segunda-feira, 16 de abril de 2012

O Retrato de Bocage

Nestes três anos que residiu em Lisboa antes de partir para a Índia, nunca deixou de ser o poeta, e aqui compôs muitos dos seus poemas. Entregava então a sua mocidade aos divertimentos descontraídos, pelos outeiros, recitais comparáveis aos dos palácios ou da corte, e que se formavam nos pátios de certos conventos. Mas, apesar de a sua atenção se virar apaixonadamente para estes encontros, em que havia um maior público feminino que vivamente aplaudia, o poeta não descurava o estudo das matérias do curso que lhe ocupou três anos lectivos. Era, porém, um amoroso por temperamento e a frequência de alguns outeiros permitiram-lhe aperfeiçoar a sua fácil capacidade de improvisar, e que foi uma das suas mais notáveis facetas de génio. Mas aliada a essa qualidade tinha a manifesta atitude de pensar alto. Ou seja dizia abertamente que era contra os hipócritas e os frades. Só gostava deles no altar. Já em relação às freiras terá sempre uma atitude gentil, como o era com as outras mulheres a quem tudo perdoava. Apesar da sua ascendência francesa e holandesa por parte da mãe, era um homem bem português, com todas as qualidades e defeitos. Por isso, fogoso, viveu sempre em busca do amor, numa obsessão da aventura.
Nessa busca, aconteceu-lhe apaixonar-se por Gertrudes, irmã de um colega da Academia. Entregou-se com toda a imaginação, sonho e paixão àquele primeiro amor. Era pureza, era a candura, de uma juventude a desabrochar. E foram uns amores felizes, correspondidos, que na luz dos seus olhos azuis, e no som mavioso dos seus versos, com plena harmonia musical se completavam.
Digamos que o amor lhe transformou a vida. Ele era agora um aluno mais aplicado para vir a obter uma boa situação. Desejava casar com a mulher da sua vida. Para isso precisava de ganhar bem a vida. Pensou em ir para a Índia. Tudo seria mais fácil, para vir a ter uma situação brilhante da qual viesse a orgulhar-se. Decidido, abandona a Academia em 1786 e começam os preparativos para partir. Apesar das dificuldades, seu pai obteve o requerimento diferido. Era 14 de Abril de 1786 quando partiu para a viajem que iria determinar a sua vida.
Escreve então um poema de de saudade, da terra, da família, dos amigos, que é um dos mais profundamente sentidos, e onde se vê o quanto ambicionava um futuro glorioso. Desejava aquilo a que tinha direito como vate de pergaminhos, intelectual aristocrata, fidalgo por mérito.William Beckeford, quando o conheceu em sua casa, descreveu o poeta como: um moço pálido, franzino e de aspecto singular, o mais estravagante e talvez o mais original dos poetas que Deus tem criado. E mais escreveu a seu propósito:
Aconteceu estar ele numa dessas excêntricas e exaltadas disposições de espírito, que, como o sol no rigor de inverno, aparecem quando menos se esperam. Mil agudos conceitos, mil alegres e estouvados repentes, mil dardos satíricos saíam da sua boca, e nós estávamos em convulsões de riso; mas, quando ele começou a recitar algumas das suas composições, em que a grande profundidade do pensamento se alia aos mais patéticos lances, senti-me comovido e agitado deste estranho e volúvel carácter, do qual se pode dizer que possui o condão mágico com que, segundo lhe apraz, ora nos anima ora nos petrifica! (3) Tal foi a profunda impressão que Bocage causou em Lord Beckeford.
Este era o seu perfil, quando decide pôr o amor, e por isso a Índia, em primeiro lugar. Era um grande poeta a desabrochar.
Finalmente a partida. Fazem uma paragem no Rio de Janeiro e, daí, guardou Bocage a melhor recordação. Foi recebido pela alta sociedade, e muito acarinhado. O luxo e a ostentação do palácio do governador, irá contrastar com todo o caudal de misérias que conhecerá na Índia. Dali já não lhe apetece partir, bom seria ficar. Porém, há o dever a cumprir.
Ao dobrar o Cabo da Boa Esperança, três ou quatro meses após ter partido, sente-se inspirado por Camões e escreve um poema sobre o decorrer da viagem. A 2 de Setembro de 1786 chegam à ilha de Moçambique e a 29 de Outubro desembarca em Goa. A relação dos passageiros do Estado regista o seu nome e idade - 21 anos. Em nota à margem lê-se: "Despachado em Guarda Marinha para o Estado da Índia, por decreto 4/2 do presente ano, registado no dito livro (Mercês do Ultramar), fl. 5".  (4)
Assim é "despachado" aquele que logo se sentiu degredado e que escreve, exprimindo da poética alma a sua desilusão:
"A próspera derrota assim prossigo
Até vejo e piso a sepultura
Dos tristes que não têm na pátria abrigo."
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Notas:
(3), (4) - Domingues, Mário, Bocage, a sua vida e a sua época, pp.88 e 93.
(continua)
     

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