domingo, 8 de janeiro de 2012

"A Nova História" (continuação)

Se na história do passado havia documentos que permitiam uma relação causa-efeito, nesta História do presente apresentam-se imensas dificuldades a superar. Uma, que considero das maiores, é precisamente a da interdisciplinaridade, necessária para se compreender a totalidade social. É difícil. Porquê? Porque penso que os saberes vivem muito como "ilhas", separados dessa totalidade que o historiador novo pretende obter. Para estudar o "homem total", a História deixará de ser um trabalho isolado de arquivo e biblioteca, de documentos escritos quase unicamente (como o fora para os positivistas), para passar a ser uma "construção" de equipa, em que vários especialistas compartilham o seu saber e trabalham para um mesmo fim. Para Lucien Febvre existe apenas História na sua unidade. Esta unidade é trabalhada entre os anos 20 e 40 em França. Marc Bloch e Lucian Febvre são os protagonistas. Creio que é importante referir o trabalho que Lucien Febvre fez sobre Lutero em 1929, e sobre Rabelais em 1942. Neste último trabalho falará sobre a "utensilagem mental", que definia como o estado da língua no seu léxico e na sua sintaxe. Quais os utensílios e linguagem científica disponíveis? Quais os sistemas de persepções que comandam as estruturas da afectividade? Afinal, o cruzamento dos vários suportes linguísticos conceptuais e afectivos não implicariam nas maneiras de pensar e de sentir dirigidas?
Panofsky virá mais tarde falar sobre o conceito de "hábitos mentais", que tinham que ver com o inconsciente colectivo, princípios interiorizados que davam unidade à maneira de pensar de uma época. Este conceito estava ligado à psicanálise. O de Lucien Febvre estudava o aspecto linguístico mental. Creio que este aspecto é de primordial importância para o avanço da escola dos Annales em direcção à História nova. Robert Mandrou, um dos historiadores dos anos 60, publicou uma importante obra, em que põe em prática este conceito de "utensilagem mental",(14)que iria tornar-se, então, património dos historiadores. Deu importância às categorias psicológicas, tentando reconstituir os sentimentos e as sensibilidades inerentes aos homens da época moderna. O homem, quer do ponto de vista físico, ou psicológico, muda continuamente consoante o tempo e o espaço. Cada geração tem as suas características próprias.
Eis a dificuldade em fazer História: reconstruir o pensar e o sentir de uma época. A alimentação, ou a subalimentação, que vai originar diferenças na pirâmide de idades, a sexualidade, as espectativas de vida, o vestuário, a habitação, a saúde, a doença, a medicina existente, a educação e ensino disponíveis; tudo o que se conjuga para considerar o homem como um todo, e mesmo distinguindo o homem físico do psíquico (em que se estudam as sensações, sentidos, emoções, paixões), Robert Mandrou utilizou técnicas que se aplicam a outros períodos.
Isto é um breve resumo daquilo que eu considero terem sido as "sementes" lançadas por Lucien Febvre e a escola dos Annales para uma História nova. Ainda nesta linha de pensamento histórico estão os Padrões de Cultura, de Margaret Mead e Ruth Benedict (antropólogas americanas), que são coincidentes com os de utensilagem mental, apesar de este conceito se ter revelado muito mais completo para um estudo da história das mentalidades. Se pensarmos que também no princípio do séc. XX se verificava uma crise da História, se aliarmos este aspecto ao desenrolar dos acontecimentos que deram origem à primeira guerra mundial, melhor comprenderemos a importância de Marx e Engels, e de Freud, quando diziam que "o facto" nada vale fora do contexto. Dá-se como que uma descida do homem do seu pedestal, o humanismo era posto em causa, e o estruturalismo iniciava uma nova História, que já não detém o exclusivo do conhecimento humano, após emergirem outras ciências sociais e humanas.
Mas eis que, com o eclodir da guerra e o seu fim, se dá uma reformulação da ciência histórica. É ao analisarmos todas estas variâncias que maior valor podemos dar à "Escola dos Annales", verdadeiro berço da História nova, que irá responder às exigências de um novo saber, visto que a própria guerra e os seus resultados mostravam a incapacidade da História tradicional explicar semelhante conflito. Dá-se um alargamento do campo do documento, há necessidade de uma História imediata. Estudam-se as conjunturas, suas modificações, ciclos e abalos. Surgem as teorias de longa duração. A História é, agora, oscilatória e diacrónica. Os movimentos seculares(Trend), os ciclos de Kondratieff (50 anos) e os ciclos de Juglar (6 a 10 anos) entram na linguagem científica, analítica e crítica dos historiadores, agora, já não só no plano estritamente económico, mas para uma relação estrutural ampla e capaz de dar resposta à reformulação da totalidade do homem de cada época, inserido numa realidade económica e geográfica de uma sociedade com um sistema e um regime.
Em 1946 surge a Revista dos Annales com um novo título: Anais, Economias, Sociedades e Civilização; Fernand Braudel irá ser o principal mentor. A esse respeito diz Luís Barreto: "A revolução metodológica braudeliana representa a morte, enquanto investigação do tempo unidimensional, (...) porque a demonstração de que a diferença repousa na identidade, a descontinuidade implica a continuidade, a mudança atravessa e é atravessada pela permanência/herança. A consciência da pluralidade dos tempos do tempo é manifesta da História como complexidade." (15) Eis que irão surgir as bases de uma História nova efectiva, com toda a pujança, na sua aceitabilidade de constante diálogo com as outras ciências, numa dialéctica permanente com o tempo curto, médio ou longo, as permanências e mudanças.
A palavra "conhecimento" é muito importante para a História nova porque, no seu método de trabalho, o historiador aplica a heurística, a crítica histórica e a síntese para compreender os documentos e analisar causas e efeitos para melhor traduzir a ideia que comportam, apesar do historiador aceitar que o conhecimento do homem é sempre relativo. E aí talvez esteja a grandeza da História nova, porque, ao aceitar este facto, o historiador é, efectivamente, sempre um homem em busca, em análise, em pesquisa. Prova disso encontro-a no artigo de Francisco Belard, que escre a propósito dos Annales como escola, revista, arquivo...: "Sem repudiar nada do passado da revista, a direcção (...) Braudel é um período de longa transição, abrindo as vias do que se chamará a 'nouvelle Histoire', com a crise do sonho de uma 'História total', a fragmentação dos discursos, a busca obsessiva de temas e problemas, o apogeu da 'História das mentalidades', o declínio dos modelos estruturais e do primado do 'económico-social'."
"Surgem disciplinas de que o público nunca ouvira falar: História da morte, História do clima, História do medo ou das paixões. Dentro e fora dessa placa giratória que são os Annales, os novos historiadores ensaiam várias reabilitações: do acontecimento singular, da História política, do conceptual, do contemporâneo...Aparentemente, após assentar fundações no terreno económico-social, a História voltou a tomar banho no rio de outrora - mas as águas mudaram, bem como os métodos e o ponto de vista." (16). "Da História dos grandes homens e das grandes sínteses passou-se à História dos povos e das mentalidades, não só no plano contemporâneo como também da História antiga." (17)
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Notas:
(14) - Mandrou, Robert, «Introduction à la France Moderne», in notas das aulas de Cultura Portuguesa I, 6/7/89.
(15)- In Jornal Expresso de 7/12/85, pp.46-R.; in JL, pp. 10, de 25 a 31/12/84.
(16) - Idem pp.46-R.
(17) - Le Goff, J., e outros, «A Nova História», ed. 70, Apresentação, pág.,9.

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