domingo, 18 de março de 2012

Sobre a Leitura (continuação)

Queríamos com eles visionar, penetrar, e passear pela totalidade dessas paisagens e saber o que os levou a escolher aquele local, e não outro, para pintar, e nos darem a impressão do seu génio.
Mas é com a aparência que eles nos cativam, qual "miragem parada na tela, e que representa "a última palavra da arte de pintar." Tal como o pintor também o escritor só consegue fazer-nos ver uma parte insignificante do imenso universo repleto de incongruências e fealdades. Por isso apela ao olhar. Vê. "Olha! Aprende a ver! E a partir daí como que se eclipsa.
O leitor fica então perante a insuficiência que a leitura não colmata porque ela é um abrir de janelas ou portas para a vida, na qual se entrelaça, mas não a substitui. "A leitura está no limiar da vida espiritual; pode introduzir-nos nela: não a constitui."
Porque se a constituisse, então levar-nos-ia a conhecer casos patológicos em que os livros funcionam como psicoterapeutas, daqueles que perderam a vontade de querer e de pensar por si próprios, esquecendo a sua identidade.
Mas a leitura pode constituir também incentivo ao acto criador e Proust dá o exemplo de Emerson que normalmente lia Platão antes de iniciar a escrita. Assim como Dante, que Virgílio olhou até ao "paraíso."  Por isso, nos diz que: "enquanto a leitura for para nós a iniciadora, cujas chaves mágicas nos abrem no fundo de nós próprios a porta das moradas onde não teríamos sabido penetrar, o seu papel na nossa vida é salutar." Mas é perigoso quando, em vez de nos despertar para a vida pessoal do espírito, a leitura tende a substituir-se a ela. Porque "a verdade não se encontra (...) nas folhas in-fólio," nem em todas as viagens possíveis para a alcansar através de bibliotecas, conventos, pesquisas sem fim, mas só em nós próprios, e nas nossas reflexões permanentes e nunca saciadas. 
Proust faz então a diferença entre o letrado e o erudito e em como,  tanto um como outro, sofrem da chamada "doença literária." O gosto pelos livros, cresce com a inteligência" e faz-se paixão, com todas as aventuras próprias dessa vivência. Grandes alegrias, ou grandes angústias rodeiam o objecto da paixão. Mesmo ausente, não sai da memória, está presente, e tudo se lhe dedica, sem nada pedir em troca. E da escrita se passa à leitura e vice-versa, porque aqueles que "sofrem" esta paixão não prescindem do "convívio com os livros." Victor Hugo, diz-nos, sabia de cor Quinto-Cursio, Tácito e Justino. O seu génio era de erudição alimentado.
Também Schopenhaur tinha uma "capacidade de leitura proveitosa", que reduzia cada "conhecimento novo (...) à parte de realidade, à parcela de vida" que continha. E para sustentar uma opinião fazia uso de várias citações. Homero, Hérodoto, Heráculo, Platão, Plutarco, Sófocles, Plínio, Schakespeare, Byron, Voltaire, todos terão usado máximas e citações uns dos outros, ou de "amores antigos". Foram autores que conseguiram a um "máximo de leitura" aliar um "máximo de originalidade".
A leitura cria sinceros elos de amizade que, se dedicam a um ausente; sem nada se cobrar por ela. É uma "amizade pura e calma", que no silêncio tem a sua atmosfera. É o pensamento do autor e o nosso que se tornam um só. Levando-nos a perdoar a "jocosidade tagarela e as melancolias" de escritores, que são também jornalistas, exemplo de Gauthier. Eles possuem "hábitos um pouco desordenados", mas esse elo de amizade, que se cria entre leitor e autor, suplanta o desagrado pelas tintas muito sombreadas ou esbatidas com que nos inscrevem no retrato. Veja-se, diz, que Fomentin e Musset, sendo doctados, ao retratarem-se o fizeram de forma desajeitada e inferior às suas capacidades. E os erros surgem como uma maneira de se aprender. Mesmo quando o espelho das páginas de um livro nos mostra espíritos deformados, em vez de altruístas, está a instruir-nos. E os perigos dessas leituras  esbatem-se quando do fracasso se aprende a afastar o perigo.
"Um espírito original" sabe subordinar as suas leituras às suas actividades pessoais. Porque distraindo-se "põe-se em contacto com os outros  espíritos" e é então que se dá a aprendizagem" dos 'modos de espírito". nesse evoluir de gosto, a visão dos grandes escritores, diz, depressa se volta para a apaixonante e sempre renovada descoberta dos clássicos. Victor Hugo se falava das suas leituras eram nomes como Horácio, Ovídeo, Molierre e Regnard que patenteava. Mesmo Afonso Daudet, que Proust considera ser o escritor menos livresco, e era moderno, vivo; lia, citava, Pascal, Montaigne, Diderot, Tácito.
O público seria, nesta reflexão, romântico, e os mestres, clássicos. Mas também estes últimos, preferidos desse público inteligente. Esta visão é extensível a todas as artes. A música de Vicent d'Indy surge como aquela que o público ouve, e a que o compositor relê será a de Monsigny. Ou as exposições das galerias, com Vuillard ou Maurice Denis, e estes visitam as do Louvre.
É como sair de si, do tempo, viajar. Uma necessidade que se enriquece nessa matéria antiga que é "a língua em que foram criadas". Nos versos trágicos de Racine, ou nas memórias de Saint-Simon, encontramos intacta essa arquictetura escultural de divinais cidades antigas e sentimos palpitar a doçura de vidas, o sol que as iluminou, as borboletas, as flores, que se representam na sintaxe viva, formas modelares do século XVII francês. 
É o palpitar dessas almas antigas que se inscreve em cada frase, mas também é visivel, diz-nos Proust, o silêncio. Recorda-se de como no Evangelho de S. Lucas, ouvia a pausa dos dois pontos, na leitura em voz alta do fiel. "Este silêncio enchia ainda a pausa da frase que, ao cindir-se para encerrar, conservara a sua forma; e mais do que uma vez enquanto eu lia, diz, ele trouxe-me o perfume de uma rosa que a brisa, ao entrar pela janela aberta, tinha espalhado na sala onde se encontrava a Assembleia e que se não evaporava desde há dezassete séculos."
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(continua)
      

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