Conforme avançava o concerto, também os contos iam, página a página, desocultando para mim toda a sua melodia. Tocava, agora, a classe de orquestra, a composição de A. Borodine, "As Estepes da Ásia Central"; e eu imaginava como tinha vivido o Sr. Pestana, compositor de polcas; ele que fora Um Homem Célebre; o som do piano impõe-se-lhe não como o gelo das estepes, porque esse vivia só no coração do Sr. Pestana. Mas se este fosse como uma composição de Borodine? Então esse coração (triste por não conseguir música eterna) era uma mina de melodiosos sons! Pois era.As polcas animavam os bailes, os saraus, talvez porque fossem mais parecidas, em questão de animação, de ritmo e de fazer sonhar, com a Kaiser Waltzer, opus 437 de J. Strauss. "O riso", as "danças", (quer fossem quadrilha ou polcas) davam neste conto "os primeiros compassos". O "assobio", a "cantarola nocturna", tudo originava sons no piano do Sr. Pestana! As suas composições soavam "sopradas em clarineta"
Um padre "lhe ensinara latim e música", pela qual era "doudo", fosse "sacra ou profana". Nisto pensava eu, quando se fez ouvir o comentário do professor José Maria Pedrosa: para quem souber latim, é fácil de traduzir: Missa Brevis "St. Joannis de Deo", de J. Hayden. E contava: esta, chamada missa breve, foi oferecida por Hayden a S. João de Deus, santo português que tinha a sua ordem e uma igreja também em Viena, e na qual Hayden tocava nas missas de domingo. Este compositor, como génio, podia transgredir, dizia o professor, porque afinal, toda a arte é uma transgressão, continuava. Sabem? É que Hayden transgrediu na regra do motete, usual nessa época na composição de missas. Encortou os textos e distribuiu-os pelas diversas vozes: baixo, tenor, contralto e soprano, ao contrário da regra, que punha cada voz a cantar uma mesma letra.
Ouvia e questionava-me: possivelmente o que o Sr. Pestana não conseguiu foi transgredir! Seria? Não viveu nunca, possivelmente, uma noite de S. João (não de Deus, mas a do Porto). Pois é. Eu vivi, na sexta e no sábado, dias 9 e 10 deste mês, não o S. João, mas as vésperas de S.to António na Ribeira do Porto. Aquilo é que era dançar! Andava muita gente na rua. Do outro lado do rio, como que uma cascata (daquelas que se faziam para pedir um tostão para o S. João), viam-se ao longe letreiros luminosos dos vinhos Sandeman, Taylor's, Croft, etc. A alegria era tanta que permitia a transgressão; nisto pensava, quando ouvi dizer que aquele santo a quem Hayden dedicara a missa era o nosso S. João.
Porém, o Sr. Pestana não tinha letreiros de vinho do Porto com nomes ingleses, nem mesmo de S. João; tinha era retratos de compositores: "Cimaroza, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann (...) postos como santos da igreja; o piano era o altar. Todos os compositores tocava na ânsia da perfeição. Também ele (como eu) ouvia "Hayden (...) à meia noite", (...) e as estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais", e eu pensava em como eram belas estrelas candentes estas centenas de jovens, que esta noite ali davam provas do trabalho de um ano inteiro!
E no humor que tiveram os três jovens do trio de clarinete, Luís Gomes, Nuno Silva e Luís Casalinho, quando no palco contaram, que não estavam em traje de gala, porque lhes tinham roubado tudo de dentro do carro! Nem os sapatos, diziam, nos deixaram! Por isso, vamos mesmo assim actuar com estas roupas: T-shirts, com palavras coloridas inscritas, ao contrário dos pardejos, camisas brancas, calças e saias pretas das centenas de alunos!.
Mas foi assim, este concerto que traduziu para todos os que enchiam o salão "as velhas obras clássicas" que o Sr. Pestana rogava aos anjos e ao diabo que lhe fosse permitido compor. Contudo, também ele tocava "duas, três, quatro horas", de Mozart. Por isso pensei nele esta noite! E ainda "tinha de dar lições no dia seguinte". "Compunha (...) teclando ou escrevendo; deixou de parte o Requiem, tornou a compor polcas que "as orquestras de teatro" executavam.
Este conto é do princípio ao fim repassado de amor pela música, num infindo amor que se sente em cada melodiosa palavra, em cada nome de compositor, até que o Sr. Pestana feche as pestanas, não sem ter deixado ainda duas novas polcas compostas. E se em tudo isto pensava, sempre ligava a palavra à música, durante estas horas do concerto. Vinha-me à memória a Flauta Mágica, de Mozart, e em como ele, quando compunha a célebre área de Papagena, se recordava da sogra a falar alto, mesmo a gritar. até aí eram as palavras que inspiravam o compositor.
Oh! É isso mesmo. Tudo o que pude imaginar durante estas horas ficará sempre aquém destes melodiosos contos! "Falar em verso, (...) todos os homens devem ter uma lira no coração". Aqui era a "divina" Quintília que inspirava o ressoar desta lira, qual Orfeu em busca da sua amada! Que "tinha olhos (...) apesar de nocturnos" (a lembrar o amor de Chopin por George Sand) em parceria com o riso, qual clarim soando em "voz brandíssima; "ria, ou antes, sorria apenas".
Os sorrisos e as vozes continuavam no palco, cantavam melodiosamente o Kyrie, e eu continuava em pensamento a ler os contos quase linearmente, encontrando aqui e ali algo que através da palavra me transponha para o mundo da música.
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(continua)
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