 1975.

Lisboa, Maio de 1990.

sábado, 24 de dezembro de 2011

"Quem se atreverá a pôr limites ao engenho dos homens?"

(continuação)

Toda esta variedade de terras exóticas e de plantas diferentes das que existiam na Europa vai alargar os conhecimentos do homem, que vai verificar pelos seus próprios olhos que, sendo diversa a raça humana, é una e que os africanos, ou os índios, os orientais ou os americanos, não têm nada de diferente como até aí tinha sido manifesto através de autêntica literatura mítica, em que se atribuiam aos homens de outras paragens características não humanóides, e as descrições mais bizarras do reino da imagística mais completa e complexa.
Para além deste aspecto, a ciência náutica pôs à prova as suas descobertas: o nónio de Pedro Nunes, a vela triangular ou latina, o leme fixo, a caravela, a bússola, o astrolábio, as cartas de navegar, cada vez mais aperfeiçoadas, permitiram desmentir aquilo que se pensou até ao séc. XV: a terra não era plana, tendo por centro a cidade de Jerusalém. A expedição de Fernão de Magalhães (1519 a 1522) provava a esfericidade da Terra. As teorias de Copérnico estavam certas. Sendo o pioneiro da modernidade, Copérnico tentou, combatendo as teorias anteriores, e apresentando a sua, restaurar "a harmonia cesleste" voltando à pureza grega. "Se, por um lado regressa a Platão, vendo nas matemáticas a harmonia do universo, por outro eleva o mundo sublunar à categoria celeste, aproximando, assim, os dois mundos. (...) A terra, sua descrição e movimentos, estão a partir de então submetidos à Matemática. Esta profunda mudança, esta unificação (pela primeira vez pode falar-se em universo) tem claras raízes cristãs. Rompe com o dualismo céu-terra e devolve o centro do universo ao Sol. São palavras suas: 'Mas, no meio de tudo, está o sol'. Porque, quem poderia colocar neste templo formosíssimo esta lâmpada em outro ou melhor lugar que esse, desde o qual pode, ao mesmo tempo, iluminar o conjunto? Alguns chamam-lhe a luz do mundo; outros, a alma ou governante. Trismegisto chama-lhe o Deus visível, e Sófocles, na sua «Electra», o que tudo vê. Assim, na realidade, o sol, sentado no trono real, dirige a ronda da família dos Astros".
Kepler e Giordano Bruno seguirão as teorias de Copérnico. Kepler compara a 'máquina celeste'não a um organismo divino, mas a uma obra de relojoaria.
"Assim, como naquela, toda a variedade de movimentos são produto de uma simples força magnética, também no caso da máquina de um relógio todos os seus movimentos são causados por um simples peso. Demonstro, aliás, com esta concepção física deve apresentar-se através do cálculo e da geometria." (carta a Herwart, 1605). (21) Para completar a sua força magnética de atracção, precisava Kepler da lei da inércia, que só Galileu estabelecerá, matematizando por completo o universo. Ele próprio escreverá a Cristina de Lorena, em 1615: "Quem se atreverá a pôr limites ao engenho dos homens?"
Serão estes homens que verdadeiramente estabelecerão a modernidade, juntamente com o grande filósofo Descartes, iniciando uma nova época na história do pensamento, que se caracteriza pela autonomia absoluta da Filosofia e da Razão. "A afirmação da autonomia da Razão, como fundamento do saber, não é exlusiva do Renascimento, mas a partir deste, de todo o pensamento moderno, que está em íntima ligação com o triunfo da ciência moderna."
Ciência esta que se deve a todos estes homens, entre eles os Portugueses, que ousaram ousar, descobrindo novos mundos, colocando-se como seres supremos contra o póprio poder da igreja, instituíndo-se eles mesmos, como o sol de Copérnico, centro irradiador de progresso e de confiança na própria capacidade humana, através da substituição do Crer pelo Ver da experiência feita.
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Notas:

(21)- Martins, Oliveira, «História de Portugal», Guimarães & C.ª Editores, 17ª ed., Lx., 1977.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Qual o contributo do homem português na tarefa dos descobrimentos?

Para mim esta é, sem dúvida, a frase que melhor define a grandeza das descobertas porque, efectivamente, talvez nada tenha existido no mundo superior à acção desenvolvida pela pregação dos apóstolos acompanhados do Mestre, ou já sem Ele.
O Homem tomou consciência de que se incluía como cidadão de uma orbe imensa, sem limites no espaço, e com recursos praticamente inesgotáveis -uma nova ideia para a posição do homem no cosmos, - tornou-se quase um 'Deus na Terra'-, a verificação através da experiência centrou o homem no Universo!
E se o homem era então o centro do universo, Portugal também através dos seus feitos, se colocou em primeiro lugar na Europa do Renascimento. A propósito deste assunto, Antero de Quental, no seu discurso àcerca das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, dizia: "Em tudo acompanhámos a Europa a par do movimento geral. Numa coisa, porém, a excedemos, tornando-nos iniciadores nos estudos geográficos e nas grandes navegações. As descobertas, que coroaram tão brilhantemente o fim do século XV, não se fizeram ao acaso. Precedeu-as um trabalho intelectual, tão científico quanto a época o permitia, inaugurado pelo nosso Infante D. Henrique, nessa famosa escola de Sagres, de onde saíam homens como aquele heróico Bartolomeu Dias, cuja influência, directa ou indirectamente, produziu um Magalhães e um Colombo. (...) Viu-se de quanto era capaz a inteligência e a energia peninsular. (...) Contava-se para tudo com Portugal e Espanha. (...) No séc. XV, D. João I, árbito em várias questões internacionais, é geralmente considerado, em influência e capacidade, como um dos primeiros monarcas da Europa. Tudo isto nos preparou para desempenharmos, chegada a Renascença, um papel preponderante." (17)
Papel esse que os nossos historiadores contam com todos os faustos e desastres que as descobertas trouxeram, uma vez que os naufrágios eram muitos e foram motivo de criação literária. "Tão grande foi a voga desses escritos e tantos foram eles, que chegaram a constituir uma espécie de género literário. (...) 0 espectáculo das naus destroçadas pela tormenta, a confusão e o alarido das gentes, o engenho dos homens buscando meios de salvação," (18) criava nos leitores uma imensa curiosidade; pode dizer-se que era uma literatura de grande divulgação, vindo a ser compilada em 1735 e 1736 em dois volumes, por Bernardo Gomes de Brito, constituindo a «História Trágico-Marítima». Porém, "aquilo a que chamamos propriamente a 'historiografia quinhentista' aparece na segunda metade do século XVI: os seus mais altos representantes são Gaspar Correia, Lopes de Castanheda, João de Barros, Damião de Góis e Diogo Couto que registam quase exclusivamente a expansão ultramarina. (...) Uma tamanha expansão dum tão pequeno povo tinha criado o ciúme, o espanto e a admiração da Europa. Letrados e humanistas viviam então enlevados nas façanhas guerreiras dum Alexandre, dum César, da antiga Grécia e Roma. Nisto, porém, eram obrigados a reconhecer que a glória do presente, da actualidade portuguesa, obscurecia largamente a do passado. É em João de Barros que se nota, mais do que em nenhum outro historiador, este sentido épico da navegação e da conquista, - "Os Portugueses percorreram seis mil léguas de mar desabitado e cheio de tormentas." (19)
Ainda outro historiador, mais recente - Oliveira Martins - na sua «História de Portugal», conta todo o esplendor que se vivia então no reinado do rei D. Manuel: "O rei queria mostrar ao mundo o que valia e o que podia, ostentando a sua riqueza em Roma. (...) A embaixada, confiada a Tristão da Cunha, partiu de Lisboa em Janeiro de 1514, e foi recebida em Roma em Março. Era uma procissão magnífica, e o fausto espectacoloso do rei português conseguiu deslumbrar essa corte de Leão X, onde se reuniam os primores da civilização da Europa.
Partiram, primeiro da porta del Populo, trezentos cavalos guiados à rédea por outros tantos azeméis, vestidos de seda, e os cavalos cobertos por mantos de brocado com franjas de ouro. (...) Eram mais de cinquenta os fidalgos; chapéus de plumas bordados de pérolas e aljôfar, grossos colares e cadeias de ouro cravejados de pedras preciosas, armas tauxiadas com embutidos e lavores, sedas, veludos, rendas, anéis, montando cavalos de raça, ornados de fitas e jaezes de preço. (...) Um elefante recamado de xaréis preciosos levava, na sua torre, o cofre onde ia o pontifical oferecido por D. Manuel ao Papa. (...) Depois do elefante, um cavalo da Pérsia, montado por um caçador de Ormuz, ia deitada na anca uma onça domesticada. (...) Havia séculos, desde o antigo Império, que a Itália não vira um elefante, e a novidade espantosa, correndo por toda a península, trouxera gente de muito longe."
Para além de todo este deslumbramento e riqueza manifesta, a renancença portugesa deu um dos maiores contributos à Humanidade, já que descreveu os povos com que entrou em contacto pela primeira vez. A carta de Pêro Vaz de Caminha sobre a descoberta do Brasil, para além de manifestar os propósitos de catequizar é "um instrumento de conhecimento que alarga a própria concepção do mundo. Nela se faz a exaltação da terra recém-descoberta e do Homem novo e diverso." (20)
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Notas:

