sexta-feira, 16 de março de 2012

Sobre a Leitura (continuação)

"Na perspectiva de Proust, o escritor tem apenas que fornecer a possibilidade de interpretação, fornecendo o artifício da hipótese. O que o autor pode dar são desejos, dizia. (...) Dar equivale aqui a despertar. (...) Cada leitor é, quando lê, o próprio leitor de si mesmo.
Proust fala de "exercício de transposição mental, (...) transposição ou tradução, a leitura ocupa a posição modal do adjuvante, em termos de pode-fazer, não é a do sujeito operador em busca da unidade do Eu. 
O voto de Proust é claro: conciliar a vida e a leitura, porque no livro interior a cada um de nós, o autor, o "leitor e o livro fundem-se. O único livro verdadeiro existe já em cada um de nós: há apenas que traduzi-lo". (pp.12/13)
(...) A descrição psicológica que Proust dá da incitação aproxima-a das concepções teológicas da inspiração sagrada, vista como impetus, a impulsão que lança a escrita sem se substituir à actividade pessoal do autor. A leitura dá à vida uma espécie de exercício propiciatório ou de incitação à escrita como antídoto contra a passividade. 
Em "A Letra e o Corpo" J.A. Mourão diz que "se a leitura é um exercício do desejo, é porque o texto é, antes de mais, um espaço ordenado pelo desejo. Há um jogo recíproco entre os dois termos, que constrói a escrita: um imaginário e uma erótica do "querer". Ao leitor cabe apropriar-se deste "esquematismo" e desta erótica. Mas o leitor responde ao texto, não a alguém (...) o texto é mudo (...) incapaz de nos transportar, de nos mover fora dele."
"Derrida denunciará (...) a metafísica da presença e a falsa identidade do que se nos apresenta contido ainda na fenomenologia husserliana. (...) A leitura está no limiar da vida; como propagação de uma pregnância (...) luz saída da fonte luminosa  que a letra, o corpo e o sujeito constituem. (...)
Proust comenta-se a si próprio quando olha para o jornal que traz um seu artigo: "não era apenas o que eu tinha escrito, era o símbolo da sua encarnação em tantos espíritos... "o jornal chega como um corpo" junto ao café com leite e os croissants, "o pão espiritual, que é o jornal, ainda quente e húmido da imprensa recente e do nevoeiro da manhã. (...) E a escrita quente e húmida como os 'croissants' come-se: É a palavra substância do autor - que se torna, segundo Ezequiel - 'Pão miracoloso, multiplicável, que é simultâneamente, um e dez mil e continua a ser o mesmo para cada um. (...) A imagem evangélica vem ainda ao espírito quando Proust manda buscar mais exemplares para 'tocar com o dedo o milagre da multiplicação do seu pensamento'.
Que promete o escrito? Um encontro tão corporal como a partilha do pão. "Proust sabia (...) que esta plenitude não se cumpre e que o seu pensamento não estava contido na letra (...) - a letra é um continente que não contém nada.

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