Podemos encontrar, apesar da diferença entre uma peça de teatro e um filme, muitos pontos comuns nestes dois espectáculos. O próprio filme é baseado numa peça de teatro. E ambos respeitam à vivência de uma época.
Mas assistir à presença no palco, dos artistas, vê-los tão de perto, misturados, inclusivé, com os espectadores, sentir as suas emoções, ver seus corpos alterarem-se com as diversas expressões, é algo que não nos é possível ver no cinema. Enquanto no cinema as cenas que correm mal podem ser alteradas, no teatro, se houver um engano ou deslize, é logo de imediato percepcionado pelo público. mas o emocionante é sentirmos tão de perto os artistas! Ouvir a sua voz! Ver o seu peito ofegante quando choram ou riem! Apreciar a beleza do seu guarda roupa, as suas posturas. Como correm, ou colocam as mãos ou as pernas, quando em repouso, ou em diálogo. Se têm um porte altivo, senhoril, ou o contrário. Como colocam a cabeça, como olham, como sorriem, ou as expressões que acompanham as mais diversas entoações de voz. Até nos é visível, palpável quase, a harmonia de uma mesa com doces ou fruta. O espectador é como que atraído, inclusivé, pela sensação sensorial: o gosto da comida ou dos licores, que estão expostos, é-nos transmitido através da forma como bebem ou saboreiam um biscoito.
Mas não só. A musicalidade de uma voz ao natural, de instrumentos musicais que se encontram no palco produz um efeito fisiológico que não é obtido da mesma forma em cinema. Essa harmonia dos sentidos, visão, audição, olfacto, paladar, como que se realizam em pleno numa peça de teatro bem conseguida! É, de facto, uma paixão o teatro, ou não seja ele a própria vida, com séculos de existência. Talvez desde sempre o homem tenha representado.
O cinema, sendo uma arte que ainda não tem cem anos de existência, debate-se, ainda, com o estudo de técnicas que lhe permitam, como dizia Charles Barr, "sugerir a essência mostrando a substância". A necessidade de obter uma "síntese das artes" levou a que já Eisenstein investigasse a possibilidade da "sincronização dos sentidos". Ao fazer um estudo sobre o teatro japonês (na sua atracção pelas máscaras) escrevia: "Nem sequer o que é comido neste teatro é acidental (...) neste caso teremos de incluir no conjunto o sentido do gosto". Iria, como refere Peter Wollen, mais longe que Baudelaire. Pretendia ser possível incluir o sabor, o sentir, no cinema. Fazia estudos sobre o simbolismo da cor das vogais e afirmava que, ainda antes de Rimbaud, já autoridades barrocas o tinham feito.
Um dos primeiros estudiosos da estética cinematográfica, este homem que gostava de El Greco, de Debussy e de Wagner, mas também da caricatura, da sátira e do grotesco, para poder afastar-se "do realismo ao ir à realidade," buscou, sempre a harmonia e o conjugar a ciência e a arte. Estes estudos sobre uma estética fazem-nos compreender as diferenças existentes entre o teatro e o cinema e como cada um tem a sua forma de espressão: o cinema torna possível percepcionar uma batalha naval, aérea, ou campal, como nos foi dado ver no filme "Cyrano de Bergerac", a batalha de Arras; porém, no teatro já o mesmo não seria possível. Introduzir num palco centenas de figurantes a cavalo, ou simular um encontro entre duas forças inimigas.
O teatro sugere a participação na batalha e o público tem que a imaginar. No filme vemos a batalha e avaliamos os seus danos. Os filmes, tal como dizia o linguista Hjelmslev, "estão ancorados num estado de significação"; nesse aspecto creio que também o teatro está. É necessário distinguir também, como vital em estética, texto e realização, porque, enquanto o texto é constante e durável, a realização destes é ocasional e transitória. Certamente que "mais próximo do cinema tem estado a experiência do teatro, mas o cinema, assim como o teatro, tem de um lado o guião da rodagem, ou o argumento, e a peça, e, de outro lado, "os vários níveis de execução: representação, fotografia, montagem" A autoridade do realizador em cinema, e do encenador em teatro, pode como que alterar ou completar um filme ou peça, porque, por vezes, não estão só a "dirigir a concretização de um texto pré existente", não se subordinam ao outro autor que funciona como "fonte", de cenas que se fundem com as suas preocupações para produzir uma obra radicalmente nova. Assim, o processo de execução ou realização manifesto, o tratamento de um assunto, oculta a produção latente de um texto novo, a produção do realizador, enquanto "autor". Isto verificar-se-á também, possivelmente, quanto ao filme de "Cyrano de Bergerac", já que este se baseia numa peça de teatro do século XIX.
Mas creio que não será negativo, porque algo da essência da peça teatral se mantém no filme que nos foi dado ver, mesmo que, eventualmente, tenha sofrido alterações ao passar do teatro ao cinema.
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