A concepção do texto para Machado de Assis, como o fora para Sterne,
é a de um campo de batalha no qual tanto o autor quanto o leitor jogam com as armas do sentido.
A activa participação é elemento essencial para o efeito de comunicação.
O papel do leitor também é de criação.
Sónia Brayner
II
Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto - é costume dizer-se. Também eu me propus contar, ainda que resumidamente e entrelaçando-as umas nas outras, as Várias Histórias , de Machado de Assis. Anulando as datas precisas que cada conto contém em si mesmo, verifiquei que, afinal, estas histórias, que foram escritas e inscritas num tempo (em meados do séc. XIX) podiam ter-se escrito precisamente agora, 1990.
Machado de Assis refere, na introdução, que estas não pretendem sobreviver como as palavras do filósofo Diderot; porém, quer o autor, quer as Várias Histórias, estão sempre vivas.
O complexo relacionamento humano, as situações misteriosas que esse relacionamento provoca, os temas do amor e da morte, o adultério, a vida como traição, não só no aspecto das relações amorosas, mas igualmente no que se refere ao desengano, à quebra de ilusões, dos ideais, do próprio tempo que, inexoravelmente, tudo atraiçoa e corrói, que vai transformando etapa a etapa o próprio homem, é inerente ao mundo em que vivemos, e que nos é dado na ficção de M. de Assis. Por isso, assistimos, conto após conto, à frustração, ao quebrar das ilusões, às angústias, pessimismos e ambições destas personagens, que o autor também soube construir e imaginar.
Será que vou desconstruir? Transgredir? Espero que não. A ideia de perspectiva, que foi posta em prática na pintura no período renascentista em quadros como os de Miguel Ângelo, Rafael ou, ainda, Leonardo da Vinci, que se preocuparam em dar (através da perspectiva) uma ideia de profundidade, que nos leva, como observadores, a penetrar no quadro e a avançar até ao fundo do caminho (quando em paisagens campestres), ou até da própria expressão retratada (no caso da Gioconda), em que esse olhar misterioso parece levar-nos à profundeza labiríntica da sua alma, dando-nos várias e possíveis interpretações, também é posta em prática na literatura.
Então o nosso olhar institui-se como prospector dessas perspectivas. O nosso ponto de vista , ou de visão, condiciona a nossa leitura dessa pintura. Também em literatura, o ponto de vista é usado como técnica de narrar. É o que eu vou fazer: a leitura sob o meu ponto de vista, assumindo-me como narrador que interpreta os acontecimentos e as próprias características de contos e personagens.. Quando esta leitura é dada ao leitor, este não tem acesso ao conhecer as personagens através de si mesmas. Se temos um narrador omnisciente, que tudo conhece sobre as personagens, mesmo quando cede um breve espaço para que estas entrem em diálogo, e se manifestem com caracteres, cabe sempre a esse narrador a verdade sobre os factos. No caso de termos um narrador omnisciente que redige a história de forma autoritária, não são permitidas às personagens as suas formas de ver e pensar o mundo.
Em Machado de Assis verifiquei que utiliza uma óptica da relatividade quanto ao estatuto dos seus narradores "colocados no seu mundo particular, olham e julgam o que os envolve como duplos, actores/autores sempre atentos a comentar, ironizar e a apropriar-se, em benefício próprio, das instâncias discursivas do contexto". (1)
Quando os narradores dão voz aos seus personagens e os põem a dialogar, é visível a teatralização marcada dos personagens; como exemplo, teremos o conto Viver, ou, ainda, o conto Entre Santos, que apesar de começar a narrativa na terceira pessoa: "Quando eu era capelão", logo de imediato nos surge um narrador: "contava um padre velho"; e, logo de seguida, é dada voz aos santos, que , dialogando, põem em cena os comportamentos e sentimentos dos homens, captando, também, a própria essência da sociedade, através da conversa entre os santos, é a própria exposição da palavra que nos surge como forma de mostrar a sua capacidade de criar. No conto A Desejada das Gentes, é o conselheiro que, do princípio ao fim, traça para um companheiro a história, as peripécias e os caracteres das personagens que vivem e se exprimem sob o seu ponto de vista.
Nesta capacidade e versatilidade de narrar e de escolher narradores que deixem o discurso livre para que as personagens possam intervir, construiu Machado de Assis um discurso extremamente original num estilo correcto, clássico e de sentido coloquial.
É nesse sentido coloquial, tendo a palavra como fonte original de mostrar ou de contar de forma omnisciente, que eu tentei recontar, numa "longa" história, as Várias Histórias. Se transgressão houver, não foi essa a minha intenção. Esta foi a minha forma de jogar com as palavras neste "campo de batalha", em que o autor deu lugar ao leitor e lhe permitiu, mesmo de forma próxima ao texto, manejar , "com as armas do sentido" e de leitor passar a narrador/autor.
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(1) Breyner, Sónia, Labirinto do Espaço Romanesco, Rio, 1979, Civilização Brasileira, pp.72.
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