Lembro-me, como do que estou vendo,da noite em que,
ainda criança, li pela primeira vez numa selecta,
o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão.
Fabricou Salomão um palácio...
E foi lendo, até ao fim, trémulo, confuso,
depois rompi em lágrimas felizes...
Bernardo Soares
Sobre a Leitura é por Proust dedicado "à Princesa Alexandra de Caraman-Chimay", aludindo às suas Notas sobre Florença e preconizando que Ruskin se sentiria deliciado ao lê-las.
Esta dedicatória de "homenagem" e "profunda admiração" levaram-no a recolher nestas páginas recordações sobre a sua infância. Daqueles dias "plenamente vividos (...) com um livro preferido", que substituía todos os prazeres do jogo, ou do passeio, que resistia aos raios de sol ou ao zuir das abelhas, ao escurecer, à merenda, esquecida. Tudo o que fora aparente obstáculo à leitura era hoje, como ontem, uma "lembrança doce," porque tudo o que lia era "então com tanto amor".
São os tempos das férias que se inscrevem nas próprias leituras que então se fizeram. Mas é também através delas que vem à memória o recanto da sala de jantar, da "velha Felícia, (...) dos pratos pintados pendurados nas paredes, (...) do pêndulo e o fogo", que davam ao que se estava a ler um cenário novo, sem se introduzirem no sentido das palavras, porque eram silêncio sem o ser, eram a companhia que se buscava ideal, para o acto de ler. A "cadeira, perto do lume baixo de lenha, o tio madrugador e jardineiro, (...) o barulho da bomba de onde a água ia correr, (...) os amores perfeitos colhidos (...) nestes céus demasiados belos (...) como que reflectindo os vitrais da igreja."
Eram os olhos que se erguiam da página para se alongarem em todas estas misteriosas belezas, que se inscreveram no livro que com frémito e ardor se leu. As horas passavam então depressa demais, e a refeição interrompia o contacto vivo com a personagem. Eram então outras personagens que irrompiam, quando punham o seu correio em dia. Acto pelo qual "havia respeito, mistério, lascívia e circunspecção. "Leitura e escrita como que se interpenetravam, sem brecha, na memória da infância longínqua, a marcar o presente, o futuro. E eram essas personagens vivas que lhe diziam: "fecha o teu livro, vamos almoçar."
Ao livro, à leitura ficou ligado o odor do café, e o prazer de o ver ser feito à mesa, a "subir na campânula, a ebulição súbita que deixava a seguir, nas paredes (...) desse instrumento de física (...) uma cinza perfumada e acastanhada. "mas eram também os morangos e as natas, e as conversas da tia avó sobre culinária, na qual não aceitava ser contrariada, sobre as sonatas de Beethoven, sobre a boa educação. Eram os condimentos na medida exacta que, tal como faziam uma boa refeição, também faziam as boas maneiras; um bom músico. Só sobre versos ou romance não se pronunciava, em definitivo; aí, ouvia a opinião dos entendidos.
E a leitura recomeçava no quarto. E então o que se avista da janela, "o vizinho armeiro, o pároco de breviário na mão, (...) ou o menino de coro", a decoração, a estética, "as teorias de William Morris (...) aplicadas por Maple", que entram no texto, que se fez recordação. A beleza das "mantas bordadas" e de como desaparecia debaixo delas, só comparável a um altar no mês de Maio - de Maria - (en)coberta de flores. Todos os pequenos objectos que, sendo supérfluos e não escolhidos, por si, constituíam, contudo, o seu agradável prazer de alí viver, e aconchegado de emoções várias, ler. mesmo quando se corria o risco de castigo, ou de insónia, por tornar a acender a vela, para olhar os últimos capítulos.
_____________________________
(continua)
Sem comentários:
Enviar um comentário