quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

História Tragico-Marítima (Introdução)

A folha de rosto deste trabalho representa a capa original do primeiro Tomo da «História Tragico-Marítima» com a dedicatória a D. João V e datada com numeração romana de 1735, "Lisboa Occidental. Na Officina da Congregação do Oratorio. Com todas as licenças necesarias."
A intenção deste 'resumo' era para dar uma aula, que não chegou a concretizar-se e o trabalho foi entregue à docente de História dos Descobrimentos tal como tinha sido preparado. É parte integrante do livro que registei com o nome: REVER O SONHO E FAZER HISTÓRIA. Continuamos a "Fazer História". Adiante...

Introdução

Como despertou em mim o gosto pela literatura de viagens, e a curiosidade em elaborar este trabalho?
Foi durante um seminário que tive o previlégio de fazer com Luciana Stegagno Picchio sobre: "O Método Filológico," no qual se dedicou uma aula à "Literatura de Viagens", na Faculdade de Letras de Lisboa, em 23/11/90. Nela participava um grupo de especialistas que se interessavam por este estudo, e que se encontravam regularmente, para trabalhar em conjunto. A liderar, a Professora Alzira Seixo.
Começou por se falar do assunto numa perspectiva da recepção, e acabou por se enveredar por diversos percursos ao sabor das próprias interrogativas e do interesse e curiosidade dos presentes.
Falou-se das «Viagens de Mandeville» e dos mitos que perpassam estas narrativas; das viagens de Vasco da Gama e de Cristovão Colombo; de Américo
Vespúcio e de Pero Vaz de Caminha. De como Montaigne fala dos canibais do Brasil. De Fernão Mendes Pinto e da sua invenção aliada à realidade. De como Colombo teria lido Mandeville e todos os clássicos da época, e, por isso, esperava encontrar e ver sereias, onde estavam Orcas. E em como o imaginário português é recheado de mar, - o conto do mar é português -, dizia L.S. Picchio.
À pergunta da professora Alzira Seixo se Portugal teria mais literatura de naufrágios do que os outros países, a resposta é não. Os holandeses e os ingleses têm igualmente muita literatura de viagens e naufrágios, mas que os portugueses coligiram na sua "História Trágica-Marítima", os muitos relatos de naufrágios, o que foi uma medida cultural e literária muito inteligente. Quem a tomou?
Foi Bernardo Gomes de Brito, bibliógrafo, que no século XVIII tomou a iniciativa de reunir em volume as "relações" dos naufrágios.
Estes relatos eram escritos normalmente por algum sobrevivente, e eram mandados publicar. Muitos deles são anónimos, como este do Galeão de S. João. O mérito de B. G. de Brito foi coligí-los nestes dois tomos, que vieram a ser impressos na Oficina da Congregação do Oratório em 1735 e 1736. Fala-se que haveria um terceiro volume preparado, mas disso não há a certeza. Certo é que a este homem de valor se deve a nossa «História Tragico- Marítima,» de que todos somos devedores e sobre a qual Ramalho Ortigão escreve: "é o mais admirável, o mais belo, o mais dramático, o mais comovedor, o mais eloquente livro de que se pode gloriar a literatura de uma nação" ( Farpas IV, 1888, pág. 245).
Pareceu-me que este epíteto dizia bem tudo aquilo que eu poderia ou queria dizer. Por isso, o escolhi para começar este trabalho.
Na impossibilidade de resumir para esta aula os doze relatos de que constam os dois volumes, vou falar-vos de um naufrágio que me tocou especialmente. Nele podemos encontrar uma dignidade e uma honra fidalga, que as pessoas defendem até ao limite supremo da vida. Nem o máximo sofrimento e o vil desrespeito destrói o pudor e a integridade que encontramos em D. Leonor e D. Manuel Sepúlveda, capitão do Galeão S. João.
Aqui podemos verificar que a união faz a força, mesmo na adversidade, pois só separados e desarmados os conseguiram vencer. Pela traição, porque a fome e a sede, a dor de perder os filhos e companheiros, os ferimentos sofridos, tudo foi suportado com estoicismo. Quase até ao raiar da loucura, o capitão protegeu e comandou os seus homens. Abandonou-se à morte na mata, já depois de ter perdido e enterrado a mulher e os dois filhos.
Mesmo na desgraça se encontra heroicidade nestes portugueses, e capacidade para sair das situações mais extremas e aflitivas. Vejamos o exemplo de Pantaleão de Sá, que se fez passar por médico e assim conseguiu salvar a vida. Vejamos o de D. Leonor que, sendo nobre de nascimento, ajuda a transportar os filhos das outras mulheres e dá animo na caminhada. Assim como a bondade de Manuel de Sousa Sepúlveda quando dá os pregos aos cafres sem lhes ficar com nada em troca. As suas vigílias nocturnas, e o sofrimento pela perda dos que iam ficando para trás. São vários os exemplos de perseverança, coragem e audácia que muita admiração causam.
Dir-se-ia que a fatalidade os perseguiu quando decidiram abandonar o acampamento do rei que bem os tinha recebido na sua aldeia. Ressaltemos aqui o sentido de obediência que subjaz neste relato.
A ideia que os animava não era errada; errado foi partir para uma viagem tão longa, só com dois pares de velas suplentes e sem peças para substituir quando as originais se quebravam. Partido o leme começa a perdição. Depois a ilusão de ver terra mais de perto é que os pôs no caminho da tempestade e dos ventos que, tornavam aquele galeão tão grande e com uma carga tão rica, numa frágil e desprotegida embarcação. Com os seus mais de quinhentos passageiros em joguetes, na fúria do mar, sem se poderem, por vezes, erguer, e, outras, por fim, a ele lançados e tragados, como gotas de espuma em onda a enrolar.
Tudo era tenebroso e, mesmo assim, continuavam na esperança que cada viagem somaria um sucesso. Mas eram mais os desenganos que os sucessos. Muitas vezes tinham que deitar a carga em excesso ao mar e quando numa situação extrema, tinham de escolher quem ia nos bateis e quem se deitava a afogar.
Foi, pois, com as suas vidas que adubaram e desbravaram o mar, para os seus herdeiros receberem um Império de suor e lágrimas.

(continua)

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