(17) - Quental, Antero de, «Prosas Sócio-Políticas», col. Pensamento Português, I.N.C.M., Lx, 1982. Pp.261.

(18) - Prof. Rodrigues Lapa, «Quadros Da História Trágico-Marítima», Textos Literários, 5ª ed., 1972, Lx, Seara Nova.

(19)- Prof. Rodrigues Lapa, «Historiadores Quinhentistas», Textos Literários, 3ª ed., 1972, Lx., Seara Nova.

(20)- Simões, Manuel, «A Literatura de Viagens nos Séculos XVI e XVII», Textos Literários, Editorial Comunicação, 1ª ed., Lx., 1985.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

"A expansão dos Portugueses no Mundo..."

"O esquema medievo (...) foi, assim, atingido nos próprios alicerces pelas revelações da Expansão. Não só a cultura apareceu mais nitidamente como simples produto histórico, mas apareceu também como um produto histórico de conteúdo variável no espaço e no tempo.
Uma primeira coisa se verificou com a expansão dos portugueses no mundo: a existência de civilizações 'sui generis', com esplendores e precipitados artísticos ou monumentais impressionantes, nas terras do Oriente. (...) verificou-se também, por outro lado, a falta de denominadores comuns entre as sociedades nativas da África austral, da América e da Oceania, algumas delas sem vislumbres de constituição política e de saber intelectual ou de religião superior, e a sociedade 'cristã', nas formas mais rudes do Norte de África e da Ásia.
O Estado e a cultura começaram a assumar, desde então, concretamente, nas inteligências, como criação do homem na história. E a noção de arquétipo divino começou também a ceder o terreno à noção de processo natural. (...) Para lá do princípio de unidade essencial do género humano, Os Descobrimentos estabeleceram também a doutrina de uma diversidade profundíssima de estruturas, costumes e crenças religiosas entre as sociedades do globo.
Toda uma epistomologia, com milénios de vida e uma autoridade indiscutível, caíu por terra, cedendo lugar a outra que situava o Ver e o Praticar onde antes se situava o Crer. (...) Os mares eram, de facto, inteiramente navegáveis e de condição quase idêntica por toda a parte; o anti-mundo também era mundo, e animado, e habitado, e as suas dimensões eram incomparavelmente maiores do que poderia imaginar-se; os habitantes da terra recém descoberta não se distinguiam, fundamentalmente, dos da terra já antes conhecida; os antípodas, afinal, sempre existiam, e a zona tórrida era uma região com vida vegetal, animal e humana, e que, além do nosso orbe, havia outro orbe terreno, para lá dos mares, maravilhoso, real e humano, como este em que milenariamente nos encontrávamos." (15)
Estas longas citações do livro do Professor Doutor J.S. da Silva Dias, dão-nos conta de como foi profundo o contributo dos descobrimentos portugueses.
A ressonância das viagens marítimas foi enorme nas consciências culturais da Europa. Desde que Diogo Cão fez a sua viagem ao golfo da Guiné, em 1484/86, verificou-se pela primeira vez a existência de um mundo novo, e deu-se conta do erro dos antigos e modernos geógrafos. Os próprios homens que participavam no feito das descobertas chegavam a duvidar do que os seus olhos viam! "Em 1534/38 o autor da «História Veneziana» comentava que as navegações Luso-Espanholas eram 'o maior e o mais belo conhecimento que alguma idade jamais vira! Por seu lado, Francisco Quixardine chamou-lhes: 'o que de mais memorável de há muitos séculos para cá ocorreu no mundo'. Em 1590 um teórico político, João Boter, comentava: 'A acção verdadeiramente heróica e digna de ser preterida às proesas mais célebres e mais famosas dos antigos (...) da pregação dos apóstolos para cá, nada foi tão grande nem tão admirável.'" (16)

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Notas:
(15) - Silva Dias, J. S.,da, «Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Séc. XVI», Editorial Presença, 3ª ed., Lx, 1988, pp.170.

(16)- Notas das aulas de História das Ideias.

(continua)

Uma confiança nova nas forças naturais do homem?

Que forças levaram os homens às descobertas?

Qual o contributo do homem português na tarefa dos descobrimentos?

