quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Naufrágio do Galeão S. João na Costa do Natal

Corria o ano de 1552 quando Manuel de Sousa Sepúlveda, "fidalgo mui nobre e bom cavaleiro", que na Índia tinha dado o melhor de si e destribuído os seus haveres e ajuda, partiu para uma viagem que o levaria a Portugal. Em 3 de Fevereiro já tinha feito o carregamento do galeão S. João em Coulão. Mas, como aí houvesse puca pimenta, resolveu ir a Cochim acabar de abastecer-se, apesar de muitos trabalhos, por causa da guerra que se travava em Malabar. No entanto, outras mercadorias preenchiam o lugar que não era ocupado pela pimenta, e a embarcação ia muito carregada.
A 13 de Abril viram a Costa do Cabo. Há muito tempo que haviam partido da Índia. Mas traziam umas velas muito fracas, que terão sido a causa da sua desgraça. O piloto André Vaz tencionava tomar o caminho do Cabo das Agulhas, mas, como o capitão Manual de Sousa lhe pedisse para ir ver a terra mais de perto, este fez-lhe a vontade. Aproximavam-se da terra do Natal, e, como o vento estivesse a favor, percorreram a costa até ao Cabo das Agulhas. Porém, os ventos não eram certos. Uns dias bonançosos, outros tormentosos. Consultados o mestre e o piloto, foram de opinião que o melhor era desviar o rumo. Resolveram assim, porque a nau era muito comprida e levava carga em excesso. Já se lhes havia rasgado, com o vento, um velame e só tinham de reserva outro. Havia que ter cuidado, porque as rotas não eram certas. Tudo isto ponderavam, no tempo que levavam a remendar as velas, no perigo de aportarem por causa dos baixios, e do vento de nordeste.
Aquilo que temiam aconteceu e, durante três dias, tiveram grande tempestade. O galeão parecia, então, uma casca de noz, levado pelas ondas do mar bravio que parecia querer metê-lo ao fundo. Acalmada a ventania, vindo a bonança, aqueles homens que já se viam perdidos,sentiram alívio, mas eis que o carpinteiro da nau dá conta que se haviam partido "três machos do leme." Foi em segredo dizer a Cristóvão Fernandes da Cunha, o 'Curto', e ele, "como bom oficial e bom homem", disse-lhe para nada dizer ao capitão, nem às pessoas para lhes "não causar terror e medo".
Mas pouco tempo durou a bonança e já o vento soprava a tempestade, e lhes levava a nau na sua direcção. Viram-se, sem parte da vela e apressaram-se a recolher a da proa, antes de ficarem sem nenhuma.
Mas eis que já a nau se atravessa, ainda não era acabado de retirar "o traquete de proa". Batendo-lhe o mar com tanta braveza, rebentou com os cabos de reforço das enxárcias, cordoalha, proleame, etc. Àquele vento, àquele mar tamanho, não havia homem que fizesse frente. Nem conseguiam manter-se em pé. Havia que cortar o mastro e esperar. Mas eis que não são precisos os machados, porque já os elementos em fúria arrebentam e levam, qual pluma pelo ar, "o mastro grande por cima das polés das coroas." como se a talhe de foice se fizesse, "e pela banda de estibordo o lançasse o vento ao mar".
Consertaram tudo, conforme o possível, mas tudo estava tão remendado que qualquer brando vento tudo tornaria a levar. E, porque o leme já fraco se encontrava, o vento partiu-o ao meio. Já a nau metia muita água e, para não irem a pique, "cortaram o mastro da proa que lhes fazia abrir a nau."
Estariam a quinze ou vinte léguas de ver terra, e não tinham mastro, nem leme, nem velas. Resolveram fazer das roupas, que traziam como mercadoria, umas velas para tentar chegar a Moçambique. Foram dez dias de penosos trabalhos, em que todos os que podiam colaboravam. Fizeram de uma árvore um novo leme, mas, sem molde que lhes servisse de medida, acabado este, não servia na nau. Quando já era grande o desespero, eis que avistaram terra.

(continua)

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