sexta-feira, 13 de abril de 2012

Elegia a Inês de Castro - Preâmbulo

A este período de tempo, lírico de raiz, sucede um tempo em que Reis e príncipes (os prosadores da Casa de Avis) se ocupam com uma escrita mais prosaica, prática e didáctica, de acordo com uma nova época, que se anunciava. Eram as descobertas.
Contudo, à semelhança do que se fazia nas côrtes europeias, D. Afonso V organizava os serões no Paço e reflorescia novamente uma poesia palaciana e aristocrática. Os trovadores declamavam agora em português e castelhano. Garcia de Resende, que viveu no tempo de D. João II e D. Manuel I, e assistiu à emoção das descobertas da Índia, do Brasil e da Terra Nova, meteu ombros à recolha de "Cousas de folgor e gentilizas" para "preparar o gosto literário" que iria receber a epopeia. Também essa de raiz lírica. "Entre nós a poesia lírica precede tudo e está na raiz de tudo". Inscreviam-se os séculos XIV e XV que, apesar de líricos, não deixavam de nos dar  "as primeiras impressões da crise que se viveu". Encontramo-la entre as mais de um milhar de composições e mais ou menos trezentos autores.Sátiras que representam a presunção, a ignorância das boas maneiras, as "desgraças" da côrte, as mulheres mal casadas, velhas que querem parecer jovens, etc. Praticava-se a ironia e a ambiguidade da linguagem.
Este Cancioneiro vive assim a dualidade na unidade. Por um lado, a Idade Média, poética e moralizadora; por outro, o Renascimento, influenciado por Dante e Petrarca, pelo regresso aos clássicos, pelos descobrimentos. Mas esse regresso não impede a existência destas ironias e sátiras, que se revestem já, poderá dizer-se, de características maneiristas e barrocas, quer na forma, quer no conteúdo, porque a visão do mundo era diversa. Uns lamentavam o tempo passado e poetavam sobre a moral, a religião, o louvor histórico; outros reflectiam sobre o amor e as regras de conduta. Devia ou não o poeta encobrir o nome da sua amada? Podia desejar, através das palavras, concretizar esse amor, ou devia continuar a escrever sobre uma mulher ideal, platónica, objecto de inspiração? Estas contradições são visíveis numa forma "rebuscada e perfeita", em que a arte da palavra é engenhosa, com perífrases, metáforas, antíteses, etc.
Era um anunciar de Camões. O amor fonte de desengano, a tristeza ligada à morte. A mesura, versus desejo sensual. O olhar institui-se como causador de sofrimento, uma presença desejada que se transforma em ausência, um amor idealizado. O tempo como mudança, a dicotomia da vida e da morte, da alegria e da tristeza, a ela se alia a natureza que traduz o estado de alma do poeta. Estado esse que, possivelmente, se ressentiria, por um lado, com as saudades dos mil e duzentos portugueses que, por ano, se espalhavam pelo Oriente, pelos surtos de epidemia, ou o anti-semitismo, que viria a acabar nas três mil pessoas mortas num levantamento anti-judaico em Lisboa (1506); por outro lado, as alegrias da embaixada, nunca vista, enviada por D. Manuel I a Roma, ao Papa Leão X, e vivida por Garcia de Resende. A vinda para Lisboa de Jorge Hervart, agente dos Fuggers, os maiores banqueiros da época, ou, para os literatos, a publicação da Crónica de D. Duarte e Crónica de D. Afonso III, de Rui de Pina, e a Crónica de D. João II, de Garcia de Resende.
Todos estes acontecimentos antecederam a publicação do Cancioneiro Geral e patenteiam a dualidade que se vivia naquele tempo. O que aconteceu foi que surgiram novas formas de expressão, com certa modernidade. Disso são exemplo as "Trovas que Garcia de Resende fez à morte de D. Inês de Castro," que iriam servir de modelo, segundo parece, a Camões, "de um modo superior e genial, para o seu episódio de Os Lusíadas".
Essa renovação já é notória na Divina Comédia, de Dante Alighieri, que, da sua descida aos "reinos ultramundanos", regressa vivo e torna manifesta a sua visão a este mundo. A intenção era a de que todos os homens poderiam refazer com ele a sua viagem e com ele renovar-se. O renascimento do mundo contemporâneo era o que pretendia a sua obra de poeta.
Acaso também o não seria esta obra de Garcia de Resende? Finalizavam-se os Jerónimos...
É através da elegia à morte de Inês de Castro que o poeta traduz esse desejo de mudança. Como modelo "não um ser mitológico (...) mas um exemplo nacional (...) do puro e ardente amor: Inês de Castro."
Tal como "os heróis das poesias alegóricas", esta personagem, através de um vocativo dirigido às senhoras, vem, após uma descida aos infernos (catábase), à terra (função necromântica) contar a sua história. Entre o lírico e o dramático, estas trovas prestam-se a ser representadas em palco, atingindo-se a catarse (da tragédia), que leva a que os espectadores vibrem intensamente.
Que crueldade tão desumana permitiu semelhante morte? Imaginemo-nos não já a ler estas trovas, mas numa sala de teatro.

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(Continua)  

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