Agora vejamos os efeitos cénicos: na peça «Muito Barulho por Nada», surgem os elementos da natureza, patentes nos animais que andam à solta pelo salão, como sejam as pombas, os granisés e o belo papagaio, tão característico das Cortes Europeias, a dar o tom exótico da África, América e Oriente, qual "paraíso" longínquo. As rosas de vários tons, folhas verdes, que ajudavam ao "deslocamento do centro de interesse ou de gravidade, à multiplicação de pontos de vista e de protagonistas". Assim como o nascer do dia, ou o anoitecer, em que subia o sol ou se obscurecia a sala, aparecendo "mil estrelas no céu."
Também no filme surge logo ao princípio esse fenómeno tão de "acordo com a poética barroca", e do qual muito uso fizeram os discípulos de Inácio Loyola. Inclusivé jesuítas portugueses por todas as terras de Portugal, onde possuiam colégios, e pelas terras do Brasil, como sejam: o uso da "fumaça" que surge quando se inicia a peça de teatro (que Cyrano não deixa continuar), o trovão e o relâmpago que, como réplica da natureza "enfurecida", se dá quando Christian fala pela voz de Cyrano, a Roxane (qual Julieta, no seu quarto de menina adolescente). A chuva, anunciando como que uma "tempestade" que se seguirá, e que será a própria batalha de Arras com todo o seu "arraial" apocalíptico, que sugere uma visão da "morte ou do inferno". Todo este visual nos surge de uma forma muito natural, mas que nos dá conta dessa vivência cultural tão rica que nesse período floresceu.
Ainda queria referir a "separação do palco e do auditório, que se verifica em ambos os espectáculos. Na peça de teatro os actores sobem e descem escadas, simulando o entrar em casa, ou o sair de uma sala para outra, o sair para o jardim, onde se verificam os encontros, e se descobrem os segredos. Os espectadores misturam-se aos actores e o próprio "palco" passa para o local onde se serve o café, ao auditório. Pois também no filme se desloca do recinto teatral para o átrio a acção que se inicia dentro da sala de espectáculo, quando Cyrano desafia para um duelo quem a ele se opôs. O que vem a verificar-se e onde se juntam actores e espectadores de todas as classes sociais. Aquilo que poderá parecer extremamente moderno e que Pirandello irá propor, ao fazer com que os próprios bastidores passem para a óptica visual dos espectadores, fazendo já parte do espectáculo, também se verificava (por incrível que pareça) nestes tempos de fins do séc. XVII e início do séc. XVIII. Aquele começar que Eugénio D'Ors vê como "o momento de perfeição social mais refinada que tenha conhecido a história". Parece realmente que tudo aqui se teria iniciado, inclusivé o "criar dos jardins botânicos". Jardins que também surgem "simulados", quer na peça, quer no filme, e que ajudam à própria "pompa ornamental", que é dada desde os brocados das toalhas, ricamente estampadas, aos reposteiros das janelas e a todo o variado vestuário que se mistura, numa profusão de cor e diversa qualidade. O povo, que se junta aos cortesãos, encontramo-lo no filme, no espectáculo teatral que os reune por paixão, assim como na praça pública, junto à casa de Roxane. Ne peça, quando o público presente ao espectáculo dessa noite, efemeramente, representa o papel de "plebeus" ou "cortesãos", que se juntam aos artistas que os representam, formando aquilo que será a própria "essência" do teatro: "a criação de um momento de relação público-actor, que não é conseguida em mais nenhuma arte, porque só o teatro, efectivamente é, acima de tudo, uma arte de relação humana e, ao mesmo tempo, uma relação de jogo e de brincadeira".
Estas relações eram já muito desejadas pelos jesuítas, que usavam os espectáculos teatrais como forma educacional, levando a que o povo aderisse sem "vontade própria" e fosse envolvido pelo próprio "acontecimento dramático". Claude-Henri Freches escrevia a esse propósito: "debaixo da linguagem da cultura, quase artificial, encontrava-se o génio português". Mesmo nestes sóbrios jesuítas se encontrava "o sarcasmo, a inventiva e a farsa (...) mas ela era temperada por uma nobre finalidade pedagógica."
Essa participação da igreja é, quer na peça, quer no filme, bem saliente. Frei Francisco é um padre, que tem como que o papel de conselheiro, no desenrolar do "novelo" da intriga originada pelo irmão, "inimigo" do príncipe, que, por ciúmes, e inveja do seu amigo, lança a discórdia naquele amor nascente. No filme, o realce é dado de acordo com a relevância que exerciam na sociedade do tempo. É um frei que vai levar a missiva "secreta" de De Guiche a Roxane. O mesmo realizará o seu casamento com Christian de Neuvillette. Durante a batalha assistem os espanhóis a uma missa campal com todos os rituais. E, por fim, é a um convento (tão usual na época) que Roxane se recolherá até ao fim da vida. Convento esse que mostra aqueles jardins que o rodeavam, os amplos corredores repletos de luz e sombra, e a vida estimada que levavam as suas hóspedes de alta estirpe e as noviças que ainda não tinham professado.
(continua)
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