sábado, 22 de setembro de 2012

Do carácter histórico, moral e filosófico das Cartas Familiares de Cavaleiro de Oliveira

Conclusão

A Virtude he muitas veses desgraçada
C. de Oliveira

Fazer com que todas as Cartas fossem "uns brincos," uma vez que já tinha reputação de as escrever com "alguma graça", era o objectivo de Cavaleiro de Oliveira.
Em muitas mais Cartas gostaria de mostrar esses belos "brincos". Nelas encontrei um homem educado, culto, com moral Cristã e com necessidade de se dar aos outros.
"A sua cultura era indiscutivelmente ampla, em relação ao tempo e à sociedade portuguesa em que se educara. Pode dizer-se que nasceu, viveu e morreu rodeado de livros. (...) Sobre esta base humanística assentou a sua formação literária que sempre se conservou dentro do mais rigoroso gosto clássico. (...) As suas relações abriam-lhe os tesouros das bibliotecas de muitas casas nobres. Tanto quanto é possível apreciar-lhe a extensão pelos autores citados nas Cartas, as suas leituras abrangiam não só o vasto campo das humanidades antigas e modernas como extravasavam para as ciências naturais, a linguística, a medicina, a geografia, a literatura de viagens. Mais de vinte autores latinos, dois ou três gregos formam o cerne desta cultura. As suas leituras modernas são predominantemente francesas - Malherbe, Ronsard, La Fontaine, Chapelain, Boileau, entre os poetas, Montaigne e La Bruyére - entre os moralistas, Moliére (o único escritor de teatro) e outros de menor coturno. Dos prosadores e críticos modernos cita Descartes e Bayle, (...) Cervantes, Garcilaso, Calderon, Moreto e Gongora perfazem o grupo espanhol, Tasso, Vasari, e Marini, o italiano. Desgarrado, Milton representa os ingleses com os dois Paraísos, talvez a primeira menção em língua portuguesa do grande poeta britânico. (...) Quanto à sua cultura portuguesa, embora se limite a mencionar Camões e D. Francisco Manuel, era certamente das mais vastas do seu tempo" Apesar de não citar Balzac, Voiture, e Sévigné, eles e ela, são os seus modelos num género literário, "pobremente representado em Portugal." O" espírito da epistolografia francesa está presente em todas as suas Cartas de intenção literária." (in: Protestante Lusitano, pp.91/2/3)
Consciente do seu trabalho, ele mesmo refere na Carta LVIII, Tomo II, à Condessa de Roccaberti:

"V. E. sabe que se começa a dar aos meus Escritos o nome de satyras, por falar algumas veses nos costumes, e nos erros do seculo, ou nos das pessoas de que elles se compoem. He certo que não heyde mudar de estilo... (...) Sigo nos meus escritos dous caminhos, e não sey outros, e em deyxando de os praticar he certo que deyxarei de escrever. Se me vem ao pensamento criticar hum erro sempre o faço em termos gerais e quem entende a censura como por si culpe o seu pecado, e não a minha penna. (...) Darey aqui duas regras ao meu Leytor para ler os meus papeis com acerto com que eu não os posso escrever. A primeyra he que todos os meus escritos são verdadeyros, e que alguns delles encerrão dous sentidos, que sendo ás veses contrarios são dificultosos de se descobrirem. O primeiro he para todos, o segundo para alguns delles.(...) Consiste a segunda em que quando o Leytor busca este segundo sentido nos meus Escritos, deve sempre duvidar se o tem achado..." (Idem, pp.314/5)