Todas estas modificações são, efectivamente, reflexo de um estudo apaixonado dos livros antigos, que foi proporcionado pela divulgação que permitiu a imprensa, a que está ligado o nome de 'Aldo Manuzio', que veio a ser considerado como o "maior impressor italiano e o verdadeiro criador da tipografia grega na Europa".(10) Mas, para que fossem levadas a cabo, teve de existir por parte dos homens um grande gosto pelo conhecer, por ir mais além do que proponham os livros antigos. Teve que manifestar-se um espírito crítico, uma renovação das ideias, que permitiu uma mutação do campo epistomológico. "O nascimento da ciência moderna não pode compreender-se sem o trabalho crítico dos filósofos. Eles romperam com as ideias teóricas do aristotelismo e do geocentrismo, tornando caducos todos os esquemas em que se apoiava a reflexão desde a antiguidade. (...) Em cento e cinquenta anos, o horizonte da investigação renovou-se completamente." (11)
Para que se desse essa renovação, homens como Nicolau de Cusa tiveram que ter uma "grande audácia teórica e o sentido da novidade. (...) Este humanista é antes de mais um homem de paz," diz-nos H. Védrine. Talvez porque foi um homem de paz conseguiu deixar semelhante obra à humanidade. "A sua obra mestra, «A Douta Ignorância» (1440), não cabe em nenhum quadro pré-estabelecido. Do ponto de vista cosmológico, é a afirmação muito original na época da unidade do universo, sem referências às hierarquias aristotélicas. Filosoficamente (...) instaura uma nova lógica, perguntando a si mesmo em que condições será possível uma 'douta ignorância' (quer dizer, uma ignorância consciente dos seus limites). Faz, assim, em certa medida, uma pergunta pré-crítica."(...) Dirá: 'entre o finito e o infinito não há nenhuma proporção'. (...) Para ele, "o máximo absoluto e o mínimo absoluto coincidem." «A Douta Ignorância» quere precisar a ideia de unidade: "Dizer que tudo está em tudo, o mesmo é dizer que Deus, através de tudo, está em tudo, e que, através de tudo, tudo está em Deus." (12) Este pensamento liberto caracteriza o Renascimento.
"A liberdade define o homem. (...) Por toda a parte se admira o talento e leva-se constantemente o indivíduo a ultrapassar-se. Colocado ente o céu e a terra, pode livremente inclinar-se para cima ou para baixo. (...) Os países católicos, mais maleáveis, deixarão maior lugar ao indivíduo. (...) Erasmo era partidário do livre-arbítrio, a que Lutero oporá o servo-arbítrio cristão voluntáriamente submetido à lei divina. Rabelais e Bruno, fiéis nisso ao espírito do Renascimento, opuseram-se em geral ao servo- arbítrio dos luteranos. Essa questão dividirá a Europa no século XVI, pois esta fé depurada implicava a recusa do antropocentrismo dos humanistas italianos. (...) A liberdade de investigação (e de crítica) passava primeiro pela exaltação do índivíduo, logo, nunca os humanistas poderiam estar de acordo com o servo-arbítrio luterano.
Ao mesmo tempo, o mundo alarga e oferece um campo de investigação imenso à reflexão, à imaginação, à audácia dos conquistadores. À Europa mediterrânica juntam-se vastas extensões das costas de África, descobertas pouco a pouco; depois a América e, por fim, com Fernão de Magalhães, a primeira viagem à volta da Terra." (13)
Porque foram possíveis semelhantes empreendimentos? Porque o Renascimento conheceu a exaltação do trabalho e da actividade. Erasmo, por exemplo, acentuou a sua fé no homem e na cultura, assim como Ficino, "que foi o primeiro que tentou pensar o homem no quadro de uma filosofia da cultura tomada como desenvolvimento e unidade na diversidade duma mesma reflexão. A velha pergunta medieval: como conceber as relações entre a razão e a revelação?, ele substituiu-a por uma pergunta original: que deve ser o homem que, de Platão a Cristo, passando por Pitágoras e Hermes Trimegisto, uma mesma interrogação se lhes imponha? E repondeu: um ser quase divino. E nessa certeza, o pecado, a morte, têm apenas um lugar secundário. Só conta a actividade, prova da dignidade do homem." (14)
É este ser quase divino, ou ajudado por esse Ser Divino, que, através da confiança nele manifestada, vai provar com a sua actividade, na grande empresa das descobertas, a sua dignidade de Homem, e, acima de todos, porque foram os primeiros, estão os Portugueses.
Continuo na senda desses Homens que das fraquezas fizeram forças e mostraram ao mundo que é possível fazer-se filosofia com o conhecimento empírico, com o conhecimento sensível, feito de experiência vivida, amarga, feliz, dada de forma directa e simples. Através da nossa literatura de Viagens, o mundo ficou quedo de espanto com semelhantes revelações. Não eram da Universidade que saíam estes conhecimentos, mas sim da verificação dos factos. Eles viram e contaram; deram o seu contributo.
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Notas:
(10), (11)- Garin, Eugénio, «O Renascimento»,col. Universitas, Telos, Porto, 1964
(12); (13); (14)- Védrine, Hélène, «As Filosofias do Renascimento», col. Saber, Publicação Europa América, Lx., 2ª ed., 1971. Pp.19; pp.25; pp.43.

(continua)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

É possível datar o Renascimento? (conclusão)

"A verdade tem um sentido ritual, mesmo na ordem do intelecto, onde a escolástica impõem vozes e meios de uma afirmação rigorosamente codificada. Inscrita dentro de um esquema providencial entre a criação do mundo e o seu fim, «A Cidade de Deus», de Santo Agostinho, serviu de protótipo escatológico e esquema regulador da cidade dos homens. O passado, o presente e o futuro são dados como prefigurador e predestinados a uma humanidade dentro de horizontes fechados e definidos.
A Renascença data e consagra essencialmente o abandono deste esquema em via de desagregação depois do século XV. O presente liberta-se das disciplinas litúrgicas que o aprisionavam. O imobilismo ontológico é rompido a partir do momento em que a Igreja perde o direito de controle universal que exercia sobre as actividades humanas. O renascimento pode ser caracterizado pela separação da cultura em relação à Igreja, assim como do poder político. As planificações teológicas não bloqueiam mais as avenidas abertas à aventura humana, à descoberta das causas e ao conhecimento da natureza íntima das forças primordiais (Francis Bacon). As novas esquematizações do espaço e do tempo permitem à época renascentista o conhecimento de um saber que, não sendo ainda o da Idade Moderna, tem características diferentes do conhecimento medieval.
A Renascença define o momento em que se torna possível uma ciência do homem que seja uma ciência humana. Porém, segundo Montaigne, que é considerado o precursor da antropologia rigorosa, o drama do homem universal é que a sua universalidade não pode ser mais que uma ambição."(9)
O encontro dos antigos livros e o saber restaurado, a imprensa, as armas de fogo, os novos continentes descobertos! Como reage o homem perante semelhantes modificações?

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Notas:

(9) - G. Gusdorf, «Les Origines des Sciences Humaines» (tradução minha de excertos da terceira parte, cap.I)

(continuação)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

É possível datar o Renascimento?

A viagem de Dante através dos reinos ultramundanos tem uma finalidade que não se reduz à salvação da sua alma. Dante está vivo e deve tornar manifesta a sua visão quando volta para o meio dos vivos. Assim, todos os homens poderão refazer com ele a sua viagem e renovar-se com ele. O renascimento do mundo contemporâneo é o que Dante espera da sua obra de poeta."(4)
Francesco Petrarca também já se tinha distânciado do mundo medieval, e, ainda que dividido "entre a exigência do espírito da Idade Média, que quere o homem concentrado em si mesmo e estranho a tudo o que lhe é exterior, para sua salvação eterna,"(5) já vive o dilema do seu amor por Laura, e o desejo das glorificações terrenas. Efectivamente, Petrarca espera e anuncia um mundo novo. Será possível datar esse novo Renascimento?
É difícil datar o período renascentista, pois este caracterizou-se por diversos acontecimentos, quer no plano político, com a criação de Estados nacionais, que surgem como resultado da desintegração do Império acontecida no final da Idade Média, quer no âmbito económico, quer no desenvolvimento da burguesia e no próprio crescimento do individualismo, que também tem início no século XIV.
Quanto ao aspecto humanista, terá sido especialmente Petrarca um predecessor, e, no terreno filosófico, o Renascimento caracteriza-se pelo estudo directo e pela assimilação dos autores gregos, que irão influenciar inclusivé o desenvolvimento científico, especialmente Arquimedes e Pitágoras. Por tudo isto, não poderá falar-se numa ruptura absoluta com a Idade Média, "mas talvez seja mais acertado falar de desenvolvimento e expansão de certos fenómenos que nela tiveram origem." (6)
Contudo, uma tradição escolar fixa a data de 1453 para o início da Renascença, quando os turcos tomaram Constantinopla. Mas o fim do Império Bizantino não é uma data muito importante para o Ocidente; no entanto, sublinham o facto de a queda de Bizâncio favorecer a dispersão de eruditos e o renovar da cultura grega, mas a diáspora bizantina é anterior a 1453, e o concílio de Ferrara-Florença, reunido em 1438, com vista à união das igrejas, representa um esforço desesperado para salvar a cristandade oriental em 'perdição'. O concílio faz vir para Itália intelectuais gregos que terão uma influência decisiva sobre a cultura.
Outros historiadores propõem fixar o início do Renascimento na data de 1492 quando Cristóvão Colombo desenbarca em Cuba, inaugurando o Novo Mundo.
Mas a exploração de Colombo não é mais que um episódio dentro do desenvolvimento da epopeia geográfica, em que o promotor mais lúcido, segundo G. Gusdorf, foi o príncipe português D. Henrique, o Navegador, que nasceu em 1394 e faleceu em 1460.
Michelet faz, por sua parte, coincidir a data de 1494, quando a armada de Carlos VIII invade a Itália. Esta expedição terá tido um valor cultural decisivo, pelo contacto com os franceses. Porém, Laurent de Valla, o Magnífico, morreu em 1492, ao mesmo tempo que Piero dela Francesca. Pico de la Mirandola em 1494, e Marcile Ficin viveu até 1499. Quanto a Nicolau de Cusa, um dos maiores filósofos da Renascença, senão o maior, morreu em 1464.
Outros historiadores propõem datar a renascença com a invenção da imprensa, que sublinha o carácter cultural do período em questão; em 1450 Gutemberg abre o seu atelier em Mayence. Porém, o facto situa-se, em todo o caso, para o Ocidente, não em 1450, mas no decorrer da primeira metade do século XV. Sobretudo realçam a invenção da imprensa porque esta permitiu uma melhor divulgação da cultura espiritual, multiplicando as possibilidades desse Renascimento.
Revelando um valor simbólico, esta data deve reter-se na ordem da cronologia, porque a Renascença não é um fenómeno unitário. Se a Itália tem o século XV como o grande séc. da Renascença Florentina, o séc. XV é para o resto do Ocidente fortemente medieval. Entre a Europa e a Inglaterra, até 1453, durou a guerra dos 100 anos.
"No dizer de Renan, Petrarca foi o primeiro homem moderno, timoneiro do humanismo e do individualismo renascentista, se é verdade que a renascença é um estado de alma." (7) "Ele fora um incomparável investigador de livros antigos e dera-se ao trabalho de encorajar o conhecimento do grego, com a finalidade de fazer ouvir a voz de autores há séculos emudecidos, como Homero e Platão." (8) Ora Petrarca viveu de 1304 a 1374, e o seu amigo Bocace, que partilhou a sua paixão pelas humanísticas, viveu de 1313 a 1375. Quanto aos derradeiros afirmadores do movimento eles viverão ainda no século XVII. Giardano Bruno, Vanini, Francis Bacon, Elizabetiano, profeta do conhecimento moderno. Kepler, que é também o homem do limite, astrónomo e astrólogo, desaparece em 1630. Campanela, que é o derradeiro pensador renascentista italiano, a sua «Metafísica» apareceu a público em 1638. Assim, o que verificamos é que a inspiração renascentista anima três séculos de história da consciência Ocidental.

