domingo, 18 de março de 2012

Sobre a Leitura (conclusão)

Este é o milagre da leitura que se faz sonho e nos transporta para além do tempo. Pode ser Shakespeare, ou a Divina Comédia de Dante a conseguir este sortilégio. Acontece a Proust esse sonho de se sentir em "Veneza na Piazzeta, diante das suas duas colunas de granito cinzento e rosa que suportam sobre os seus capitéis gregos, uma o Leão de São Marcos, a outra São Teodoro calcando aos pés o crocodilo." Era "um pouco do séc. XII, do sé. XII há tanto tempo transcorrido", que pela leitura ali renascia, e lhe mostrava aquelas "belas estrangeiras vindas do oriente sobre o mar... "Conservando o mistério que não se deixa possuir - o passado - esse eterno feitiço que se faz ilusão para caber na palma da nossa mão e ao mesmo tempo dessa se evolar.
Aos nossos olhos é presente, que mesmo enterrado parece "todavia ali no meio de nós, próximo, (...) imóvel ao sol".
Assim conclui Proust este prefácio que se me afigurou de uma riqueza primordial. Não resisti à inclusão de passagens do texto, que considerei belas. Poderia dizer-se que é um terno elogio da leitura e que se lê como um romance. Conseguiu, de facto, que eu, como leitora, visse nas suas palavras, no seu desenrolar de memórias, tantas e sentidas recordações a mim intrínsecas. Vivias em pleno, entrei pelas suas paisagens. dentro, senti-me em sua casa e nos mais reconditos recantos onde viveu o seu, meu, encanto da leitura.
Senti o perfume das flores, vi a "Primavera" de Botticelli, fui ao Louvre; e percepcionei os dedos que se faziam melodiosos na sonata de Beethoven.
Levou-me a visitar o dicionário de autores para melhor me familiarizar com todos os que tão harmoniosamente cita, ou simplesmente nos traz à memória ao referir os seus nomes. Tal como dizia Foucoult quando falamos em Homero ou em Platão, Dante ou Shakespeare são as suas obras o seu legado imenso, que no seu nome observamos e revemos.
Na verdade, contei, com o meu espírito curioso, os autores de que nos fala e são cerca de oitenta. Preenchi páginas com dados das obras e vidas que ainda me eram desconhecidas.
Este é de facto o corolar da leitura, quando sujeito e objecto se fundem no mesmo prazer sentido, e bebem pelo mesmo cálice o manancial de vida que recolheram dela.
Dentro deste "pequeno" livro como que cabem imensos mundos espirituais, bem visualizáveis. Se nos fala da "língua como espelho da vida" é nele que nos deslumbramos. Porque o belo reside na simplicidade com que expõe as suas reflexões. Quer seja sobre literatura, música, pintura, paisagística, ou simplesmente o sonho das viagens. Por Veneza, ou pela Holanda, pela Flandres, Londres ou Paris. Há em si os "condimentos" na medida exacta, porque, ao nosso olhar, ao nosso olfacto, ao paladar, ao nosso desejo nada é subtraído.
A nossa memória visualizou em quadros pintados a meio tom ou com cores quentes, a simetria e a cor dos locais e tempos inesquecíveis. No som suave dos sinos, ficou em mim o ouro puro da amizade por Proust. grata pela vida que dedicou à escrita, à leitura, amando tanto as personagens que se esqueceu de si. E, talvez por isso, escreveria a uma amiga:"o principal rasgo do meu carácter? a necessidade de ser amado."(1) Eis que conseguiu aquilo que dizia: "o universo aspira a por-se em contacto connosco; depende de nós, romper o encanto que tem prisioneiras as coisas, trazê-las para nós e impedir que voltem a cair no nada para sempre". Esta será a função da escrita, da leitura: fazer com "que uma música, uma pintura que nos comovem, correspondam a uma realidade espiritual" (2) que se faz língua, frase, sintaxe duradoura e recriada por séculos e séculos no próximo leitor. Numa eterna interrogação, porque só assim, penso, se cumpre a literatura, a vida.

Lisboa, 19 de Abril de 1993.
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Notas:
(1); (2) - in Proust, Marcel, entrada no Dicionário de Autores, González Porto- Bompiani, Montaner Y Simão, S. A., Barcelona,  Vol. I,II,III, 1968.
Soares, Bernardo, Livro do Desassossego, Lx, 1982, pp. 16; 18;19.        
   

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