quarta-feira, 4 de abril de 2012

As Sempre Vivas

Pernoitei na Gabela. Aí estendiam-se, a perder de vista, as "matas" de cafezais! De um verde muito escuro, davam à paisagem  um tom de melancolia, recordando a servidão que a essa beleza estava aliada. Porém, diziam-me os companheiros de viagem: as matas de café são lindas é em flor, ou quando o café está maduro, com a sua baga vermelha! Eu imaginava. Nunca estivera numa roça, nem conhecia os terreiros onde se punha o café a secar, nem sequer os cafezeiros, só de ouvir contar. Dos fazendeiros conhecíamos os longos carros americanos, vermelhos, brancos! Os espadas, como as crianças da Mutamba lhes chamavam! E o seu poder de compra, que demonstravam possuir, quando faziam a venda do café e vinham assistir ao embarque a Luanda. Compravam as mais belas fazendas escocesas, príncipe de gales, da Santix de Coimbra, na loja do pai, para possuírem belos fatos, no regresso a Portugal. Porque eles, os fazendeiros, era na Metrópole longínqua que tinham, por vezes, a sua família e a riqueza que as roças produziam.
Nessa noite recordo que tive medo. Espreitei os roupeiros do quarto do hotel e debaixo da cama! Porém, de manhã, nem sei como dizer-vos, leitor! Vi orvalho pela primeira vez na minha vida! A surpresa foi tão grande, que o oh! de espanto não cabia nas regras da fonologia suprasegmental (também não existiam, possivelmente, nos estudos linguísticos, os espectrógrafos para o medir). Pois é. Lindo! Aquele orvalho que escorria das vidraças da janela do meu quarto, que em lágrimas pousava naquela imensa verdura, era novo para mim. Em Luanda o calor era tórrido, chovia muito, mas mesmo quando era torrencial, nós, jovens, vivíamos dentro das ondas do mar! O cacimbo era muito breve e eu jamais vira orvalho! Que surpresa e que alegria ao vê-lo! Era um novo clima que eu começava a sentir já aí na Gabela. Respirava-se melhor; Os passarinhos faziam uma enorme chilreada, tal como as andorinhas num entardecer de Primavera, que só viria a conhecer mais tarde, quando da primeira viagem à Metrópole.
Eis os caminhos "escusos" da memória (já pareço o cónego Matias, de Machado de Assis!). Da Gabela para Novo Redondo encontrei uma paisagem já não tão árida como até ao Dondo. Apareciam belas cachoeiras, de que os nossos olhos não vislumbravam o fim. Por caminhos tortuosos, enlaçados em árvores, ramagens, arbustos rasteiros e belas pedras, corriam aquelas águas serenas, vindas dos planaltos. Quando começávamos a descer para Novo Redondo, a beleza da natureza era de tal forma deslumbrante, que me fazia acreditar num Deus todo poderoso, imenso, superior à raça humana, criador do céu e da terra! Assim era, só podia ser! O êxtase dos Lamas do Tibete, descrito por Kipling, perante a natureza, era idêntico ao meu nesse momento. Do alto daqueles montes via o mar imenso e pensava em Spinosa, em como seria fácil, depois duma digressão tão bela, tornar-me pantaísta!
Cá estão novamente as "tropelias" do pensamento a levar-me por desvios. Mas o leitor sabe que o próprio acto de escrever assim é. Não sai, por vezes, continuado. Kant dizia que a impenetrável sabedoria é tão importante naquilo que nos dá como naquilo que nos nega. Essa impenetrabilidade, essa negação, é precisamente a dificuldade de a razão seguir sempre por caminhos certinhos, sem desvios. E, depois, como o leitor sabe, Pascal já dizia que o coração tem razões que a razão não conhece. Assim é. Como estou a escrever também com o coração, sou levada a seguir estes caminhos nem sempre certinhos como seguíamos na viagem. Porque essa sim, com curvas subidas e descidas, tinha um percurso certo, sem desvios, que nesse momento nos levava a conhecer o Atlântico por outro prisma. Imenso na sua magestade, naquela que assombrara os homens que se lançaram às descobertas e viam o Adamastor, onde estava o Cabo das Tormentas, ou da Boa Esperança. 
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(continua)           

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