Com os espanhóis vieram os seus costumes: luxo e esplendor, aliado à tourada e às violentas brigas, ao teatro dos pátios, das comédias, e as companhias espanholas que quase extinguiram a "fonte" dramática nacional. Porém, como nada é totalmente mau, foi também por esta altura que o gosto pelo teatro (chamado de cordel) se popularizou realmente, desceu à rua e tornou-se o espectáculo de todos os portugueses, tal como se vê ao iniciar o filme de Cyrano. Quando, por fim, Portugal torna a ser português, caberá a D. Pedro II acabar com as guerras. Então, D. João V viverá, efectivamente, um "luminoso barroco", ensombrado, porém, por "constantes rixas vividas no ambiente de um certo tipo de marginalidade e a insegurança das perigosas vielas que, a partir do anoitecer, poucos frequentam e muitos temem, dada a ausência de iluminação e a frequência dos maus encontros, que fazem lembrar as brigas com "os cem" que esperavam junto à porta de Nesle o poeta Lignière.
Na peça, também lá surgem os guardas da noite, os "palhaços" Abrunho e Varas com o lampião, e prendem aqueles que tinham originado toda a intriga. Eram talvez os "rufias," ou o "faia com a sua dama a facécia". Assim se designavam em Lisboa os "delinquentes urbanos, que deixavam na perplexidade até as personalidades socialmente estranhas e minoritárias dos franças ou peraltas". Nas festividades religiosas, nas touradas, no Carnaval, nas manifestações políticas, lá estavam presentes, prontas para desestabilizar. Por isso, eram necessárias "condições de manutenção do poder" e a existência de mecanismos político-culturais capazes de actuarem sobre as psicologias colectivas, emitindo uma imagem, (...) de acalmia e de incontestável dominação por parte dos poderes instituídos."
D. João V será o rei que isso obterá. A sua corte conhece e pratica boa música, com Scarlatti, e a ópera italiana, Carlos Seixas, na Sé de Lisboa, faz "chorar e rir" o seu mágico orgão, ou o cravo, com melodias eternas, traduzidas nas suas tocatas, sonatinas e sinfonias.
A propósito deste nosso distinto músico e das suas composições, diz Santiago Kastner: "na sua individual e original disposição psíquica reside um dos maiores encantos da música de Seixas. É a sua alma poética e delicada que imprime a esta arte o cunho do estilo português, (...) e a diferencia da de outras latitudes. Nos seus trechos encontramos quase toda a gama de cambiantes de ânimo lusitaníssimo (...) tanto as qualidades, como os defeitos do carácter português se manifestam na sua arte (...) a falta de continuidade e de persistência no trabalho empreendido...a carência de alento, ou, como qualidade, a sobriedade, a compreensão imediata do discurso estético, a simplicidade, a despreocupação na mistura do aristocrático requintado com o rústico saudável, a vitalidade." Creio que foi Carlos Seixas o expoente da música barroca portuguesa do século XVIII, e que poderá colocar-se ao nível dos músicos das outras cortes europeias, exemplo de que Portugal desejava estar a par dos outros Estados, quer na música, como nas outras artes. Tudo se tornou possível porque havia um "acordo tácito" para promover a cultura.
(continua)
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