Que forças levaram os homens às descobertas?
Qual o contributo do homem português na tarefa dos descobrimentos?
Todas estas modificações são, efectivamente, reflexo de um estudo apaixonado dos livros antigos, que foi proporcionado pela divulgação que permitiu a imprensa, a que está ligado o nome de 'Aldo Manuzio', que veio a ser considerado como o "maior impressor italiano e o verdadeiro criador da tipografia grega na Europa".(10) Mas, para que fossem levadas a cabo, teve de existir por parte dos homens um grande gosto pelo conhecer, por ir mais além do que proponham os livros antigos. Teve que manifestar-se um espírito crítico, uma renovação das ideias, que permitiu uma mutação do campo epistomológico. "O nascimento da ciência moderna não pode compreender-se sem o trabalho crítico dos filósofos. Eles romperam com as ideias teóricas do aristotelismo e do geocentrismo, tornando caducos todos os esquemas em que se apoiava a reflexão desde a antiguidade. (...) Em cento e cinquenta anos, o horizonte da investigação renovou-se completamente." (11)
Para que se desse essa renovação, homens como Nicolau de Cusa tiveram que ter uma "grande audácia teórica e o sentido da novidade. (...) Este humanista é antes de mais um homem de paz," diz-nos H. Védrine. Talvez porque foi um homem de paz conseguiu deixar semelhante obra à humanidade. "A sua obra mestra, «A Douta Ignorância» (1440), não cabe em nenhum quadro pré-estabelecido. Do ponto de vista cosmológico, é a afirmação muito original na época da unidade do universo, sem referências às hierarquias aristotélicas. Filosoficamente (...) instaura uma nova lógica, perguntando a si mesmo em que condições será possível uma 'douta ignorância' (quer dizer, uma ignorância consciente dos seus limites). Faz, assim, em certa medida, uma pergunta pré-crítica."(...) Dirá: 'entre o finito e o infinito não há nenhuma proporção'. (...) Para ele, "o máximo absoluto e o mínimo absoluto coincidem." «A Douta Ignorância» quere precisar a ideia de unidade: "Dizer que tudo está em tudo, o mesmo é dizer que Deus, através de tudo, está em tudo, e que, através de tudo, tudo está em Deus." (12) Este pensamento liberto caracteriza o Renascimento.
"A liberdade define o homem. (...) Por toda a parte se admira o talento e leva-se constantemente o indivíduo a ultrapassar-se. Colocado ente o céu e a terra, pode livremente inclinar-se para cima ou para baixo. (...) Os países católicos, mais maleáveis, deixarão maior lugar ao indivíduo. (...) Erasmo era partidário do livre-arbítrio, a que Lutero oporá o servo-arbítrio cristão voluntáriamente submetido à lei divina. Rabelais e Bruno, fiéis nisso ao espírito do Renascimento, opuseram-se em geral ao servo- arbítrio dos luteranos. Essa questão dividirá a Europa no século XVI, pois esta fé depurada implicava a recusa do antropocentrismo dos humanistas italianos. (...) A liberdade de investigação (e de crítica) passava primeiro pela exaltação do índivíduo, logo, nunca os humanistas poderiam estar de acordo com o servo-arbítrio luterano.
Ao mesmo tempo, o mundo alarga e oferece um campo de investigação imenso à reflexão, à imaginação, à audácia dos conquistadores. À Europa mediterrânica juntam-se vastas extensões das costas de África, descobertas pouco a pouco; depois a América e, por fim, com Fernão de Magalhães, a primeira viagem à volta da Terra." (13)
Porque foram possíveis semelhantes empreendimentos? Porque o Renascimento conheceu a exaltação do trabalho e da actividade. Erasmo, por exemplo, acentuou a sua fé no homem e na cultura, assim como Ficino, "que foi o primeiro que tentou pensar o homem no quadro de uma filosofia da cultura tomada como desenvolvimento e unidade na diversidade duma mesma reflexão. A velha pergunta medieval: como conceber as relações entre a razão e a revelação?, ele substituiu-a por uma pergunta original: que deve ser o homem que, de Platão a Cristo, passando por Pitágoras e Hermes Trimegisto, uma mesma interrogação se lhes imponha? E repondeu: um ser quase divino. E nessa certeza, o pecado, a morte, têm apenas um lugar secundário. Só conta a actividade, prova da dignidade do homem." (14)
É este ser quase divino, ou ajudado por esse Ser Divino, que, através da confiança nele manifestada, vai provar com a sua actividade, na grande empresa das descobertas, a sua dignidade de Homem, e, acima de todos, porque foram os primeiros, estão os Portugueses.
Continuo na senda desses Homens que das fraquezas fizeram forças e mostraram ao mundo que é possível fazer-se filosofia com o conhecimento empírico, com o conhecimento sensível, feito de experiência vivida, amarga, feliz, dada de forma directa e simples. Através da nossa literatura de Viagens, o mundo ficou quedo de espanto com semelhantes revelações. Não eram da Universidade que saíam estes conhecimentos, mas sim da verificação dos factos. Eles viram e contaram; deram o seu contributo.
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Notas:
(10), (11)- Garin, Eugénio, «O Renascimento»,col. Universitas, Telos, Porto, 1964
(12); (13); (14)- Védrine, Hélène, «As Filosofias do Renascimento», col. Saber, Publicação Europa América, Lx., 2ª ed., 1971. Pp.19; pp.25; pp.43.
(continua)
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