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Notas:

(4); (5) - Abbagnano, N., Visalbergh, A., «A História da Pedagogia», Livros Horizonte, Lx, 1981, pp.257,258.

(6) Cordon, Juan M. N., Martinez, Tomás, «História da Filosofia», II Vol., Ed. 70, Lx., 1983.

(7)- G. Gusdorf, «Les Origines des Sciences Humaines»(tradução minha de excertos da terceira parte, Cap. I)

(8)Garin, Eugénio, «O Renascimento», col. Universitas, Telos, Porto, 1964.

(continua)

Qual é a origem da palavra Renascimento?

(continuação)

Perante tais concepções àcerca das causas e dos efeitos, e da possibilidade do nosso conhecimento das mesmas, é certo que o Renascimento se iniciou antes, ou até poderá dizer-se que houve mesmo sucessivos renascimentos, e que havia no campo das ideias vitalidade intelectual, mesmo que fechada na orbe cristã, e detida pelos teólogos e estudantes de Oxford, como é o caso de Ockham.
Mas, continuando a responder a este sucessivo questionar, e, uma vez que verifico que todo o conhecimento era detido efectivamente pela Escolástica, ou estava, de uma maneira ou de outra, ligado à Igreja, o que significa então a palavra Renascimento?
Como não podia deixar de ser, "a palavra é de origem religiosa. Renascimento é segundo nascimento, o nascimento do homem novo ou espiritual de que fala o Evangelho de S. João e as cartas de S. Paulo (cf. & 55). Na Idade Média a palavra tinha sido conservada para indicar a transumação do homem, o seu regresso à comunhão com Deus, que ele perdeu com o pecado de Adão. No período renascentista a palavra adquire um significado terreno e mundano: é a renovação do homem nas suas capacidades e nos seus poderes, na sua religião, na sua arte, na sua filosofia e na sua vida associada. É a reforma do homem e do seu mundo, no sentido de uma restituição à forma originária.
A vida do Renascimento é um retorno do homem às suas origens históricas àquele passado no qual soube realizar a melhor forma de si próprio. Não se trata de imitar o passado (...) trata-se de voltar à posse daquelas possibilidades que o mundo clássico patenteou ao homem e que, desconhecidas ou ignoradas na Idade Média, deviam ser de novo património da humanidade. (...) Reconduzir o homem à altura da sua verdadeira natureza. Tal é a intenção comum aos homens do Renascimento. Para eles a antiguidade clássica é uma 'norma', um ideal de renovação e de procura: norma ou ideal que é preciso redescobrir na sua pureza.
(...) No próprio Dante Alighieri a ideia de 'renascimento' tem um significado religioso, moral e civil que não sai dos esquemas caros à Idade Média. Todavia, se a cultura de Dante é medieval e escolástica, a sua obra poética anuncia alguns aspectos fundamentais do Renascimento. A poesia autobiográfica da «Vida Nova» exprime a renovação que o poeta experimenta sob a força da espiritualidade do amor. Por esta renovação o poeta torna-se capaz de poetizar segundo o dolce stil nuovo, e isto acontece, não por uma fria elaboração doutrinal, mas por uma inspiração do amor que o faz falar como o coração lhe dita (Purgatório, XXIV, 49). Na «Comédia», a ideia de renovação estende-se do homem singular a toda a humanidade e às instituições fundamentais, à Igreja e ao Estado.

(continua)

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

VITALIDADE INTELECTUAL DURANTE A IDADE MÉDIA, OU PERÍODO DE TREVAS?

"Arruinado o Ímperio Romano e finalizada a Idade Antiga, o Ocidente perdeu todo o contacto com a maioria das obras filosóficas gregas. Esta perda de contacto e a consolidação do platonismo cristão (graças, sobretudo, à monumental obra de Santo Agostinho) marcam a evolução da História das Ideias na Europa, durante os oito séculos seguintes. (...) A pregação de Maomé e a consequente expansão vertiginosa da conquista árabe,"(1) leva a que estes tomem conhecimento dos textos dos filósofos gregos, e que se façam as traduções para o árabe das obras de Aristóteles. Será, pois, através dos árabes que se dará a penetração no Ocidente da filosofia grega, originando durante o século XII uma intensa actividade de tradução. Porém, estes textos irão ser analisados segundo uma visão profundamente teológica e inibirão durante longo tempo as consciências dos intelectuais de então.
"As próprias noções geográficas de Ptolomeu, divulgadas desde o século XIII, pelo «Tratado da Esfera de Sacrobosco», eram apenas aceites por uma pequena parte dos homens cultos, uma vez que alguns sábios, como por exemplo Santo Agostinho, cuja autoridade vigorou até aos fins do século XIV, impugnavam radicalmente essas noções geográficas, principalmente a existência de antípodas, ou a esfericidade da terra."(2) Se os árabes tinham "alargado e objectivado o quadro das notícias sobre a África até ao Sudão Central e Ocidental, e ainda aos sultanásicos da costa oriental até Sofala e na Ásia, por toda a orla marítima meridional até ao Arquipélago Malaio, não é possível que essa cultura geográfica tivesse aproveitado muito aos homens cultos cristãos, pois, na maior parte, estes conhecimentos estavam confinados aos meios muçulmanos. (...) conceitos como o Oceano Índico fechado como mar interior, a prolongação da África para leste unindo-a à China, afirmações sobre a existência de uma zona inabitável por causa do calor, eram recebidas pela escolástica medieval como verdades indiscutíveis, e detiveram por largo tempo o pensamento de uma expansão geográfica", e, na falta dessa expanção, A Idade Média "não conhecia a terra que habitava, quando muito, os seus conhecimentos estendiam-se a um quarto do planeta e dos seus habitantes. Estavam por este motivo muito condicionados; contudo, terá sido um período de trevas?
Penso que não, apesar da matéria do conhecimento se ter encaminhado mais para as questões que relacionavam a Razão e a Fé como confirmação das teses teológicas.
Surgirão, no entanto, filósofos que, com as suas opiniões diversas e críticas, preparam esse período renascentista que se iniciará pouco a pouco, como geralmente acontece com as grandes transformações que se dão na história da humanidade.
Um desses filósofos é, sem dúvida, Duns Escoto, que constrói o seu sistema de forma diferente de São Tomás, "a quem critica e contradiz muitas vezes", assim como critica as grandes sínteses vigentes de Santo Agostinho e a aristotélica. Ora, nesta atitude crítica manifesta, é pressuposto um progresso no campo das ideias. Onde Tomás de Aquino vê "vontade como potência natural", Escoto diz que "onde não há liberdade, não há vontade em sentido estrito; a vontade caracteriza-se por ser livre". Porém, mesmo criticando os sistemas anteriores, Escoto também constrói um sistema.
O que irá tornar-se um "crítico demolidor de todos os sistemas filosóficos anteriores" será Guilherme de Ockham, que chefiará o criticismo constituindo "uma nova maneira de praticar a filosofia (...) depois de séculos de Agostianismo, entra-se pela primeira vez em contacto com um sistema que nada devia ao cristianismo nem à Bíblia, um sistema que não dependia de forma alguma da revelação judeo-cristã, mas que aparece como resultado da Razão, funcionando por si mesma, à margem da Fé."
Este exemplo é, penso, um dos indícios mais evidentes de que algo estava a mudar durante esta metade do século XIV. Ockham expôs o seu pensamento que, aliás, recebe de parte da igreja uma certa desconfiança, o que irá originar "o florescimento da Mística, como alternativa ao racionalismo filosófico". Uma vez que este filósofo, pretende "sublinhar a Omnipotência e a Liberdade divinas", defende o "voluntarismo teológico" e, para ele, "nenhum dos mandamentos é de lei natural, (...) as normas morais não são naturais, nem imutáveis; são convencionais," mesmo que divinas. O princípio geral de que os fenómenos possuem causas (...) e de que só a observação nos permite saber qual a causa concreta de cada fenómeno", pressupões que "esta demonstração da causalidade torna impossível a demontração da existência de Deus: podemos estar seguros de que há uma causa primeira, da qual provém o Universo, mas, ao carecer da observação necessária, não podemos concluir definitivamente que tal causa seja o Deus criador objecto da fé cristã." (3)
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Notas:
(1) e (3) Cordon, Juan M. N. & Martinez, Tomás C., «História da Filosofia» I Vol., Ed. 70, 1983
(2) Notas tiradas durante o ano na respectiva disciplina

