"As coisas mais belas são aquelas que a loucura sopra e a razão escreve."
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Inicio, assim, a minha crítica concluindo que nesta citação E. Lisboa remete o sopro da loucura para o Orpheu e a escrita da razão e da ordem para a Presença.
Seria, igualmente, Fernando Pessoa que na Mensagem, diria: "Sem loucura que é o homem/ Mais que a besta sadia/ cadáver adiado que procria?" Tinham loucura, sim, os homens do Orpheu e o autor disso faz realce ao referir os "suicídios simbólicos de Raul Leal e Ângelo Lima"; porém, nem todos padeceram de loucura orgânica, mas sim de génio, loucura essa que não é compreendida por todos da mesma maneira, como se verifica ao longo do livro de E. Lisboa. Talvez seja necessária uma centelha da mesma loucura para que seja possível compreendê-los e amá-los.
A forma como refere os suicídios dos homens do Orpheu não me parece a mais cavalheiresca, talvez porque ao autor lhe falte "o genuíno brilho e a eloquência de articulação." Porém, eu estou de acordo com Agostinho da Silva quando disse: "Fernando Pessoa morreu atropelado por Portugal." (1) Cito, a propósito, o que escrevia Raúl Brandão na revista A Crónica em homenagem a Columbano (pintor injustamente pouco estimado): "Em Portugal (...) o público odeia todos os seus grandes homens, não perdoa a quem quer que se eleve acima da banalidade comum," (2) e, ainda, no Mosteiro, de Agustina B. Luís (pp.293): "Os que nascem perfeitos têm que andar medianos, senão todos acabam por lhes abrir a cova e preparar o laço."
Os homens do Orpheu nasceram perfeitos, a sua independência, a sua audácia e coragem ainda hoje nos surpreende! Porque sentiram pressões de toda a ordem, uns não suportaram, outros remeteram-se ao "silêncio e à renúncia", deixando sim uma vasta obra por publicar, não conseguindo impor-se, como refere o autor, não pelos motivos que realça, mas sim porque reconheceram que para construir a obra em que estavam empenhados não podiam sofrer mais vexames e se remeteram ao silêncio e à banalidade, para poderem sobreviver e ganhar a vida, pormenor esse que não é referenciado: o problema financeiro com o qual os homens do Orpheu se debateram. Outra lacuna que encontro nesta obra é a referência quase única aos textos insertos na revista Portugal Futurista, assim como às contradições que a dado passo verifiquei: Por um lado, o primeiro modernismo era totalitário, arrogante, provocativo, não pedagógico, tinham o culto do novo, negavam o passado; por outro lado, o autor constata que existiam "pontes que os ligavam ao passado. (...) Rio profundo da tradição clássica que irriga a obra de Pessoa." Em Sá-Carneiro um "certo esteticismo dos fins do século passado e princípios deste, com a sua alquimia verbal." Sobre Almada, que o autor ao longo do livro vai desfeiteando, acaba por reconhecer que no Nome de Guerra, há uma ponte que o une a Garrett das Viagens na Minha Terra, assim como uma "certa tradição da literatura popular" (Albano Nogueira). Afinal, o que acabei por verificar é que os homens do Orpheu, com a sua obra, reuniram aquelas condições implícitas nas palavras de Eliot. Foram verdadeiros "criadores" na acepção da palavra, e como dizia Régio: "distâncias, há-as, sim, entre os artistas verdadeiros e os pseudo artistas, os criadores e os imitadores." Eles foram "artistas verdadeiros" e "criadores" de uma literatura de futuro; "esse futuro de então - é o nosso presente", como diz Teolinda Gersão.
O papel que a Presença desempenhou no processo de dar a conhecer e realçar o Orpheu, é muito importante e reconheço o mérito profundo de José Régio, das suas capacidades intelectuais, da sua obra e da sua verticalidade como pessoa; todavia, igualmente me pareceu o autor mais regiano que o próprio Régio, quando acusa "os pós fernandinos de serem, por vezes, mais fernandos que o próprio Fernando". Continuando a afirmar a convicção das diferenças (não entrando na descodificação das palavras "revolução e contra-revolução", que penso estarem no artigo de Eduardo Lourenço bem claras) e não indo "servilmente beber," verifiquei-as ao longo de todo o livro, assim como pela leitura das obras dos autores em questão. O Orpheu viveu a poesia pela poesia, não pretendeu ser pedagógico nem crítico ou doutrinário. "Fuga" ao "eu", em oposição ao "culto" do "eu".
A Presença teve a sua autenticidade e ao longo de treze anos foi a promotora de uma cultura a todos os títulos louvável. Iniciou uma forma de crítica literária que irá lançar raízes principalmente através de J. Gaspar Simões. Foi criadora e artística, exercendo uma função pedagógica doutrinária junto do público leitor. No entanto, penso que a sua obra não alcançou o homem na sua plenitude, porque lhe faltou a reacção ao que a rodeava. Vivia-se a guerra de Espanha, o País conhecia diversas convulsões e após o 28 de Maio de 1926 entrava numa fase polémica da nossa história. Nada disso é detectável na obra da Presença. Viveram talvez (e, aliás, é uma das críticas) "ofuscados" na "arte pela arte" isolados do homem político que vive em todo o homem.
Como verificámos no início do texto, os Ultimatos de Almada (mesmo fazendo a apologia da guerra) e de Álvaro de Campos, eram "gritos" de intervenção contra tudo o que no seu parecer estava mal. O próprio E. Lisboa faz uma resenha histórica para melhor integrar os jovens do Orpheu, enquanto que no historial da Presença não há necessidade de fazer uma única referência ao período em que viveram, escreveram, criaram. É esta a diferença. Uns não aceitaram "constrangimentos", "travões", "disciplinas", representaram a fúria da natureza a vida na sua pujança total de homens completos, "sondando o inconsciente, as sensações," "ousaram ousar". Outros, "apropriaram-se do achado", educaram, criticaram, mas não tiveram "a intuição de novas riquezas do homem," "não negaram o passado," não construíram o futuro. Era tarefa difícil suceder ao Orpheu, continuá-lo.
Eles viveram um presente, foram a Presença.
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Notas:
(1) - in Diário de Notícias de 21 /02/1988
(2) - in Brandão, Raúl, Entre o Romantismo e o Modernismo, Machado, Álvaro Manuel, pp.76
Lisboa, Março de 1989.
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