sexta-feira, 13 de abril de 2012

Elegia a Inês de Castro

No centro do palco reflexos de luzes dão a ideia de labaredas, línguas de fogo. Ao fundo, e contornando a "fogueira", efeitos de fumo branco, cinza, que contrasta com as cores das chamas.
Eis que surge Inês. Não se lhe notam sinais de vir do fundo do inferno. É linda! Possui aquela beleza que só é dada ao rosto por um coração cheio de perdão, de amor e de ternura.
Um narrador (Garcia de Resende), vestido à época, antecipa-se e fala como se estivesse nos fins do século XX:

"Senhoras", se algum rei e senhor
Vos amar e jurar fidelidade
se aceitardes retribuir e acreditar
eu vos quero prevenir
a paga que tereis desse amor
para que senhoras, saibais
o que deveis fazer.
Vêde o que aconteceu a esta senhora
Ela vos dará conhecimento,
se a quiserdes ouvir contar.

Inês avança e num longo monólogo fala para o público, entre a penumbra e a luz. E interroga-o:

"Qual será o coração" que sem piedade
e com grande crueldade,
dá a morte sem razão?
Era eu "triste" inocente.

Meu único pecado foi amar e dedicar lealdade
ao príncipe meu senhor.
Quisera o meu destino que por amor
fosse elevada à mais alta condição.

Primeira dama de meu príncipe.
Mas de tão alto subir
houve quem o não permitisse
e o mais baixo me fez cair.
Antes não tivesse conhecido tal ardor,
pai, filhos, hoje por mim não chorariam.

Um arrebatado e puro amor nos uniu
"conheceu-me, conheci-o,
quis-me bem e eu a ele",
perdeu-me, também o perdi.

Meu amor era tão grande
que lhe dei "minha liberdade"
e nele totalmente acreditei
não me importando a "perda da fama"
sendo eu uma formosa mulher.
Porém, meu senhor comigo não podia casar.
D. Afonso "aconselhado" viu-se forçado
a ter que me mandar matar.

Assim vos conto, que estando eu sossegada,
vivendo como uma princesa "muito honrada"
e de tudo rodeada
por meu senhor muito amada, 
vi chegar cavaleiros pelos campos do Mondego.
Coimbra do meu enlevo
iria presenciar a dor de meu coração.
Comecei a entristecer
e para mim própria falei:
ao que virão estes homens?

Soube então que era el-Rei,
pai de meu amado D. Pedro.
Meu coração estremeceu e perdi logo a voz.
Pressentia que algo de ruim iria acontecer.

Logo o Rei se apeou
e prontamente "saí à porta da sala" para o receber.
Aí se iniciaram minhas lágrimas
Que as não pude conter,
pois sabia, meu coração mo dizia
o que vinham ali fazer. 
Quinta das lágrimas, assim hoje lhe chamais
àquela que fora a dos risos.
Aí se iniciou. Caíam formando um rio.

Meus filhos cheguei ao redor de mim
e com grande humildade e cortesia
num choro muito sentido, implorei:
-"Havei, senhor, desta triste piedade!"

Porque matar uma indefesa mulher?
Isso não é acção de elevado coração.
"Quanto mais a mim" que me culpam sem razão,
e mãe de vossos netos sou.
Ei-los na vossa presença, "têm tão pouca idade",
que irá ser o seu destino se sem mãe forem criados,
"morrerão desamparados!"
E depois, senhor, vós sois pai,
vêde que aflição ireis dar a vosso filho.
"Não lhe deis tanta tristeza."

Sabeis o quanto ele me ama
e tanto que me quer bem.
Se eu morrer irá sofrer grande dor.
E qual foi o meu pecado, senhor?
Se algum cometi, seria justo morrer.
"Mas, pois eu nunca errei", por isso se morro,
ireis quebrar vosso ideal de justiça!
"Não me deis tão triste fim,
pois que nunca fiz maldade!"

Vendo el-Rei o quanto eu era sincera,
que nunca houvera traição,
teve de mim compaixão.
Era a mais pura verdade aquele amor tão sentido
que por seu filho tivera.
Como poderia ser considerado desobediência?
Eram leis do coração.
"Quando se disto lembrou foi-se pela porta fora.
Ele próprio já chorava"
como Rei mui piedoso, mui cristão e dedicado.

Mas um dos cavaleiros que consigo trazia,
vendo que el-Rei quebrantava,
foi atrás dele e disse-lhe:
- "Senhor, vossa piedade é digna de repreender"...
"mudaram vossa vontade as lágrimas d'uma mulher?
Se vós não a matais
não sereis nunca temido."
Pensai na querela que com vosso filho tereis,
pois por causa dela ele não quer casar
e isso nos irá dar "muita guerra com Castela."

Morra ela, para evitar muitas mortes
e teremos "paz por duzentos anos".
Vosso filho vos dará netos
de um casamento abençoado,
fora do pecado, 
e mesmo que hoje fique revoltado, 
"amanhã esquecerá".

Tudo isto o Rei ouviu de seus "leais conselheiros"
e ficou sem saber aquilo "que havia de fazer."
Porém, certa estou e vos digo:
ele "desejava dar-me a vida"
sentia um pesar imenso ao ver
que a morte eu não merecia.
Porque lhe teria o destino "feito tal partida?"

Afinal seria sobre ele
que recairia "toda esta culpa,"
que tanto lhe apertava o coração.
Disse então:
- Não vejo porque esta coitada "deva morrer."
Daí lavo as minhas mãos, 
tal como Pilatos fez com Jesus.
"Se o vós quereis fazer, 
fazei-o sem me dizer,
que eu nisso não mando nada."

E assim chegou ao fim
a intervenção do real senhor.
Mas não a dos seus "leais" vassalos,
que quando o viram afastar, sobre mim se viraram.
Eu vos conto espectadores
quão grande foi a tragédia
de um amor não consentido.

"Com as espadas na mão"
me atravessaram o coração,
a confissão me tolheram:
"Este é o galardão"
que meus amores me deram.

Após vos haver contado, eis que regresso ao "fogo" eterno daqueles que ousaram amar e quebrar as leis impostas pelos homens, não por Deus, que o não consentiria. Que vos sirva, senhoras,  esta lição; vivei comigo esta catarse.
Ficai com ela e estudai Trovas de Garcia de Resende, feitas em elegia ao amor de D. Pedro e D. Inês de Castro, que constam do Cancioneiro Geral,  o I de Portugal.

Fim
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Notas:
Estas trovas contam 219 versos que se distribuem da seguinte maneira: uma glosa de dez versos em que o narrador introduz a fala de D. Inês, dezoito glosas de dez versos, uma de nove, outra de sete, duas de três versos, uma de quatro e outra de seis versos. A seguir à palavra fim, há uma glosa que remata, com dez versos.
"Contrariamente a Camões, que só no fim explica a sua história, Garcia de Resende, de uma forma moderna, que ainda hoje se usa, põe D. Inês a reflectir sobre as suas qualidades, e dá logo no início o desfecho da história." (1)

[(1)- Notas das aulas]
  
Lisboa, Junho de 1991









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