O ANTROPOCENTRISMO RENASCENTISTA - O Contributo Português

A folha de rosto deste trabalho mostra-nos as caravelas que deram origem às Descobertas Marítimas.Nela contém um excerto de um pequeno texto que nos diz o seguinte:

O orgulho da navegação portuguesa, perpetuada numa aguarela do século XVI. Os Portugueses foram os mais notáveis exploradores do Renascimento. Lentamente, os seus navegadores desceram a costa de África, contornaram a sua ponta sul e acabaram por encontrar uma rota para a Índia e para além dela.

Introdução

Elaborar um trabalho para a disciplina de História das Ideias, sobre "O Antropocentrismo Renascentista e o Contributo Português" àcerca da mudança de mentalidades que se originou durante este período, é, para mim, aliciante. E aliciante porquê? Porque penso que o período Renascentista foi dos que, através dos tempos e da nossa História Universal, se ligou mais profundamente à cultura ilustrada, ou seja, esta mesma cultura é que terá originado, em parte, o próprio Renascimento; por outro lado, existe esse factor importante que foi a cultura da experiência feita. Desta junção entre cultura erudita e popular, ou da experiência, renasce do mundo antigo um novo mundo, entrando aí, por assim dizer, o contributo dos portugueses que, aliando estes dois saberes a uma grande coragem, promoveram as descobertas, e, com elas, puseram em prática uma nova forma de encarar o mundo e o homem. Colocando-o no espaço e no tempo, tornaram-no o centro das atenções, contribuindo, por isso, para o próprio antropocentrismo.
A nossa literatura de viagens abriu novos e amplos horizontes, que foram acrescentados àqueles que vinham detrás, porque o antropocentrismo renascentista não surgiu da noite para o dia; ele foi fruto de longas e sucessivas manifestações, de ideias críticas, e de aspiração de liberdade do homem em relação ao divino e à mentalidade que vigorou durante a Idade Média. Porém, foi precisamente esse período final medievalizante que abriu caminho para o Renascimento.
É por aqui que vou começar o meu trabalho. Que houve de original no espírito medieval que propôs um semelhante renascer? Quando e como se iniciou verdadeiramente esse Renascimento? Afinal porque se começou o homem a interrogar àcerca do próprio homem, e do lugar que lhe cabia no universo? Porque se questionou o divino e se criou uma nova mentalidade profana de confiança no homem? Qual a origem da palavra Renascimento? Porque foram os portugueses capazes de semelhante feito? Qual a nossa originalidade? Estas, e muitas mais, são as minhas próprias interrogações, que nunca estão satisfeitas, porque o meu conhecimento me surge como o pequenino grão de areia dessas praias imensas que os nossos antepassados descobriram! Vou tacteando, procurando a luz que dê resposta a tantas interrogações, próprias do gosto pelo saber, buscando nos livros que me ajudarão a descobrir esse passado, a gota de água desses mares que preencheram vidas e vidas dos nossos antepassados.
Quero pelo passado tentar conhecer melhor o presente. Que presente? Este novo Renascimento que se anuncia, que se pressente.

domingo, 18 de dezembro de 2011

Recordar...

Quando comecei a leccionar, no já longínquo ano lectivo de 1993/94, ainda havia no currículo de português, no secundário, a leitura obrigatória do livro de Almeida Garrett, «As Viagens na Minha Terra». Escusado será dizer-vos que era uma apaixonada pela história da "Joaninha dos olhos verdes, - a menina dos rouxinóis -," e por todo o enredo que constitui essa maravilhosa narrativa romântica, que eu gostava imenso de ensinar.
Mas a que propósito estou hoje a recordar esses tempos passados? Estou a recordar porque o Ministro da Educação decidiu atribuir mais tempo lectivo à disciplina de História, de Geografia, de Ciências, etc., e acabar com outras que vinham de tempos para esquecer. Claro que estou de pleno acordo, e porquê? Porque nesse tempo em que leccionei Garrett, os meus alunos não sabiam que tinha havido uma guerra civil em Portugal entre liberais e absolutistase, daí a dificuldade em contextualizar o romance. Tive de lhes contar essa fase da nossa História, que originou o exílio, para Inglaterra, de Garrett, e como esse facto veio a influenciar a sua obra, o seu percurso, e a nossa própria vida cultural.
Por esse motivo envio os meus parabéns ao Ministro Nuno Crato, com a esperança que nenhuma fase da nossa História seja ocultada aos nossos alunos, porque só assim engrandecerão a sua cultura e aprenderão a amar este País com quase 900 anos de História e melhor conhecerão os Homens de valor que a povoaram.
Para contribuir, desde já, com uma pequena dádiva, um acrescentar de conhecimentos, vou transcrever para os meus seguidores, um trabalho que realizei na Faculdade, no 3º ano, para a cadeira de História das Ideias. Até breve!

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Bibliografia

Antunes, Manuel, Prof. Padre, «História da Cultura Clássica», Faculdade Letras, Lx, 1970.

Buescu, Maria Leonor Carvalhão, «A língua portuguesa, espaço e comunicação» B.B., I.N.C.M., Lx. 1986.

Cícero, «As Catilinárias», "Defesa de Murcena", "Defesa deArquias", "Defesa de Milão", Editorial Verbo, Lisboa, São Paulo, 1974.

Cícero, «Em Defesa do Poeta Arquias», Clássicos Inquérito, Editorial Inquérito, Lx., 2ª ed., 1986.

Colóquio, Revista de Artes e Letras, nº 15, Outubro de 1961, Fundação Calouste Gulbenkian, Lx., artº "Poesia e Poetas na Grécia Arcaica" por Maria Helena da Rocha Pereira, pp. 54, 55, 56, 57.

Cirurgião, António, «A sextina em Portugal nos séculos XVI e XVII» B.B. I.C.L.P., Lx., 1ª ed. 1992.

Coulanges, Fustel de,«A Cidade Antiga», Livraria Clássica Editora, Lx., 10ª ed., 1980.

Ferguson, John, «A Herança do Helenismo», Hist. Ilustrada da Europa, Ed. Verbo, Lx., 1973.

