domingo, 12 de fevereiro de 2012

De Gil Vicente A Garrett

"São quase cinquenta peças (...), que eventualmente garantem, hoje como sempre, a qualidade ímpar do espectáculo". As suas farsas e autos surgem-nos, quer cómicas, quer irónicas, "através de uma técnica repassada de talento teatral."  As suas restantes peças, mesmo quando de "exaltação religiosa e mística", não deixam de tecer críticas ao mau clero, e de mostrar "a necessidade de uma reforma de costumes." A sua obra, numa grande percentagem, vai buscar a temática simbólica e mitológica, como forma de intervenção, à tradição clássica, constituindo um traço de ligação  "entre o Portugal medievo e o Renascimento". Alegorias fantásticas são também  frequentes e marcam o ambiente culto da Corte.  "Obra perene, tão do nosso tempo, a sua qualidade em muito transcende a  própria arte do teatro - para atingir um dos cumes mais altos da criação estética e do pensamento filosófico da cultura ocidental."
Teve Gil Vicente seguidores, que procuraram através da sua "imitação consciente ou inconsciente" - como refere Lucciana Stegagno Picchio -,  continuar a temática vicentina, principalmente a religiosa, e "quase sempre fiéis à fórmula de auto".(1) Afonso Ávares, filho dum natural da Guiné, "criado do bispo de Évora, D. Afonso de Portugal", e depois mestre-escola em Lisboa, foi um desses seguidores, assim como António Ribeiro Chiado, que teve um auto com bastante sucesso na Corte e foi, inclusivé, referido por Camões no seu «Auto de El-Rei Seleuco», e também por Jorge Vieira de Vasconcelos  "que , na sua comédia «Aulegrafia» cita o poeta como sendo um homem de veia". O seu «Auto das Regateiras», escrito em 1569, segundo Teófilo Braga, é precioso para a reconstituição da sociedade portuguesa no séc. XVI. Os tipos são acentuadamente característicos, e os ditos graciosíssimos, expressos por modismos e locuções de viva poesia, revelando as personagens a acuidade psicológica de quem as criou.
Baltazar Dias foi um dramaturgo popular, que curiosamente recebe do rei D. João III um alvará que lhe concede os direitos de autor, ou seja, o privilégio  de ninguém poder vender ou imprimir as suas prosas, ou poesias ("como em metro") sob pena de ser sancionado. Curioso é verificar que, já no séc. XVI, este poeta cego, originário da Ilha da Madeira, "vendia as suas obras nas ruas de Lisboa", as quais seriam, porventura, muito procuradas, uma vez que o autor necessitou da protecção régia para impedir a indevida impressão e venda do seu trabalho criativo.
Esta terá sido a primeira fase do teatro português. Estes dramaturgos serão os principais da "chamada escola vicentina"; muitos tiveram como fonte Gil Vicente, mas este "criador de génio" tinha que, infalivelmente, originar uma "curva decrescente", apesar da sua "marca" se fazer sentir mais ou menos nítida até hoje. O próprio Camões poderá, assim como António Prestes "integrar-se na filiação vicentina". É impossível referir todas as correntes pós-vicentinas, e muitos textos surgem anónimos, patenteando, porém,  "o fervilhar dramatúrgico de então", e, apesar "da influencia  de Gil Vicente, (...) da sua  permanência perene (...) a evolução  estética é irreversível, e a mentalidade da Renascença acaba por influenciar o hesitante teatro português". 

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Nota:
As aspas não numeradas ao longo do trabalho são citações do livro:  Introdução à História do Teatro Português, de  Duarte Ivo Cruz, Guimarães Editores.
(1) - Picchio, L.S., História do Teatro Português, pp.88.

   

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