Quando deixar de existir o paradoxo leitor, lá para o ano 2222, e passar a existir uma "verdade comum", talvez se acredite naquilo que vou contar, porque, efectivamente, o cónego Matias, escrevia: "(...) filhas de Jerusalém, se encontrardes o meu amado, fazei-lhe saber que estou enferma de amor..." Estava a compor um sermão, quando, de repente, deu consigo num verdadeiro "idílio psíquico". Com os seus quarenta anos de idade, vivera sempre entre livros e livros!
É pois na sua cabeça que vamos penetrar. Trabalhava de bom agrado num sermão que lhe encomendaram e a que não soube dizer não. Era amor e vocação! Se tinha inspiração olhava para o céu, se meditava olhava para o chão. Assim ia escrevendo inspirado, meditativo, as folhas corriam-lhe das mãos, umas com rasuras, outras não. Mas eis que, ao empregar um adjectivo, vê que não servia; queria outro, mas este ainda não serve, outro também não! Estava então a sua cabeça no topo do idílio, como se fosse no topo do Corcovado ou do Himalaia, em que todos os homens parecem pequeninos! (Dizem isso mas não é assim, não! Porque ao homem cabe medir essas alturas por isso lhes são sempre superiores, às altitudes), quando verificámos que de um lado do cérebro tinha a fonte dos substantivos, do outro a nascente dos adjectivos, e aí estão os vocábulos divididos por sua natureza sexual. Sexual? Sim leitor, as palavras têm sexo e amam-se umas às outras, acabando por casar, e o final é aquilo a que chamamos estilo! Não pode crer? Pois é, ouça com atenção a palpitação da cabeça do cónego. Ouve suspirar? O substantivo chama melodiosamente por um adjectivo que não vem.
"Vem do Líbano esposa minha..." porque é em cabeça de clérigo, se fosse de um laico diria como Romeu "Julieta é o sol..." mas que importa? Amantes sejam de Verona ou de Judá, todos têm o mesmo sentir e jurar. Assim se passa então na cabeça do cónego, escute com atenção: Sílvio chama por Sílvia, lá longe Sílvia procura por Sílvio também. E neste imenso labirinto de ideias, em que se sobe e desce colinas, amparados a raízes latinas, a salmos, mitologias, se vai criando através de forças intimas, levados pela paixão em busca da perfeição do estilo! Sílvia procura aquele que para ela será único, não um qualquer, mas um predestinado que venha para si nomeado.
Mas escrever traz também cansaço; é preciso descansar. É o que fazia o cónego; levanta-se, vai à janela, esquece por momentos aquela paixão pelas letras, olha o papagaio e o pavão, vê o sol que amavelmente o cumprimenta, sente que a natureza o conforta, olha ao longe, que ar puro, que verdura, os sons dos passarinhos misturam-se aos do piano ou do violino! Fala ao jardineiro, esquece Sílvia e Sílvio. Mas estes é que já não esperam por si. Ambos vivem agora nesse mundo escuso da inconsciência, vão do espírito irrevelado, só em sonhos parcialmente vislumbrado, é aí que eles se buscam, vamos leitor demos as mãos, na incógnita, ajude-me neste mundo de ruínas, que são as ideias, tal qual silogismos por desvendar!
Reminiscências da infância, da adolescência, inocências, ternuras, paixões encobertas. A Platão, à suprema ideia do Belo do bem, somam-se os mandarins (de Simone de Beauvoir?), deitam-se moedas etruscas ao ar; literatura inglesa. Rosas? Rosas, não? Da infância, buganvílias rubras! E histórias cantadas pelas pretas lavadeiras. Tudo é obscuro e se mistura neste difícil decifrar de dogmas da sintaxe, filosofia, psicologia, história, lições antigas panteístas (pela mão de Spinoza).
Mas que farão Sílvia e Sílvio no meio de semelhante confusão? Continuam a sua busca em direcção um do outro, saltando todos os obstáculos, pelo amor, pelo desejo; eis que, finalmente, o cónego se torna a sentar e começa a escrever: o adjectivo vai juntar-se ao substantivo, estão perto um do outro, "todo o cântico passa pelos lábios deles, tocados de febre."
Aí vão, nada mais os separará, tudo o mais ficará para trás. "Amam-se e procuram-se". Procuram-se e acham-se, "entrelaçados os braços e regressam desse mundo escuro da inconsciência para a consciência de si. Estão escritos, "irão juntinhos à impressão, constam do sermão do cónego. E Sílvio pergunta: "Quem é esta que sobe do deserto, firmada sobre o seu amado?" E Sílvia responde-lhe: "é o selo do seu coração" e não esqueça "o amor é tão valente como a própria morte."
Termina aqui, leitor, a história das histórias. Que bom seria que no mundo tudo se vivesse como na Metafísica do Estilo! Não haveria adultério, traição, mortes em vão, nem sentimentos de culpa, medo, resignação; viveriam mulheres e homens de cabeça erguida, todos sem excepção. Não seriam necessárias as máscaras, seria respeitada a fragilidade de cada um. A avareza, a hipocrisia, seriam banidas, não seria necessário viver de imaginação! E todas estas personagens, que pela história se inscrevem, viveriam uma outra vida, aquela que Prometeu predestinava a uma nova humanidade.
Tudo, porém, só assim poderá ser vivido: através do bico da nossa pena, com pena!
Pois "deixaremos este mundo tolo e mau, tal qual era quando cá entrámos." (*)
(*) (Voltaire, citado por Camilo C. Branco)
Lisboa, 12 de Junho de 1990
Lisboa, Junho de 1990.
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