O Barroco é o idioma natural da cultura, aquele por meio do qual a cultura imita os procedimentos da natureza.
E. D'Ors
Apesar da comédia de Shakespeare datar do século XVII e o filme se basear numa adaptação do teatro para o cinema de uma peça de Edmond de Rostand, do século XIX, ambos têm como tema a vivência duma época de poder absolutista (em que se viveu uma tirania do Estado e uma tirania do Bom Gosto, segundo Eugénio D'Ors) e, dentro dessa forma de vida, o ser e o não ser, a aparência e a realidade, o engano e a ilusão, a verdade e a mentira, que se traduzem nesses enredos de duplos e nas histórias de amor. Ambas vivem através dos séculos nos textos destes grandes autores, que, creio, nos fazem ponderar ou defender a necessidade da verdade e da franqueza prevalecer nas relações amorosas. Ou seja, debruçam-se sobre "o erro e a ilusão", a complexidade das relações, a vida, e, ao mesmo tempo, talvez possam ser encaradas como inerentes às próprias "aparências que iludem" na problemática arte teatral ou cinematográfica.
Efectivamente, é-nos dado assistir a uma peça e a um filme lindíssimos, em que se encontram muitos pontos comuns, e outros não, porque se vive em ambos realidade e ilusão. Senão vejamos: Quer no teatro, quer no filme, se processa todo um enredo amoroso, em que a intriga e a simulação mascaram as relações reais entre as pessoas intervenientes. Benedito e Beatriz, Cláudio e Hero, filha do governador de Messina. Entre Cyrano e Roxane, e esta e Christian. Uns deixaram para trás a guerra e viajam de Aragão para Messina, onde são homenageados pelos cortesãos, vivendo o sonho e a utopia. Outros vivem a guerra de Arras, onde morre Christian; a realidade impõe-se-lhes. Seria, então, possível a verdade vir ao de cima, mas não. Cyrano, no complexo da sua fealdade, e no receio de não ser correspondido, não revela o verdadeiro amor que sente pela prima, e sofre uma falsa relação até ao fim. Ele é o seu próprio e primeiro opositor.
Porém, na peça, o Conde Cláudio, por enredos maldosamente engendrados, desconfia que a amada Hero o engana e já não deseja casar. Para apagar a intriga, resolvem, o seu pai, tio, e Frei Francisco, dizer que a mesma morreu, mas ela continua viva. O conde, sabendo da sua amada morta, revela junto à sua campa o amor que lhe tinha. A verdade vem, então, a ser descoberta e ambos têm um fim feliz. A mentira, nesta interessante comédia, ajudou a cair as máscaras, e venceu a verdade, a alegria. O mesmo não acontece em Cyrano, porque quando se descobre a verdade e caem as máscaras, já ele estava prestes a morrer, vítima de um atentado; por isso, não ficam juntos e Cyrano foi vítima da sua própria simulação trágica.
Encontramos, ainda, quer na peça, quer no filme, elos inerentes a uma forma de vida e um período de ouro. Uma mesa posta com doces e licores, ostras e frutas, belos pudins, aparece, tanto na peça, como no filme. Assim, verificamos que se vivia uma época em que já a doçaria fina era muito apreciada e consumida, assim como as mais diversas aves assadas no espeto, e ostras. Para além desta alimentação rica, existem, patentes em ambos, o luxo dos adornos e da qualidade dos tecidos com que se vestiam as camadas mais altas da sociedade.
Veludos das mais belas cores para as capas dos cavaleiros, que são abertas e colocadas no chão para se sentarem a descansar, quando estão em cena na peça o Príncipe Pedro, Cláudio e Benedito; e no filme, a capa de Cyrano, que, de corte em godé, forma canos, originando aquele esvoaçar, aquele cair, aquela elegância de a colocar ao ombro, de a usar! Só a sua capa, consegue dar-lhe uma figura estética única e inconfundível! As "duzias" de botões, que nunca abotoa, pois sempre a traz aberta, a sua cor entre o vermelho e cor de vinho, que contrasta com o cinzento azulado da sua farda de oficial de cavalaria. A forma como coloca a mão na sua espada dourada com cabo preto. Os cintos, com fivelas trabalhadas na cor dos botões, que lhe traçam o peito como que a ajudar a suportar aquelas espadas com que se defendem das guerras e dos actos traiçoeiros.
As damas que, aliando ao luxo dos homens, dos seus chapéus com plumas, das suas belas golas de rendas brancas, dando tom às diversas cores dos casacos, meias, calças e botas, se vestem das mais finas sedas e brocados, lisos e estampados. Peitilhos em rendas de várias cores encaixam da cinta ao busto, bem realçado, e contornam os grandes decotes que mostram o colo e o pescoço de alabastro dessas bem feitas "flores" cortesãs, que fazem namoro a esses jovens cavaleiros, quer na peça, quer no filme. E isso mostra o sarau em que se declamam poemas de "filigrana" dedicados à "boca", e o vestir cuidado de Roxane, por parte da aia. Na peça, os preparativos para o baile de máscaras, a troca de impressões entre primas para a escolha dos vestidos, as conversas das aias, sorrisos, trocas de segredos tão femininos! Na verdade parece que cada gesto, cada forma de estar e sentir, se inscreve nessa época tão prodigiosa como foi o Barroco.
(continua)
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