quinta-feira, 15 de março de 2012

Sobre a Leitura (continuação)

Em "O Proveito da Leitura" conclui-se  que: a utilidade da leitura é o que Ruskin trata no Trésor des Rois. "Nesse tempo em que a leitura era o grão de sésamo, o pão para o espírito e o remédio contra a ignorância dos povos; o tesouro escondido da educação social. (...) A escrita, a letra e o corpo comunicavam entre si numa fraterna conivência. (...) Depois, a literatura despragmatizou-se com a chegada do modernismo, que foi (...) uma aventura do significante. (...) À conversação sucedeu a leitura como solidão. Conforme o modelo da escrita modernista, a ética da literatura corresponde agora à descoberta da verdade em si mesmo, como uma recriação por si mesmo, arruinado que está o modelo da verdade a que se ia antes, tornando-se o livro significante do outro, mais do que enunciado dum significado.
(...) O essencial da questão da leitura em Proust,- diz-nos -, passa pelo impasse lansoniano - o "exigir da arte uma finalidade social e democrátrica", que o herói narrador, Bloch, numa passagem de La Recherche du Temps Perdu, expressa: "desde há muito que os poetas nos contavam os seus pequenos amores, lassidões, tristezas, era tempo de exprimir a alma do povo, as grandes realidades sociais, o pensamento que anima o povo na altura das greves."
Conclui então que "em Proust o anti-lansonismo é tão evidente como o seu anti Saint-Beuve. Mas o que mais se esboça nele é uma definição quase fenomenológica da escrita e da leitura (da sua relação), em que a separação entre o leitor e a escrita é abolida: a leitura é a escrita, a escrita é a leitura. (...) A obra abre-se na interface em que o autor se anula e em que a leitura se origina. Um tal ponto de vista arrasta a destruição do corte tradicional (na base de arrazoados pseudo-democráticos) entre subjectividade e objectividade, e queda da acusação do egotismo. Que pede Poust aos leitores? "Olhai vós...vêdes melhor" (...) Leva-nos a considerar a actividade da leitura como intencionalidade. A verdadeira "democracia literária" deverá residir (se a há) na extraordinária e complexa abertura do eu proustiano como acesso autêntico à presença."
A leitura é por ele reconhecida "como uma paixão, e o amor dos livros é comparável a um qualquer outro amor. (...) Presa do imaginário, a leitura também está sujeita a decepções. (...) Os livros são comparáveis a seres vivos, a pessoas amadas, permanecendo ligadas às circunstâncias do encontro e às emoções que suscitaram. (...) O livro é como um vestido impregnado de sensualidade e emoção, de tal modo que o narrador fala dele como de um ser animado e carnal: "Qualquer paixão veicula uma espécie de gosto pelos seus contornos e os apaixonados do pensamento sentem prazer nos livros (...) como os apaixonados pela mulher nos seus véus... A ingenuidade estará em confundir a arte e a vida ou em tomar a arte pela vida". (...)
A paixão pela leitura poderá levar a duas espécies de perversões: a do erudito e a do letrado.
O primeiro procura a verdade em toda a parte menos em si, e crê dispor dela como uma coisa material, depositada entre as folhas dos livros... O segundo afecta um "respeito fetichista" pelos livros, mas de facto, lê por ler para "reter o que leu" e não para neles descobrir a verdade  ou a recrear: para ele o livro é "um ídolo imóvel".
Esta é uma verdadeira "doença literária" que atinge praticamente todos os escritores, como reconhece Proust, (...) que os leva a preferir o passado ao presente, a morte à vida e sobretudo a confundir os valores estéticos com os valores morais. Esta é uma leitura má. Mas há uma leitura salutar: "a iniciadora, cujas chaves mágicas nos abrem no fundo de nós mesmos a porta das moradas onde não teríamos sabido penetrar." Esta é a "leitura como decifração", que compete ao leitor, pois o acontecimento literário não é - a semiótica o lembra - um objectivo fixo. A interpretação não é nunca dada, constroi-se, dado que implica o sujeito que se enuncia no texto, o leitor. (...) Ler consiste em provocar relações, um texto dentro do texto, um intertexto - é do entrelaçamento da letra e do corpo que o discurso se torna génese.

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(continua)

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