Horácio, «Arte Poética», Clássicos Inquérito, 2ª ed., Lx., 1984.

Platão, «A República», F.C.Gulbenkian, Lx., 5ª ed., 1987.

Paratore, Etore, «História da Literatura Latina» F. C. Gulbenkian, Lx.1987.

Figueiredo, José Nunes de, «Latini Auctores», 2ª ed., Coimbra Editora Lda.1966.

Resende, Duarte, «Tratados de Amizade, Paradoxos e Sonhos de Cipião», I.N.C.M., Lx., 1982.

Rocha Pereira, Maria Helena da, «Helade», Antologia da Cultura Grega, Fac. Letras, da U.C., I.E.C., 5ª ed., Coimbra, 1990.

Rocha Pereira, Maria Helena da, «Estudos de História da Cultura Clássica», 1º Vol., Cultura Grega, 6ª ed. F.C. Gulbenkian, Lx, 1988.

Rocha Pereira, Maria Helena da, «Estudos de História da Cultura Clássica», 2º vol., Cultura Romana, F.C.G., Lx., 1984.

Rodrigues, Manuel dos Santos, «História da Cultura Clássica», Antologia de Autores Portugueses com influência Clássica, U.N.L., F.C.S.H., 1991/1992.

Jornal, "Público", Suplemento Leituras, pp. 4 e 5, de 3/4/1992, artigo de Augusto M. Seabra.

Jornal "Público", Sup. fim de Semana, Cinema,"O Passo Suspenso da Cegonha", crítica de Manuel Cintra Ferreira.

NOTAS do trabalho

Notas:
(1) - Hatherly, Ana,«A Experiência do Prodígio», Lx, ed.1983

Figueiredo, José Nunes de, «Latini Auctores»,2ª ed., Coimbra,ed.1966. Notas: (2); (17); (18); (28); (35); in pág. 9.(36) Pp. 212.

(3) Garrett, João Baptista de Almeida, «Viagens na Minha Terra», Portugália Editora, 1963, 2ª ed., pp.213

Cícero, «Em Defesa do Poeta Arquias», Clássicos Inquérito, 2ª ed., 1986,notas: (4) in pp.17; (6) pp.37 (Cícero amava a poesia de Énio, por isso o refere, porque este chamava "Sagrados aos poetas");(9)pp.35 e 37;(11) pp. 17;(12) pp.19 e pp.29; (14) pp.14; (20) pp.19 e 41; (21) pp.43; (40) pp.31;(59) pp.43 e pp.45; (60) pp.47; (66) pp.33, 49, 51, e 29.

(10) Louro, Carlos Alberto, "Defesa de Arquias", in: Verbo ed., conceito platónico da "intima união entre os diversos ramos da cultura".

Cícero, «As Catilinárias», Defesa de Murena, Defesa de Arquias, Defesa de Milão, Ed. Verbo, Lx, 1974. Notas: (5) pp.293, 294. (13) de Carlos Alberto Louro da Fonseca, Introdução, tradução e notas; "Se não há nenhuma obra de Arquias como se avaliar se era ou não um poeta de merecimento?" Nota:6/14;
(7); (8); (12);(19) in: pp.293, 294; (62); (67);(68) pp.297; (67) pp.176; in: Introdução.

(15) in pp.33; (26)pp. 32, ob.cit., Introdução do Prof. Américo da Costa Ramalho.

Buescu, Maria Leonor Carvalhão, «A Língua Portuguesa Espaço de Comunicação, B.B., Lx, 1ª ed., 1984. Notas: (13) pp.50,(nota 68, Cícero «Do Orador»); (30) pp.46; (31) pp.47; (32) pp.48, 49; (33) pp.49; (34) pp.49; (65) pp.48).

Rocha Pereira, Maria Helena da, «Estudos de História da Cltura Clássica», II vol.., F. C. G., Lx, 1984. Notas: (25) pp.118; (27) pp. 116; (29) pp.128; (61) pp.128.

Antunes, Manuel, Prof. P. «História da Cultura Clássica» F. Letras, 1970. Notas: (23) pp. 342; (24) pp.343; (58) pp. 343, 344.

Rocha Pereira, Maria Helena da, «Helade», Antologia da Cultura grega, Fac. Letras, 5ª ed. U.C., Coimbra, 1990. Notas: (43) pp.164; (47) pp.100 (frag. 93 Diehl); (49) pp.397; (56) pp. 96; (57) pp.147; (64) pp. 368; "uma biblioteca antiga".

"Colóquio" Revista de Artes e Letras, nº 15, Out. 1961, F. C. G., Lx, art.º "Poesia e Poetas na Grécia Arcaica" por Maria Helena da Rocha Pereira. Notas: (45) pp. 55; (46) pp.56; (47) pp.56; (48) pp.57; (50) pp.56,57; (51) pp.57; (52) pp.54,55; (53) pp.55.

(10) in Jornal Falado da Actualidade Literária, Acarte e Pen Clube Português, F. C. Gulbenkian, em 10/1/1990.

Esquilo, cit. por Sophia de Mello Breyner, "Livro Sexto", Posfácio, pp.76, in «Antologia de textos de Autores Portugueses com Influência Clássica», Prof. Manuel dos Santos Rodrigues. Nota: (16) pp.16.

Horácio, «Arte Poética». Notas: (22) pp. 19; (44) pp. 107.

Cirurgião, António, «A Sextina em Portugal noa Séculos XVI e XVII», B.B., Lx, 1ª ed. 1992. Notas (37); (38); (39); (41); (42), pp. 105, 106 e 107.

(68) - Jornal "Público", 3/4/92, artigo de Augusto M. Seabra, pp.4 e 5.

(69)- Jornal "Público", 24/4/92, Cinema , M. C. Ferreira.

(70) - Título do filme de Theo Angelopoulos

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

CONCLUSÃO - A justa cidadania de Archia

A concluir, não queria deixar de referir aquilo que a Professora Maria Helena da Rocha Pereira nos aponta como um exemplo típico do gosto de possuir uma colecção de poetas e sofistas(...) na figura do jovem Eutidemo dos «Memoráveis» de Xenofonte(IV.2-1).(64) E ainda nos diz que já no século V a.C. se pode documentar a existência de bibliotecas e livrarias. Sabemos também que "na biblioteca de D. Duarte, à qual remonta o fundo mais antigo da Biblioteca Nacional, existia o livro de Marcho Tullio Ciceron (...) trasladado de latim (...) a ynstância del muy esclarecido Príncipe Don Eduarte Rey de Portugal."Esta tradução foi feita entre 1421 e 1424 e foi impressa pela primeira vez em 1969.(65) Ao que nos levam estes conhecimentos? A uma reflexão profunda. Ao interrogar se em vez da caminhada ser em frente, se não se estará a regredir. Pugno para que as livrarias não fechem as suas portas e que as bibliotecas se tornem cada vez mais acessíveis, já que no século V a.C. elas eram uma realidade. Afinal, foram os livros que Cícero leu, foram os professores que Cícero ouviu, foram as bibliotecas que frequentou (Cipião Emiliano trouxe para Roma, como espólio, os livros da biblioteca de Alexandria, a qual Aristóteles, como professor de Alexandre, havia ajudado a fundar), quer em Roma, em Atenas ou na Ásia, que permitiram a sua cultura e o fazer-se um grande orador.
Isso lhe terá permitido defender uma causa que, para além de um pedido de cidadania, foi um afirmar do "orgulho de ser escritor". Dirá: todos ficariam na sombra, se lhes não valesse a luz das letras." (66)(...) Se muitos homens insignes se deram ao trabalho de nos deixar estátuas e bustos, representações de corpos e não de espíritos, não devemos nós empenharmo-nos em deixar uma imagem dos nossos desígnios e qualidades, gravada e polida por excelsos talentos?(66)(...) Por tudo isto Juízes, preservai este homem (...) cuja causa é, na verdade, (...) justa.(66)
Era justa porquê? Porque o grego Archia, como poeta, escritor e professor, merecia usar o nome romano de Aulo Licinio, e ser protegido de longa data, da famosa família dos Lúculos. "Archia acompanhou o exército com o preclaro general Lúcio Lúculo;"(66) por isso não se recenseara e os arqivos de Heracleia haviam ardido; logo, não havia a prova escrita que Gratio exigia. Havia que fazer fé na palavra dos Lúculos e de importantes testemunhas, e aceitar a defesa de Cícero em prol do valor das letras, que concediam honra e glória.
Gratio assentava na acusação a Archia, de "usurpador do título de cidadão." Como estrangeiro, ao abrigo da Lex Papia (de 65 a.C.), Archia devia ser expulso de Roma.
Eis que por fim concluo que, para além de ser novidade num tribunal romano se ouvir um louvor à inter-penetração da cultura grega, e ao pela poesia e pela cultura, também é este livro, «Pró-Archia», um testemunho do tempo que então se vivia. "Sobretudo de particularismos nacionalistas e o espírito de rotina que ainda então dominavam a sociedade romana." (67)
Tão longe! E tão perto! Quando me parece vivermos de novo "o mito da pureza, (...) o fantasma de uma origem sem traços estrangeiros nem misturas."
Qual o medo de Gratio? "Que o estrangeiro se lhe venha a assemelhar" ou "que o estrangeiro que pode existir dentro de si saia, se exprima?" (68)
Archia, grego, ou Aulus Licinius, romano, era acima de tudo poeta e escritor, possivelmente o seu "espírito não tinha fronteiras."(69) Talvez fosse como Sócrates que se considerava não cidadão de Atenas, mas cidadão do mundo.
Terá vivido "o passo suspenso da cegonha?"(70) Cícero com a sua erudição e cultura, terá, porventura , conseguido viver e assimilar o seu eu romano profundo, e o seu eu estrangeiro.
Oxalá o mundo actual o consiga. Quem sabe? Atavés do Amor profundo à poesia. Ao outro, a quem ela se dedica, ao outro da sua própria essência.

