quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

CONCLUSÃO - A justa cidadania de Archia

A concluir, não queria deixar de referir aquilo que a Professora Maria Helena da Rocha Pereira nos aponta como um exemplo típico do gosto de possuir uma colecção de poetas e sofistas(...) na figura do jovem Eutidemo dos «Memoráveis» de Xenofonte(IV.2-1).(64) E ainda nos diz que já no século V a.C. se pode documentar a existência de bibliotecas e livrarias. Sabemos também que "na biblioteca de D. Duarte, à qual remonta o fundo mais antigo da Biblioteca Nacional, existia o livro de Marcho Tullio Ciceron (...) trasladado de latim (...) a ynstância del muy esclarecido Príncipe Don Eduarte Rey de Portugal."Esta tradução foi feita entre 1421 e 1424 e foi impressa pela primeira vez em 1969.(65) Ao que nos levam estes conhecimentos? A uma reflexão profunda. Ao interrogar se em vez da caminhada ser em frente, se não se estará a regredir. Pugno para que as livrarias não fechem as suas portas e que as bibliotecas se tornem cada vez mais acessíveis, já que no século V a.C. elas eram uma realidade. Afinal, foram os livros que Cícero leu, foram os professores que Cícero ouviu, foram as bibliotecas que frequentou (Cipião Emiliano trouxe para Roma, como espólio, os livros da biblioteca de Alexandria, a qual Aristóteles, como professor de Alexandre, havia ajudado a fundar), quer em Roma, em Atenas ou na Ásia, que permitiram a sua cultura e o fazer-se um grande orador.
Isso lhe terá permitido defender uma causa que, para além de um pedido de cidadania, foi um afirmar do "orgulho de ser escritor". Dirá: todos ficariam na sombra, se lhes não valesse a luz das letras." (66)(...) Se muitos homens insignes se deram ao trabalho de nos deixar estátuas e bustos, representações de corpos e não de espíritos, não devemos nós empenharmo-nos em deixar uma imagem dos nossos desígnios e qualidades, gravada e polida por excelsos talentos?(66)(...) Por tudo isto Juízes, preservai este homem (...) cuja causa é, na verdade, (...) justa.(66)
Era justa porquê? Porque o grego Archia, como poeta, escritor e professor, merecia usar o nome romano de Aulo Licinio, e ser protegido de longa data, da famosa família dos Lúculos. "Archia acompanhou o exército com o preclaro general Lúcio Lúculo;"(66) por isso não se recenseara e os arqivos de Heracleia haviam ardido; logo, não havia a prova escrita que Gratio exigia. Havia que fazer fé na palavra dos Lúculos e de importantes testemunhas, e aceitar a defesa de Cícero em prol do valor das letras, que concediam honra e glória.
Gratio assentava na acusação a Archia, de "usurpador do título de cidadão." Como estrangeiro, ao abrigo da Lex Papia (de 65 a.C.), Archia devia ser expulso de Roma.
Eis que por fim concluo que, para além de ser novidade num tribunal romano se ouvir um louvor à inter-penetração da cultura grega, e ao pela poesia e pela cultura, também é este livro, «Pró-Archia», um testemunho do tempo que então se vivia. "Sobretudo de particularismos nacionalistas e o espírito de rotina que ainda então dominavam a sociedade romana." (67)
Tão longe! E tão perto! Quando me parece vivermos de novo "o mito da pureza, (...) o fantasma de uma origem sem traços estrangeiros nem misturas."
Qual o medo de Gratio? "Que o estrangeiro se lhe venha a assemelhar" ou "que o estrangeiro que pode existir dentro de si saia, se exprima?" (68)
Archia, grego, ou Aulus Licinius, romano, era acima de tudo poeta e escritor, possivelmente o seu "espírito não tinha fronteiras."(69) Talvez fosse como Sócrates que se considerava não cidadão de Atenas, mas cidadão do mundo.
Terá vivido "o passo suspenso da cegonha?"(70) Cícero com a sua erudição e cultura, terá, porventura , conseguido viver e assimilar o seu eu romano profundo, e o seu eu estrangeiro.
Oxalá o mundo actual o consiga. Quem sabe? Atavés do Amor profundo à poesia. Ao outro, a quem ela se dedica, ao outro da sua própria essência.

Cedante arma togae.
Cicero

Lisboa, Abril de 1992

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