Poderemos dizer que na epistolografia de Oliveira encontramos um precursor, neste género literário, talvez, porque ele se soube dar inteiro. Veja-se a advertência que ele faz ao leitor: "Todos os meus escritos são verdadeiros." Um primeiro sentido é para todos os leitores e um segundo sentido duvide-se sempre se foi encontrado, ou seja, não se vejam coisas que lá não estão, não se dê por certo o que pode estar errado, quanto à interpretação daquilo que foi escrito. Esta advertência ao leitor é profundamente moderna. Ele sabia que escrevia para ser lido por muitos leitores e não estritamente para quem a carta era destinada. Sabia que escrevia para a posteridade. Era sua intenção, bem clara, repreender a soberba, o engano, a ingratidão, etc. mesmo que isso lhe valesse o nome de sátiro. Correu todos os riscos próprios de um artista, de um escritor. Pagou por isso um preço muito elevado. Viu todo o seu trabalho proibido em Portugal e viu-se por fim, queimado em esfígie, num dos últimos Autos de Fé praticados pela Inquisição.
Viveu para espiar todos os sofrimentos que lhe trouxeram a escolha de escrever com livre arbítrio. A fome, o frio, o abandono, a prisão, o ostracismo, a condenação ao fogo eterno, pela religião que lhe dera o baptismo. Veja-se o que diz na dedicatória que faz no III Tomo:

"Andar mendigando nesta terra, e ter a ousadia de fazer a V. E. hum offerecimento, parece orgulho que será reputado como doudice. Disem quasi todos os Philosophos que o tolo sabe muito no que he seu, e assim os que me julgarem louco ou soberbo na minha acção, verão que ainda sendo muy discretos se enganão, e que sabem ordinariamente muito pouco no que he alheyo."

Se imprimiu as suas Cartas não foi para ter "o nome de Escriptor", mas para "ganhar de comer".
Todas as dificuldades financeiras e desgostos porque passou, com a proibição da entrada, e a apreensão, dos seus livros em Portugal, pela Inquisição, fizeram com que nos primeiros meses de 1744, fosse viver para Londres. Mais tarde escreverá, no Amusement, que sofreu um grave prejuízo de quase "seis mil cruzados ou quinhentas libras esterlinas." Os Inquisidores ao confiscarem todos os exemplares das suas obras faziam um "roubo sem escrúpulo, in nomine Domini". "Sentia-se moralmente derrotado".
Iria procurar em Londres, Sebastião José de Carvalho e Melo, "enviado de Portugal na Corte de Jorge II," que viria a ser o futuro Marquês de Pombal. Não consegue, porém, reabilitar-se. No fim do ano de 1745 ou princípios de 1746, escreve a Barbosa de Machado, que viria a ser seu amigo até ao fim da vida.

"Os homens injustos e cruéis com que tenho de haver-me não só violam os seus deveres pessoais como a sua fé pública e os ditames mais sagrados da humanidade e da vida social. Esses pérfidos inimigos, perseguidores e caluniadores, são chefes da Igreja Nacional e conselheiros do Príncipe; são juízes na Corte, aqueles a quem vulgarmente chamam ora sustentáculos e colunas ora luzeiros e olhos do Estado. Bem sabeis, Arbosab, que mal vai ao Estado quando os seus fundamentos se desmoronam (...) Que maior desgraça para um corpo natural ou político quando a luz que nele está se converte em trevas? Que perigosas, que funestas trevas estas! (...) Contento-me em dizer aos ministros de Portugal que com a sua maldade me causaram o descrédito e a ruína que, apesar de tudo, há um galardão para o justo, satisfação para o probo, e um Deus que nos julga neste mundo e nos há-de julgar no outro." (Idem, pp.129/30)

Esse Deus, talvez tenha sido para ele, único, o mesmo; quando se desligou de Igreja Católica e se tornou Protestante.
No ano de 1746 a 1 de Fevereiro casava, pela terceira e última vez, com Françoise Hamon, de quem veio a ter uma filha. Pouco depois sofreu o mais duro golpe da sua vida. Foi preso por pequenas dívidas, durante dezoito meses. Perdeu a esperança de voltar a Portugal. Na sua melancolia irá confessar:

"me enganaram para me obrigarem a deixar a minha Pátria eu o creio; mas que deixe de chorar esse erro que fiz até morrer, não o creio." (1)
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Nota:
(1) RIBEIRO, Aquilino, O Cavaleiro de Oliveira, Livraria Lelo, Ld., Editora, Porto, pp.2, Introdução.
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(Continua) 

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