Cedante arma togae.
Cicero

Lisboa, Abril de 1992

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O AEDO OU RAPSODO - O Poeta (Conclusão)

O poeta era o centro das festas e reuniões. Imprescendível na côrte, e aos grandes generais, que em campanha se faziam acompanhar dos melhores poetas ou aedos. Eles, para além de honra e glória que lhe tributavam com os seus versos, e de cantarem as suas façanhas e actos heróicos, também eram motivo de olvido das dores das batalhas, quando estes heróis depunham a espada. Esta era então substituída pela pena do poeta. Aqueles, que como Anfião, segundo a mitologia, teria movido, com os sons harmoniosos da sua lira, as pedras para a construção das muralhas da cidade de Tebas. Ou, à semelhança de Anfião, o poeta mítico Orfeu que conseguira amansar as feras com a suavidade do seu canto. Teria mesmo aplacado Cérbero, monstruoso cão de três cabeças, e as próprias Fúrias, aquando da sua descida aos infernos para trazer de novo à vida sua esposa Eurídice.
Isto mesmo podemos conferir em Cícero quando in «Pró-Archia», diz para a assistência: "Ninguém é, na verdade, tão avesso às Musas que se não resigne a confiar à poesia o pregão eterno dos seus feitos." E refere Temístoles, o "insigne varão de Atenas", general que venceu a batalha naval de Salamina (480 a.C.). Também Camões, como Cícero, nos fala deste estadista em «Os Lusíadas»:

"E diz que nada tanto o deleitava
Como a voz que os seus feitos celebrava"

(Canto V,93,7-8)

Vai longa a enumeração de quanto os antigos consideraram importante a pessoa e o engenho do poeta. Ele era digno do panteão do herói. Tinha lugar de estima na sociedade. Como se tivesse voz profética. Mas se assim foi na Antiguidade Clássica, o mesmo parece não ter acontecido ao longo dos tempos.
Sabemos como Luís Vaz de Camões recebeu de D. Sebastião uma mesada que permitiu um fim de vida pobre e austero. E a este Rei tinha dedicado e lido o poeta a sua obra bela e imortal. No entanto, quando parte para Alcácer-Quibir, D. Sebastião, também como Alexandre ou Temístoles, leva na sua comitiva real, Diogo Bernardes, o seu eleito poeta. Ele admirava-os. E aqueles que não os admiram? Para esses, que indignos são destas almas eleitas, já o fragmento da lírica arcaica dava resposta:

"Quando morreres, hás-de jazer, sem que haja no futuro memória de ti nem saudade. É que não tiveste parte nas rosas de Piéria. Invisível, andarás a esvoaçar no Hades, entre os mortos impotentes." (63)

domingo, 11 de dezembro de 2011

O AEDO OU RAPSODO - O Poeta (Continuação)

Para Sócrates esses anéis que formavam uma cadeia entre si tinham uma hierarquia. Explica então a Íon que o primeiro anel é o poeta, o segundo o rapsodo (actor ou cantor) e o terceiro seria o espectador (ou o leitor)(58).
Ao longo dos tempos o valor do poeta foi apreciado.
Alexandre em campanha fazia-se acompanhar de poetas e escritores. É o próprio Cícero que refere na defesa de Archia que "ao parar no Sigeu, junto ao túmulo de Aquiles, ele clamou: Ó afortunado jovem, que encontraste um Homero pregoeiro do teu valor! E justamente (continua Cícero). "Se não tivesse existido essa magnífica «Ilíada», o mesmo túmulo que cobrira o seu corpo, lhe teria encoberto o nome!"(59)
Com estas referências queria Cícero fazer ver aos juízes que este "poder" dos poetas de conceder a imortalidade não podia ali ser ignorado. "Não devem os juízes de toga enjeitar a veneração das Musas e a defesa dos poetas."(60)
Defesa e veneração que encontaremos também na «Eneida» de Virgílio, em louvor de Augusto e para glória do povo romano.
Também Camões imortalizou pelo seu canto o nosso povo, através daqueles que escolheu para nele figurarem, ofertando-o, qual mensageiro divino, ao seu Rei:

"Quão doce é o louvor e a justa glória
Dos próprios feitos, quando são soados!
Qualquer Nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes já passados.

in: «Os Lusíadas» Canto V, 92,1-4)
(...)

Não tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandre, na peleja,
Quanto de quem o canta os numerosos
Versos: isso só louva, isso deseja.

(Canto V, 93, 1-4)
(...)

Às Musas agardeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na Lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga;

(Canto V, 99, 1-4)

E imortalizou também Cícero que encontramos explicitamente nos seus versos, assim como "ecos" das suas obras. Maria Helena Rocha Pereira refere que na última estância de «Os Lusíadas», encontamos - Pro-Archia - obra "que ficou conhecida como a magna charta do humanismo."(61)

"De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja."

(Canto X, 156, 7-8)

Do acima exposto, verificamos que na Antiguidade Clássica os aedos e os rapsodos, quando poetas, eram considerados como seres distintos. A opinião geral era que se nascia poeta. Zeus lhes concedia esse dom. Normalmente os aedos e os rapsodos eram também poetas e não só recitadores dos poemas homéricos ou de outros. Também temos de constatar a realidade daquele tempo. A cultura era transmitida oralmente, e os aedos transmitiam-na de geração em geração. Muito poucos dominariam a escrita, e era hábito, mesmo quando já existia um maior número de letrados, a leitura em voz alta. Daí que o rapsodo no Íon de Platão, seja considerado como o segundo anel dessa corrente que o mesmo íman transporta. O poeta sendo o primeiro podia, por isso, ser também o segundo elo, quando ele próprio compunha e recitava os seus versos. Os espectadores ou ouvintes eram o elo final, aos quais se destinava todo o engenho do poeta, aedo ou rapsodo. Só este conjunto formava o harmonioso. Tal como se fosse "uma partitura musical" que só executada dá prazer pleno.
Assim, "no poeta, o génio era virtude por excelência."(62)

(continua)

