sábado, 17 de março de 2012

Sobre a Leitura (continuação)

Era a leitura no parque; e a ela ligado estavam por um fio de memória as águas do rio, a erva onde se pousava o livro. Os cisnes, as estátuas, as carpas a saltar, os prados que o rodeavam e os bois que dormiam. As aldeias com "torres informes"; "roseiras bravas", e "a natureza que se estendia até ao infinito", e nela o labirinto pelo qual corria até alcançar a alameda onde se sentava a ler. Onde só chegavam intercalados no tempo "o som de ouro dos sinos que ao longe" faziam lembrar que as horas passavam, mas de tão doces, "nunca tinha a certeza de quantas tinham sido as badaladas."
Quando se aproximava a última página lida, era já a saudade das personagens que se instalava. Então, "estes seres a quem se tinha dado mais da nossa atenção e da nossa ternura do que às pessoas vivas, não ousando sempre confessar até que ponto os amávamos, (...) nunca mais os veríamos, nada mais saberíamos delas?"
"Bem gostaríamos que o livro continuasse, (...) obter outras informações sobre todas essas personagens, saber agora qualquer coisa da sua vida (...) não ter amado em vão."
Seria então, reflecte Proust, que estes seres, "sobre uma página esquecida num livro sem relação com a vida", não continham "o universo e o destino" mas somente ocupavam um lugar na Biblioteca?
Este será o cerne da questão? Proust diz que a seu "ver a leitura não deve desempenhar na vida o papel preponderante que Ruskin lhe reserva no Tesouro dos Reis", e vai-se questionando e questionando para mostrar o porquê do seu pensar. Aborda de imediato o "sortilégio" que uniu nele o acto da leitura e da própria vida passada.
Essa lembrança, qual benção, não é a dos livros que se leram, mas "é a imagem dos lugares e dos dias" em que as leituras se fizeram.Através deste voltar ao passado, teria despertado no leitor "o acto psicológico original, chamado leitura", e levá-lo a descobrir a experiência reveladora que é conter também dentro de si esse desejo de reflexão sobre o que representa, de facto, o acto de ler. Essa paixão desmedida que vem dos anos longínquos da infância e se transporta toda a vida.
Ruskin sustenta nas suas conferências sobre a leitura aquilo que Proust diz se poder resumir através das palavras de Descartes, que "a leitura de todos os bons livros é como uma conversa com as melhores pessoas dos séculos passados, que foram os seus autores."
Mas o autor inglês, envolve em "ouro apolínio" esta ideia e diz que, "nem sempre podemos conhecer quem queríamos (...) podemos ter a sorte de entrever um grande poeta e ouvir o som da sua voz, ou pôr uma questão a um homem de ciência", isso só por um acaso fortuito. Daí a valorização da leitura.
Contudo, Proust sustenta que esta não deve ser comparada a uma conversa, mesmo com o mais sábio dos homens, porque o que as define e separa é a possibilidade de receber-mos um pensamento outro, sem deixar-mos de estar sós. À solidão da leitura contrapõe-se o som na conversação e a perda da comunicação de espírito a espírito.
Crê que Ruskin "não tentou ir ao próprio âmago da ideia da leitura (...) esse milagre fecundo de comunicação no interior da solidão", senão teria chegado a conclusões condizentes com as suas.
"A leitura (...) é algo de mais, algo de muito diferente do que disse Ruskin". Até que ponto é importante e quais são os limites do seu papel?
Torna de novo à questão das leituras feitas na infância, e interroga em que consistem as suas virtudes.  Elas serão as frases inesquecíveis, porque belas, e pelas quais se entrevê toda a antiguidade ou a idade média (que Gauthier no seu Capitão Fracasse lhe proporcionou), e que falam de algo que fechado o livro, se pode "continuar a conhecer e a amar." E que nos leva a desejar a opinião desse autor elegido sobre Shakespeare, Saintine, Sófocles, Eurípedes ou Sílvio Pellico. Ou a sua ajuda na descoberta da verdade a seguir, em assuntos na própria vida particular?
Mas, e logo surge a adversativa; seguindo-se a essas frases belas e inesquecíveis vêm aquelas que são insignificantes a nossos olhos para nos prender a atenção. Por isso o que o autor nos poderá dar não são respostas, conclusões, para o nosso questionar, mas o desejo, a incitação, de "contemplar a beleza suprema à qual o último esforço da sua arte lhe permitiu chegar". Donde se conclui que a verdade não nos é dada ou  iluminada por outro espírito, que através da escrita comunica connosco, mas que ela se cria por nós próprios, uma vez que fechado o livro, chegado o limite da dádiva, logo desejamos obter um pouco mais e partimos em busca de outro. Essa partida será  como que "um efeito de amor que os poetas despertam em nós". Porque nos mostram quadros que nos fazem percepcionar a maravilha, a palavra, esse outro lado do espelho onde queríamos penetrar. O mundo desconhecido revelar-se-nos-ia, porque, diz-nos, os pintores ensinam-nos à maneira dos poetas. "O Campo" de Millet ou "A Primavera" de Claude Monet, apenas nos deixam antever um pouco desses locais escolhidos para figurarem na nossa memória como em bruma.
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(continua)    

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