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

O AEDO OU RAPSODO

O POETA

A Grécia antiga evidenciou os seus poetas e deu-lhes o merecido "enquadramento social". Isso é patente na literatura homérica em que vemos o aedo beneficiar de um estatuto especial, quase divino.
Na «Odisseia» podemos constatar que existiam, quer na côrte de Alcinco, quer na de Ulisses, quer na de Agamemnon, aedos nos quais os soberanos confiavam e aplaudiam. Eles animavam os banquetes cantando "gestas heróicas ou mitológicas, fazendo-se acompanhar à lira melodicamente." Esta poesia e música aliadas davam "um conceito de felicidade," visível na "fala de Ulisses ao rei dos Feaces: (...)'que bom é escutar um aedo com valor deste!/a sua voz é semelhante à dos deuses!/nem eu sei de vida mais agradável..."(52)
Chegado à sua côrte, Ulisses presenteia Demódoco durante a festa com carne,"para o honrar especialmente". Esta honra era também atestada pela confiança neles depositada. Agamémnon confiou a sua mulher a um aedo antes de partir para Troia (canto III), e o próprio aedo de Ulisses, Fémeo, era como que conselheiro de Penélope. Quando este pede clemência a Ulisses, atribui-se a si mesmo origem divina, dizendo:
"Aprendi tudo por mim. Um Deus me pôs no espírito toda a espécie de melodias. Eu saberei cantar para ti, como se fosses um deus!...(53)
O próprio Telémico intervém em seu favor para que Ulisses lhes salve a vida. E logo no canto I (Odisseia) quando Fémio cantava os acontecimentos funestos e Penélope chorava, telémico diz-lhe:
"Minha mãe, porque censurar o aedo fiel, por nos deleitar conforme o espírito o impele? De resto, não são culpados os aedos, mas Zeus, que a cada um dos homens que buscam o seu sustento deu a parte que entendeu. Não lhe levemos a mal que cante dos Dânaos a triste sorte./ os homens apreciam, mais que tudo o canto/ que tiver mais novidade aos seus ouvidos."(54)
Zeus é que estava na origem do poder da criação e originalidade dos aedos. Esta era uma arte espiritual, que tornava os homens e os seus feitos imortais. "Píndaro via a posição dos poetas no mundo (...) como necessários seres divinos, para cantar tanta beleza." (55)
Arquíloco (séc.VII a.C.) escrevia: "Eu sou o servidor do senhor dos combates e conhecedor dos amáveis dons das Musas."(56)
Também Simónides (séc. VI-V a.C) n'O Canto de Orfeu lhe atribui dons divinos:
"Inúmeras, as aves voavam/sobre a sua cabeça/e os peixes, em pé, saltavam das águas de anil do mar,/ ao som do seu belo canto." (57)
Mesmo em Platão, encontramos este dom claro no seu diálogo «Ion». Põe-se a questão de este só se sentir inspirado quando recita Homero. Isto seria arte ou dom divino? Responde Sócrates ao rapsodo: "Esse teu dom de bem falar não é arte. É um poder divino, como na pedra que Eurípides chamou magnete (...) que não só atrai directamente os anéis de ferro, mas transmite o próprio poder aos mesmos anéis. (...) Em todos, porém, o poder deriva apenas da pedra. Assim também a Musa: só a Musa forma os inspirados. Através deles se constitui uma cadeia de outros seres invadidos pela divina inspiração." (533-d/e)
Para Sócrates esses anéis que formavam uma cadeia entre si tinham uma hierarquia. Explica então a Íon que o primeiro anel é o poeta, o segundo o rapsodo (actor ou cantor) e o terceiro seria o espectador (ou o leitor). (58) Ao longo dos tempos o valor destes foi apreciado.

(continua)

domingo, 4 de dezembro de 2011

O VALOR DA POESIA (Continuação)

Contudo, se por um lado nos surgem estas opiniões, outras há que preconizam a necessidade de a poesia se determinar por uma certa ética. Naquele tempo em que Xenófanes apelidava Homero "de educador da Grécia" já alguns filósofos pré-socráticos se insurgiam contra a falta de moral que se verificava "em grande número de mitos." Heraclito foi um deles, assim como Demócrito, que já compusera uma obra "Peri Poieseos" ("sobre a poesia"), de que só se conhecem alguns escassos fragmentos. (50) Teria sido (segundo E.R.Dodds) o primeiro, antes de Platão, a falar de êxtase poético.
Platão também na «República» se refere ao papel dos poetas e da poesia na educação. (332-b) Eles eram responsáveis pela criação de mitos e de "falas enigmáticas" que não formariam bem o cidadão. "Na cidade ideal não se aceita o poeta que sabe tudo, mas só o que imita o homem de bem".(392)
Para se avaliar a ética e a estética da poesia, proporá mais tarde Aristóteles, como resultado dos seus estudos e das suas aulas, "O Cânon estético para a aferição do valor da obra de arte",(51) que irá originar a sua «Arte Poética». (incompleta)

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

O VALOR DA POESIA (Continuação)

Notai, ao lerdes, que na pena deste poeta já se assinala o "misturar do útil ao agradável" que "deleita e ao mesmo tempo ensina o leitor,"(44) dizendo-lhe: a poesia tem a capacidade de louvar com o seu canto as cidades e de proporcionar prazer, e ensina que o valor dos homens reside na sua heroicidade ou no seu engenho. Aqui verificamos que a poesia, aliados que estejam "o engenho e o trabalho,"(Horácio) são capazes de se tornarem educadores.
Teria sido Hesíodo que inaugorou "com os seus poemas (...) o caminho do didactismo."(45) Foi o primeiro a atribuir nomes às Musas, e, ao fazê-lo, fornece-nos, (...) uma poética em forma teológica. (...) Na verdade, Clio significa a glória que os versos concedem; Euterpe, o deleite de escutar o canto; Tália, os banquetes onde ele se entoava; Melpómene, a melodia; Terpsícore, a dança; Erato, o desejo e o prazer de ouvir; Polímnia, a abundância de sons; Urânia, o seu carácter celestial, divino; Calíope, a beleza da voz."(46)
Novidade ou originalidade, como lhe queiramos chamar, de facto é surpreendente como Hesíodo dando nome próprio às Musas, consegue conciliar tudo o que em si mesmo deve constituir uma "poética educativa". Na escola, o canto, a dança, a música, aliados ao prazer de aprender a ouvir, deveriam constituir a base da educação.
Verificamos que os antigos tinham a noção da importância da poesia: "a consciência (...) do valor pragmático da sua arte, agudíssima em Píndaro, não é um facto isolado na Grécia arcaica. (...) Na elegia 2 de Xenófanes (...) surge-nos esta afirmação surpreendente: (...) melhor do que a força de homens e corcéis é a nossa arte. Também (...) a Safo cabe a mais antiga reivindicação de que a poesia confere uma espécie de imortalidade, não só àqueles que celebra (...) mas também aos seus cultores. (...) O lírico Alcman exteriorizou a consciência da criação poética neste fragmento:

Estes versos e esta música
Alcman os inventou,
Tendo entendido das perdizes as falas canoras. (47)

Como refere a autora, Maria Helena da Rocha Pereira, de cujos estudos me auxiliei para este trabalho, verificam-se nestes versos "a indossulubilidade da música e da poesia. (...) Era ao som da música que as crianças atenienses se imbuiam dos ensinamentos dos grandes autores, como se lê no Protágoras de Platão, em passo referente à educação antiga: (326 a-b)"Além disso, depois de saberem tocar, aprendem as obras dos grandes poetas líricos que executam na cítara. Assim obrigam os ritmos a penetrar na alma das crianças, de molde a civilizá-las, e, tornando-as mais sensíveis ao ritmo e à harmonia, adestram-nas na palavra e na acção. Na verdade, toda a vida humana carece de ritmo e de harmonia." (48)
Mas o papel da poesia como educadora surge ainda em protágoras(338,339a) num diálogo platónico (séc. V-IV a.C.):

"Em meu entender, Sócrates - disse ele - a parte primacial da educação de um homem é ser entendido em poesia. E isso consiste em ser capaz de comprender as palavras dos poetas, o que é bem feito e o que não é, saber distinguir e dar as suas razões a quem o interrogar."(49)

(continua)